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quinta-feira, 29 de maio de 2025

Subordinação da Imaginação

Quando o delírio pede licença ao real

Certo dia, no meio de uma reunião virtual que parecia não ter fim, peguei-me desenhando mentalmente uma casa flutuante, daquelas que desafiam a gravidade como nos filmes de Miyazaki. Tinha escadas em espiral, janelas redondas e girassóis plantados no teto. Um devaneio puro, interrompido bruscamente pelo som do meu nome na chamada. Voltamos à pauta. Voltamos ao “possível”. Mas ali ficou a pergunta: por que a imaginação, essa faculdade tão livre, precisa se subordinar à lógica do que é viável? Por que ela, que deveria ser soberana, age como funcionária do mundo pragmático?

Esse é o ponto de partida para este ensaio: a subordinação da imaginação – um fenômeno que nos obriga a dobrar os voos da mente à régua do cotidiano. Há quem diga que isso é maturidade. Outros chamariam de colonização da alma.

A imaginação como potência criadora

Para começar, vale lembrar o que dizia Spinoza: “A imaginação é uma forma de conhecimento, ainda que confusa.” Em sua Ética, ele distingue entre três gêneros de conhecimento: a opinião ou imaginação, a razão e a ciência intuitiva. A imaginação, nesse sistema, é o primeiro degrau – um saber misturado, impreciso, mas ainda assim essencial. Sem ela, não há sequer o impulso para conhecer.

No entanto, em vez de ser cultivada como potência criadora, a imaginação foi sendo domesticada. Na vida adulta, ela se torna produtiva ou é descartada. Ela é bem-vinda apenas quando serve para projetar lucros, inovar em startups, prever riscos. A escola cobra da criança que use a criatividade… mas dentro da margem. A margem do tema, do tempo, do bom senso.

A imaginação como tapete mágico

Imaginar é, muitas vezes, como sentar num tapete mágico que nos leva a terras distantes – não apenas geografias exóticas, mas também estados da alma que desconhecíamos. Quando crianças, esse voo era natural: bastava fechar os olhos para atravessar desertos, florestas, planetas. À medida que crescemos, vão nos dizendo para dobrar esse tapete e guardá-lo no fundo do armário das inutilidades. Mas ele continua lá, esperando. A cada vez que nos deixamos levar por uma música, por uma história, por um instante de devaneio no ônibus ou na fila do banco, o tapete se sacode e nos convida a embarcar. A imaginação, nesse sentido, é uma forma de viagem sem passaporte, uma recusa ao confinamento do presente. E talvez seja isso que tanto assuste: sua capacidade de romper com a estabilidade, de nos mostrar que a vida não está dada, mas pode ser reinventada.

A imaginação entre educação e trabalho

Na escola e no trabalho, a imaginação muitas vezes é tratada como um adorno – bem-vindo quando ilustra, mas indesejável quando questiona. A criança que sonha acordada é chamada de distraída; o profissional que propõe caminhos novos é acusado de não seguir o escopo. E no entanto, como bem lembrou Paulo Freire, educar é também libertar. Não há libertação sem imaginação – sem a capacidade de conceber mundos possíveis, de romper com o “destino” que nos deram. Em ambientes corporativos, fala-se muito em “pensar fora da caixa”, mas o que se espera é que a nova ideia ainda caiba na planilha. Quando a imaginação se atreve a mudar a caixa inteira, ela assusta. Por isso, formar e trabalhar com imaginação requer coragem institucional – e humildade para ouvir o que ainda não tem forma.

Quando imaginar se torna suspeito

Num mundo marcado pela vigilância e pela cobrança de eficiência, imaginar demais pode ser visto como fuga, ou pior: desvio. O delírio virou patologia. A fantasia virou produto (e só é bem aceita quando empacotada na forma de série de streaming). Pensadores como Herbert Marcuse, em O Homem Unidimensional, denunciam essa limitação da imaginação imposta pelas sociedades tecnocráticas: tudo o que não pode ser medido, vendido ou aplicado é descartado como inútil.

A imaginação crítica – aquela que poderia propor mundos alternativos, formas de vida diferentes, relações mais sensíveis – é silenciada. E o mais curioso é que essa censura nem sempre vem de fora. Muitas vezes, a própria pessoa desiste de imaginar para não parecer ingênua, ou para não sofrer com a diferença entre o que imagina e o que vive.

Imaginar como resistência

Mas há também quem resista. Há aqueles que fazem da imaginação uma forma de subversão. O filósofo brasileiro Vladimir Safatle fala da “imaginação radical” como uma ruptura com os modos hegemônicos de vida. Para ele, a imaginação não é apenas devaneio, mas gesto político. Imaginar outra forma de trabalho, de amor, de cidade, é já começar a minar a hegemonia do que nos parece “normal”.

É nesse ponto que a imaginação se rebela contra sua subordinação. Quando ela recusa o papel de ferramenta e se afirma como linguagem própria. Quando ela não quer mais servir para nada – apenas para ser, para provocar, para cantar uma possibilidade.

