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terça-feira, 29 de julho de 2025

Desejos Miméticos

O Espelho dos Outros

Há dias em que a gente acha que quer uma coisa, mas, olhando bem, parece que só quis porque viu alguém querendo. Um amigo compra um carro novo e, de repente, nosso velho automóvel já não parece tão confiável. Uma colega muda de carreira e logo o nosso trabalho começa a parecer pequeno, sem graça. O desejo parece autêntico — mas será mesmo? Ou será que, como quem boceja ao ver alguém bocejar, desejamos o desejo alheio?

Essa é a tese provocadora do pensador francês René Girard, que cunhou o termo desejo mimético. Segundo Girard, não desejamos diretamente as coisas — desejamos o que o outro deseja. O objeto em si (o carro, o cargo, o parceiro, o estilo de vida) não tem valor intrínseco para nós até que o vejamos desejado por alguém que admiramos ou com quem competimos. O desejo, então, é uma forma de espelho, mas um espelho deformado, porque reflete não o que somos, mas o que imaginamos que deveríamos ser para sermos desejáveis.

A inovação aqui não está apenas em notar que imitamos, mas em perceber que a imitação do desejo é motor de conflitos, invejas, disputas e até violências. Girard chega a sugerir que as sociedades aprendem a conter esse ciclo mimético canalizando-o para bodes expiatórios — figuras ou grupos que recebem a culpa coletiva e são sacrificados, real ou simbolicamente, para restaurar a paz social.

Mas vamos sair um pouco da teoria e voltar à vida real. Já reparou como certas tendências só parecem irresistíveis quando muitos já aderiram? Como uma pessoa se torna “interessante” quando outros demonstram interesse por ela? Ou como o valor de algo sobe quando há escassez simbólica, mesmo que o objeto em si não tenha mudado?

A inovação filosófica do conceito de Girard está em deslocar o foco do desejo como algo interno, autônomo, para algo profundamente relacional e teatral. Isso abre um espaço de libertação: se reconhecemos que muitos dos nossos desejos são imitativos, podemos nos perguntar — de quem estou imitando este desejo? E por quê?

Essa pergunta simples pode ser o começo de um pensamento mais livre. Em vez de seguir o cardume dos desejos alheios, talvez possamos mergulhar em silêncio no que realmente nos move — naquilo que não precisa de plateia para ter valor.

Como diria o próprio Girard: “Não sabemos o que desejamos; imitamos o desejo dos outros para saber o que desejar.” E se, por um momento, parássemos de imitar e apenas escutássemos? Talvez então descobríssemos que o nosso verdadeiro desejo... não se parece com o de ninguém.

segunda-feira, 16 de junho de 2025

Idiota da Aldeia



Dia destes estava lendo uma postagem no Instagram de uma palestra de Umberto Eco e me ocorreu escrever sobre o tema, vou deixar o link para lerem a publicação:

https://www.instagram.com/explore/tags/aldeia/

Antigamente o idiota da aldeia ficava restrito ao seu círculo de vinte ou trinta conhecidos. Falava besteiras na taberna, confundia datas na praça, contava histórias tortas para as crianças, e todos sabiam que aquilo era parte do folclore local — uma figura inofensiva ou, no máximo, irritante. Mas Umberto Eco, em uma célebre palestra na Universidade de Turim em 2015, ao receber o título de doutor honoris causa, alertou:

“As redes sociais deram o direito de fala a legiões de imbecis que antes só falavam no bar e depois de um copo de vinho, sem prejudicar a coletividade. Eles eram rapidamente calados, enquanto agora têm o mesmo direito à palavra de um Prêmio Nobel.”

O drama moderno, segundo Eco, é que esse idiota ganhou um microfone global — e ninguém mais distingue sua fala da voz da razão. As redes sociais, ironicamente chamadas de “plataformas”, deram a ele um púlpito.

Mas antes de julgá-lo, precisamos reconhecer um segredo incômodo: o idiota da aldeia também existe em nós.

