Um Ensaio Sobre Representação e Expressão
Outro
dia, parado no trânsito e observando as pessoas pelos retrovisores, tive um
pensamento estranho: será que nos representamos mais do que nos expressamos? A
moça na moto, com sua jaqueta cheia de patches, parecia carregar uma bandeira
de quem ela queria ser. O rapaz no carro ao lado, ajustando o cabelo no espelho
interno, talvez também estivesse ensaiando uma versão de si. E eu, ali,
refletindo e me julgando filosófico... não era outra forma de
representação?
Afinal,
na vida cotidiana, representar e expressar se misturam o tempo todo, como se
estivéssemos sempre num teatro, ora tentando ser fiéis ao que sentimos, ora
ajustando o roteiro para a plateia.
Mas
existe uma linha divisória entre um e outro? Ou tudo que somos diante do mundo
já é, inevitavelmente, uma representação?
A
máscara inevitável
Platão
já nos alertava, no mito da caverna, que o que vemos e mostramos são apenas
sombras da realidade. Para ele, a representação nunca captura a
essência: é sempre uma cópia distante, um eco imperfeito. Mesmo quando tentamos
nos expressar genuinamente, o que chega ao outro é uma sombra da
nossa intenção.
Nietzsche,
por outro lado, mais desconfiado da "verdade" e mais amigo da vida,
sugeriria que não há nada por trás da máscara — a máscara é tudo o que temos.
Na sua visão, expressar-se e representar-se não seriam opostos:
seriam a mesma dança, pois o "eu verdadeiro" que desejamos expressar
é, ele mesmo, uma invenção artística, construída e remodelada constantemente.
Assim,
até nossa "expressão mais autêntica" seria, de certo modo, uma
performance.
Quando
representar é criar
Para
além da denúncia platônica da ilusão e da ironia nietzschiana sobre a máscara,
Gilles Deleuze nos oferece uma chave inovadora: ele propõe que a representação
é uma prisão, pois tenta encaixar a multiplicidade da vida em moldes
pré-existentes. Expressar, para Deleuze, seria não repetir formas, mas inventar
novas possibilidades de ser.
Assim, verdadeira expressão é algo criador: não representar algo já dado,
mas fazer nascer o que ainda não existe.
Pensemos
no exemplo mais simples: uma criança brincando. Ela não está representando
"uma criança brincando" — ela está sendo, de forma livre e inventiva,
um novo modo de estar no mundo. E é justamente por isso que sua expressão é tão
poderosa.
Representação:
o conforto. Expressão: o risco.
No
cotidiano, representar é confortável: agimos como o bom funcionário, o amigo
leal, o cidadão consciente — papéis conhecidos, que nos protegem do vazio e da
dúvida.
Expressar-se, no entanto, é perigoso: é lançar-se num território sem mapas,
onde podemos ser incompreendidos, rejeitados ou, mais assustador ainda, não
reconhecidos nem por nós mesmos.
Por
isso, muitos de nós preferimos vestir a máscara da representação: porque nos dá
uma identidade clara, mesmo que apertada.
E
aqueles raros momentos de expressão verdadeira, quando emergem,
nos deixam nus, desarmados — mas também mais vivos.
Em
busca de uma expressão mais leve
Talvez
a solução esteja em uma convivência mais serena entre as duas forças.
Reconhecer que sempre haverá representação (porque o mundo
precisa de signos para nos entender) mas não perder a centelha da expressão
(que é a nossa potência criadora).
Merleau-Ponty,
com sua filosofia da percepção, apontava que o corpo é já expressão, antes de
qualquer palavra ou papel social. Não escolhemos "representar" nossa
alegria ao rir: nós a encarnamos.
Talvez
devêssemos reaprender a confiar no corpo e nos gestos — nessas expressões
primeiras — mais do que nas imagens que tentamos controlar.
Num
mundo saturado de performances, onde o Instagram, o LinkedIn e até a conversa
no elevador são arenas de representação, expressar-se é quase um ato de
resistência.
Talvez
a filosofia nos diga, em suas entrelinhas, que não há como escapar totalmente
da representação — mas que podemos, ainda assim, tentar respirar
dentro dela.
E quem sabe, como a moça da moto e o rapaz do retrovisor, possamos nos divertir
um pouco com as máscaras que vestimos... sem esquecer que, às vezes, a melhor expressão
é aquela que nem tentamos controlar.