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sábado, 2 de agosto de 2025

Desver

O gesto de desfazer os enganos

Ver não é apenas enxergar. É interpretar, filtrar, significar. Quando olhamos o mundo, não vemos o mundo em si, mas a nossa versão dele: atravessada por crenças, feridas, desejos, esperanças. O conceito de desver, então, propõe algo radical: não é ver mais, mas ver de novo — ou melhor, ver sem os enganos.

Desver é desfazer as distorções. É quando nos damos conta de que aquilo que parecia certo era apenas conveniente; que aquilo que chamávamos de amor era apego; que o medo que chamávamos de prudência era só fuga. Desver é um ato filosófico porque exige coragem para questionar as lentes pelas quais olhamos a realidade.

O filósofo francês Maurice Merleau-Ponty dizia que a percepção é sempre situada, ou seja, não existe olhar puro, neutro. Nossa experiência é encarnada, histórica, subjetiva. E, por isso mesmo, a tarefa de desver é uma pedagogia do corpo e da mente. É desaprender para ver com mais verdade — ou com menos ilusão.

No cotidiano, desver pode significar perceber que o colega de trabalho que considerávamos indiferente, na verdade, era tímido — e não rude. Ou entender que aquele sonho antigo de ser médico não era seu, mas um desejo projetado da família. Às vezes, desver é acordar de um casamento onde confundimos rotina com amor. Outras vezes, é olhar para o espelho e perceber que o corpo que rejeitamos por tanto tempo não era feio — apenas diferente do padrão.

Há também o desver político: aquele momento em que alguém percebe que sua visão de mundo vinha sendo moldada mais por medo do que por valores. Ou o desver espiritual: quando percebemos que a fé que tínhamos era medo de errar, e não confiança no mistério.

Desver é um gesto espiritual, no sentido de que implica purificação da visão. No Bhagavad Gita, há um trecho em que Krishna concede a Arjuna uma “visão divina” para que ele veja a realidade como ela é, além da forma. Esse "terceiro olho" talvez não esteja no meio da testa, mas sim na capacidade de desfazer os enganos que criamos sobre o mundo e sobre nós mesmos.

Desver não é negar o que se viu, mas perceber que se viu através de véus. E que a lucidez, como uma lâmina de vento, pode retirar esses véus com delicadeza — ou com brutalidade. Às vezes, desver dói. Porque nos obriga a sair da zona de conforto e encarar que muito do que tomamos como verdade era só conveniência, medo ou costume.

No fim, talvez não vejamos mais do que antes. Mas vemos melhor.

sexta-feira, 20 de junho de 2025

Olhos Vãos

 

Quando os olhos não conseguem enxergar...

Sabe aquele momento estranho em que a gente olha para algo — uma cena, uma pessoa, um gesto — e sente que tem "mais ali" do que os olhos podem captar? É como se a visão, que tanta confiança nos dá, de repente falhasse. A realidade parece maior do que o alcance da retina. E a cabeça também falha, porque o pensamento lógico não dá conta desse "mais". Nessas horas, sentimos o limite do racional, o limite do visível.

É o que acontece quando tentamos entender um sentimento que nos ultrapassa — como o amor que chega sem motivo, a tristeza sem causa, a fé sem prova. Ou quando lemos um poema que nos emociona, mas que, se tentarmos explicar, escapa por entre as palavras.

Os gregos antigos falavam disso com respeito: há algo que está além do logos, além da palavra, além do cálculo. Platão dizia que o verdadeiro conhecimento não é o que os olhos veem, mas o que a alma reconhece — reminiscência de algo maior. No Oriente, os mestres zen sempre desconfiaram da lógica: para eles, o "satori", a iluminação, não nasce do raciocínio, mas do instante em que o pensamento para e o real se revela nu.

Lacan também cutucou essa ferida: o real é o que resiste ao sentido, ao símbolo, ao entendimento. Ele está ali, no buraco do que não se diz — por isso nos inquieta, nos escapa, nos comove.

No cotidiano, isso se mostra nas pequenas coisas: quando você tenta consolar um amigo em luto e percebe que nenhuma palavra serve. Quando uma criança te olha fixo, como se soubesse algo que você esqueceu. Quando você sente uma saudade sem nome, um medo sem forma.

Talvez aceitar que os olhos não veem tudo, que a razão não alcança tudo, seja uma espécie de sabedoria. Como dizia o filósofo francês Blaise Pascal: "O coração tem razões que a própria razão desconhece".

Há um saber além do saber. Uma compreensão que não é raciocínio, mas presença. Às vezes, tudo o que podemos fazer é fechar os olhos e sentir — como quem tateia no escuro, confiando mais no corpo, no instinto, do que na luz.

E nisso há um alívio. Porque quem aceita não entender tudo já deu o primeiro passo para entender o essencial.