A ideia de "idiota" não é apenas um personagem exterior, grotesco e reconhecível. Ele é também aquela voz interna que opina sem saber, compartilha sem ler, acredita no que deseja e não no que é. Por vezes, é o idiota da aldeia quem responde nos grupos de WhatsApp da família, quem comenta com raiva em fóruns, quem dá conselhos não solicitados no elevador. O empoderamento desse idiota não é um acidente tecnológico; é o sintoma de uma velha condição humana: o amor à própria ignorância.

O que Eco parece sugerir (mas poucos ousam explorar) é que o problema não é a ignorância em si — afinal, somos todos ignorantes em quase tudo — mas a soberania concedida à ignorância opinativa. Antigamente o idiota da aldeia não era ouvido; agora ele acredita ser a própria aldeia.

O Novo Teatro da Verdade

Platão, no século IV a.C., advertia sobre a fragilidade da opinião sem conhecimento, a famosa doxa que se veste de sabedoria, mas é espuma vazia. Mas nem ele previu o Instagram.

Hoje, não é preciso aprender: basta parecer saber. O empoderamento do idiota não é apenas o direito de falar, mas o direito de soar importante, de ter seguidores, de ser citado, de fazer barulho. Mais: é o direito de cancelar quem sabe mais, de ofender sem custo, de confundir sem responsabilidade. O idiota da aldeia virou curador de museu, crítico literário, filósofo instantâneo, cientista do próprio umbigo.

E nós — os supostos lúcidos — não escapamos ilesos. Pois ao combatê-lo, ao zombar dele, ao denunciá-lo sem parar, damos a ele o alimento que deseja: atenção.

Segundo Nelson Rodrigues (1912 – 1980): “Os idiotas vão tomar conta do mundo; não pela capacidade, mas pela quantidade. Eles são muitos.”

O Idiota também é uma Função

Mas há uma ideia mais profunda e desconcertante aqui: o idiota da aldeia é necessário. Ele cumpre uma função social que talvez tenhamos esquecido. Ele é o espelho deformante que nos lembra o que não queremos ser — ou o que já somos sem perceber.

O idiota é o fermento do ceticismo coletivo. Sua fala desvairada obriga a reflexão dos atentos, o cuidado dos mestres, a paciência dos sábios. Sem ele, a inteligência dorme. Como dizia o filósofo Paul Valéry: "A estupidez não se improvisa; é uma obra de arte." O idiota nos obriga à vigilância.

Talvez seja este o paradoxo mais incômodo: o empoderamento do idiota é também o empoderamento da crítica. Ele não cala o pensamento — obriga-o a se justificar.

A Aldeia Somos Nós

Há uma solução elegante e trágica para o dilema de Eco: reconhecer que a aldeia digital não tem mais centro nem periferia. O idiota já não é uma exceção; ele é uma probabilidade distribuída entre todos. Não há um "ele" e um "nós". A internet tornou a aldeia um espelho de mil faces, e cada um de nós já foi — ou será — o idiota da vez.

Por isso, o verdadeiro risco não é o idiota que fala demais — é o sábio que se cala por cansaço.

O empoderamento do idiota da aldeia, afinal, não é uma crise da estupidez — é uma crise da escuta. Quem ainda escuta com cuidado? Quem ainda separa o ruído da música? Quem ainda suspeita de si mesmo antes de opinar? Eco nos alertou para o barulho, mas talvez o problema mais grave seja o silêncio dos que poderiam dizer algo real e útil — e se retraem.

Talvez o maior idiota da aldeia seja aquele que desistiu de pensar. Hoje percebemos que ele não estava tão errado assim. Ou estava?


sábado, 10 de maio de 2025

Lupa e Espelho

Um Mate com o Objetivismo e o Subjetivismo...

Outro dia, esperando a água do chimarrão esquentar, me peguei encarando a chaleira. O vapor subia em espirais meio caóticas e pensei: “Será que ele existe assim mesmo ou só está assim porque eu estou vendo desse jeito?”. A chaleira continuou lá, alheia à minha filosofia de cozinha, mas o pensamento ficou. A vida, afinal, parece balançar entre duas grandes vontades: a de que as coisas sejam como são (objetivamente) e a de que sejam como sentimos que são (subjetivamente). Esse é o cabo de guerra silencioso entre objetivismo e subjetivismo.

A razão e o eu: um encontro (nem sempre cordial)

O objetivismo quer o mundo como ele é, sem firulas. A verdade está lá fora, como dizia Arquimedes antes de descobrir a alavanca e a física clássica inteira. Os objetivistas acreditam que há um modo certo de olhar as coisas, um ponto fixo. Já o subjetivismo sussurra outra coisa: que a verdade passa pelo nosso olhar, pelas nossas entranhas emocionais, pela forma como o mundo nos atravessa.

O primeiro problema é que ninguém acorda pela manhã como um puro objetivista. Ninguém diz: “Hoje me sinto objetivamente bem”. A gente diz: “Acordei meio estranho, o tempo tá pesado, parece que o mundo tá fora do lugar”. A verdade, mesmo que externa, parece sempre entrar pela nossa porta interna.

O copo meio cheio (ou meio vazio?) — depende

Vamos a um exemplo doméstico. Você e um amigo assistem ao mesmo filme. Um acha brilhante, o outro acha arrastado. O objetivista tentaria medir o ritmo, analisar a edição, calcular a densidade dramática. O subjetivista diria: “O filme me tocou, e isso basta”. A crítica de cinema vive dessa disputa: quantas estrelas cabem entre o gosto pessoal e os critérios técnicos?

Mas e se os dois tiverem razão? E se a realidade for uma espécie de “camada dupla”, como uma lasanha metafísica — uma camada objetiva de fatos, outra subjetiva de significados?

Nietzsche, o árbitro relutante

Nietzsche, sempre desconfiado das verdades em mármore, nos oferece uma saída ousada: não existe fato sem interpretação. Para ele, o que chamamos de “realidade” é sempre uma construção. Ou seja, até mesmo o objetivismo é uma espécie de subjetivismo disfarçado de jaleco branco.

Mas isso não quer dizer que tudo seja relativo. Nietzsche não é um libertino epistemológico. O que ele quer dizer é que a realidade é uma batalha de interpretações. Algumas vencem, outras murcham. Não porque sejam mais verdadeiras, mas porque são mais fortes, mais convincentes, mais úteis.

A busca de um meio do caminho

Hoje, muitos filósofos preferem falar em intersubjetividade — uma ponte entre o mundo pessoal e o mundo comum. Não é nem o absoluto frio do objetivismo, nem o caos solipsista do subjetivismo. É a ideia de que compartilhamos sentidos, narrativas, significados. A cultura, a linguagem e os valores são construções intersubjetivas: nem estão lá no mundo puro, nem só dentro da nossa cabeça. Estão entre nós.

A chaleira da minha cozinha, por exemplo, é um objeto físico, mas também é o símbolo da pausa, do mate, da memória afetiva. Ela existe em dois mundos: no da física e no do afeto. O subjetivismo a aquece, o objetivismo a estrutura. E nós vivemos no intervalo entre essas duas forças.

Olhar e ser olhado

No fundo, talvez o maior desafio não seja escolher entre objetivismo ou subjetivismo, mas aprender a habitar essa tensão. Como quem vê o reflexo no espelho e, ao mesmo tempo, tenta entender a face que o espelho reflete. A realidade é um pouco como aquela chaleira: ferve quando a gente não está olhando, mas parece querer dizer algo quando nos aproximamos.

Talvez filosofar seja isso: aquecer a água do pensamento até que o vapor forme perguntas. E então, entre a razão objetiva e o sentimento subjetivo, servir um mate morno com a dúvida no lugar do açúcar.

quarta-feira, 30 de abril de 2025

Máscaras e Espelhos

 

Um Ensaio Sobre Representação e Expressão

Outro dia, parado no trânsito e observando as pessoas pelos retrovisores, tive um pensamento estranho: será que nos representamos mais do que nos expressamos? A moça na moto, com sua jaqueta cheia de patches, parecia carregar uma bandeira de quem ela queria ser. O rapaz no carro ao lado, ajustando o cabelo no espelho interno, talvez também estivesse ensaiando uma versão de si. E eu, ali, refletindo e me julgando filosófico... não era outra forma de representação?

Afinal, na vida cotidiana, representar e expressar se misturam o tempo todo, como se estivéssemos sempre num teatro, ora tentando ser fiéis ao que sentimos, ora ajustando o roteiro para a plateia.

Mas existe uma linha divisória entre um e outro? Ou tudo que somos diante do mundo já é, inevitavelmente, uma representação?

A máscara inevitável

Platão já nos alertava, no mito da caverna, que o que vemos e mostramos são apenas sombras da realidade. Para ele, a representação nunca captura a essência: é sempre uma cópia distante, um eco imperfeito. Mesmo quando tentamos nos expressar genuinamente, o que chega ao outro é uma sombra da nossa intenção.

Nietzsche, por outro lado, mais desconfiado da "verdade" e mais amigo da vida, sugeriria que não há nada por trás da máscara — a máscara é tudo o que temos. Na sua visão, expressar-se e representar-se não seriam opostos: seriam a mesma dança, pois o "eu verdadeiro" que desejamos expressar é, ele mesmo, uma invenção artística, construída e remodelada constantemente.

Assim, até nossa "expressão mais autêntica" seria, de certo modo, uma performance.

Quando representar é criar

Para além da denúncia platônica da ilusão e da ironia nietzschiana sobre a máscara, Gilles Deleuze nos oferece uma chave inovadora: ele propõe que a representação é uma prisão, pois tenta encaixar a multiplicidade da vida em moldes pré-existentes. Expressar, para Deleuze, seria não repetir formas, mas inventar novas possibilidades de ser.
Assim, verdadeira expressão é algo criador: não representar algo já dado, mas fazer nascer o que ainda não existe.

Pensemos no exemplo mais simples: uma criança brincando. Ela não está representando "uma criança brincando" — ela está sendo, de forma livre e inventiva, um novo modo de estar no mundo. E é justamente por isso que sua expressão é tão poderosa.

Representação: o conforto. Expressão: o risco.

No cotidiano, representar é confortável: agimos como o bom funcionário, o amigo leal, o cidadão consciente — papéis conhecidos, que nos protegem do vazio e da dúvida.
Expressar-se, no entanto, é perigoso: é lançar-se num território sem mapas, onde podemos ser incompreendidos, rejeitados ou, mais assustador ainda, não reconhecidos nem por nós mesmos.

Por isso, muitos de nós preferimos vestir a máscara da representação: porque nos dá uma identidade clara, mesmo que apertada.

E aqueles raros momentos de expressão verdadeira, quando emergem, nos deixam nus, desarmados — mas também mais vivos.

Em busca de uma expressão mais leve

Talvez a solução esteja em uma convivência mais serena entre as duas forças. Reconhecer que sempre haverá representação (porque o mundo precisa de signos para nos entender) mas não perder a centelha da expressão (que é a nossa potência criadora).

Merleau-Ponty, com sua filosofia da percepção, apontava que o corpo é já expressão, antes de qualquer palavra ou papel social. Não escolhemos "representar" nossa alegria ao rir: nós a encarnamos.

Talvez devêssemos reaprender a confiar no corpo e nos gestos — nessas expressões primeiras — mais do que nas imagens que tentamos controlar.

Num mundo saturado de performances, onde o Instagram, o LinkedIn e até a conversa no elevador são arenas de representação, expressar-se é quase um ato de resistência.

Talvez a filosofia nos diga, em suas entrelinhas, que não há como escapar totalmente da representação — mas que podemos, ainda assim, tentar respirar dentro dela.
E quem sabe, como a moça da moto e o rapaz do retrovisor, possamos nos divertir um pouco com as máscaras que vestimos... sem esquecer que, às vezes, a melhor expressão é aquela que nem tentamos controlar.

sexta-feira, 18 de abril de 2025

Metamorfose Humana

Acordei certa manhã com um pressentimento esquisito. O corpo estava o mesmo, mas o mundo ao redor parecia diferente. O café não tinha gosto, os vizinhos evitavam conversa, e o espelho, embora devolvesse meu rosto, me parecia um retrato antigo de alguém que já não sou mais. Não precisei virar um inseto gigante pra sentir que algo tinha virado de ponta-cabeça — bastou a rotina continuar igual enquanto, por dentro, tudo mudava. Kafka, com sua Metamorfose, não escreveu sobre uma barata. Escreveu sobre nós.

O inseto não é Gregor: somos nós.

Gregor Samsa não se transforma, ele revela. O inseto sempre esteve ali, escondido sob a polidez de quem acorda cedo, pega trem lotado, aguenta chefe, traz dinheiro pra casa e nem se pergunta mais se é feliz. O que espanta sua família não é a forma grotesca que ele assume, mas o fato de não poder mais disfarçar. Aquela carapaça é apenas a versão visível do que todos preferem ignorar: o ser humano deformado pela obrigação e pela solidão.

No nosso cotidiano, quantos “Gregor Samsa” conhecemos? Gente que vive para os outros, que se afasta de si em nome de um papel social, que um dia acorda e não se reconhece mais. Pior ainda: que os outros olham e já não sabem como lidar com aquilo. E o mais cruel? Nem tentam.

A metamorfose não começa com o corpo.

A verdadeira metamorfose não é o que acontece com Gregor, mas com os outros. A irmã, que no início o alimenta com piedade, acaba por se cansar. Os pais, antes apenas confusos, passam a desejar que ele suma. Isso é familiar: quando deixamos de corresponder às expectativas, nos tornamos incômodos. Ser diferente é suportável até o momento em que isso exige mudança nos outros.

Quantos “insetos” já vimos largados pelos cantos? Gente que teve um colapso emocional e foi tratada como problema. Gente que saiu da norma — trocou de carreira, de gênero, de religião — e passou a ser vista como inconveniente. Kafka escancara o que a sociedade esconde: a intolerância ao que escapa da função utilitária.

O silêncio como grito

Gregor não fala. E ninguém tenta entender seus sons. Isso lembra aquelas conversas em que a gente se sente transparente, em que até tenta explicar o que sente, mas as palavras voltam como se tivessem batido em vidro. A incomunicabilidade em Kafka é desesperadora porque é familiar. O que é mais cotidiano do que não ser ouvido?

A metamorfose, no fundo, não é o corpo que muda. É a incapacidade de ser traduzido, de continuar aceito num mundo que só entende produtividade, aparência, obediência. Gregor para de trabalhar? É descartável. Ele para de agradar? É um peso morto.

A filosofia por trás da barata

Walter Benjamin via na obra de Kafka o eco de um mundo em colapso espiritual. Para ele, a metáfora da metamorfose revelava uma alienação sem cura. Mas podemos ir além. Talvez a metamorfose seja, também, um chamado. Um rasgo no tecido do costume, uma chance de enxergar que vivemos segundo formas que não escolhemos. Gregor é o herói trágico de uma era sem poesia: nos mostra como a estrutura social pode esmagar o humano.

E se metamorfosear fosse o único caminho?

Talvez Kafka tenha escrito um aviso disfarçado. E se precisamos, todos nós, passar pela metamorfose? Não pra virar inseto, mas pra deixar morrer o que já não somos. O incômodo, a rejeição, o isolamento – tudo isso pode ser sinal de que não cabemos mais na velha pele. E isso, por estranho que pareça, pode ser um bom sinal.

Porque, no fundo, metamorfosear-se é parar de fingir que está tudo bem. É um gesto de ruptura. E, embora o mundo talvez não goste, pode ser o início de algo muito mais verdadeiro. Até que um dia, quem sabe, a gente olhe no espelho e diga: agora sim, sou eu. Mesmo que com antenas.