Considerações para quem sonha acordado

Talvez devêssemos reaprender a imaginar como quem escuta um segredo. Não para tirar algo dali, mas para preservar a vibração. A imaginação não precisa sempre se transformar em projeto, ação ou consequência. Às vezes, ela só quer existir em estado de suspensão, como um pensamento que dança.

E se aceitássemos isso – que imaginar não é perder tempo, mas criar tempo?

Voltei à reunião virtual. O colega ainda falava sobre metas. Mas eu, sem culpa, imaginei um girassol abrindo devagar no teto da sala. Não para resolver nada. Só para lembrar que há mundos onde o impossível mora com tranquilidade.


sábado, 10 de maio de 2025

Pau de Chuva

Falácia do controle ilusório e a fé secreta na coincidência

Outro dia, enquanto esperava o ônibus sob um céu que prometia tempestade, ouvi um senhor dizer: “Vai chover. Ontem fiz minha simpatia.” Fiquei olhando para ele, curioso para saber que tipo de pacto ele havia feito com as nuvens. Ele não explicou. Apenas sorria, seguro de que sua ação mística — ou simbólica, ou ritualística — causaria a chuva. E naquele instante me veio à mente a velha falácia do pau de chuva.

Para quem não conhece, o “pau de chuva” é um instrumento musical que, ao ser virado, faz um som que lembra a água caindo. Seu nome virou metáfora para um erro de pensamento muito comum: achar que uma coisa causou a outra só porque veio antes dela. Balanço o pau de chuva, começa a chover — logo, foi minha ação que provocou o efeito. Simples, redondo, sedutor. E totalmente ilusório.

Mas será mesmo que é só uma falácia?

O desejo de encantar o mundo

A falácia do pau de chuva é, sim, um erro lógico clássico — confundimos correlação com causalidade. Mas, filosoficamente, ela revela algo mais profundo: nosso desejo de encantar novamente o mundo, de acreditar que nossas ações têm poder sobre o que está além do nosso controle. É como se disséssemos: “Se o universo não me obedece, então eu invento um modo de fingir que obedece.”

Nietzsche, ao falar sobre os instintos primitivos e o medo do acaso, dizia que preferimos crer no delírio da ordem a aceitar o peso do caos. O ser humano, desde as cavernas, faz danças para a chuva, acende velas para o amor e carrega pedras no bolso para ter sorte. A lógica moderna pode zombar disso, mas a necessidade simbólica permanece — ainda que disfarçada.

Hoje, trocamos o pau de chuva por gráficos, dados e algoritmos. Mas a estrutura emocional é a mesma: queremos controle. Se algo bom acontece depois de uma atitude nossa, por mais irracional que seja, há uma parte secreta da mente que sussurra: “Fui eu.”

A fé na coincidência como modo de viver

O mais curioso é que até mesmo o pensamento científico, tão distante do mágico, às vezes se curva a essa lógica enviesada. Quantas pesquisas são feitas apenas para confirmar algo que já se acredita? Quantas "correlações estatísticas" disfarçam um desejo antigo de encontrar sentido onde só há acúmulo de dados?

A falácia do pau de chuva também vive no coração do marketing, da política, dos conselhos de autoajuda. É comum alguém dizer: “Depois que comecei a acordar às 5h da manhã, tudo mudou.” Talvez tenha mudado mesmo — mas será que foi por isso? Ou será que algo mais estava em movimento?

Essa fé na coincidência nos move. Não é lógica — é uma tentativa poética de viver num mundo que muitas vezes parece indiferente.

O filósofo que comenta do alto da varanda

Bruno Latour, filósofo francês da ciência, diria que a separação entre o racional e o irracional talvez seja uma invenção moderna. Em vez de ridicularizar os paus de chuva contemporâneos, ele nos convida a olhar para eles como traduções simbólicas de desejos reais. O problema não é acreditar que balançar um instrumento faz chover. O problema é não perceber o que estamos realmente tentando provocar: sentido, pertencimento, intervenção no invisível.

Conclusão com as mãos molhadas

No fim da tarde, como previsto pelo senhor da parada, choveu. Não sei se foi a simpatia dele ou apenas o ciclo natural das coisas. Mas, por um instante, desejei que tivesse sido ele mesmo — o velho, com seus gestos secretos e sua confiança gentil no mundo.

A falácia do pau de chuva, afinal, pode ser um erro lógico… mas talvez seja também um acerto humano: a lembrança de que ainda acreditamos que podemos conversar com o céu — mesmo que ele não responda.


sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Paranoia

Entre a Cautela e o Delírio

Outro dia, ouvi alguém cochichando em um café. Automaticamente, meu cérebro lançou uma hipótese: estavam falando de mim. Claro que não estavam, mas, por um instante, a paranoia fez seu trabalho – aquele impulso irracional de achar que tudo gira ao nosso redor. Todos já sentimos algo parecido, uma ligeira desconfiança que se infiltra sem convite, transformando coincidências em complôs. Mas o que realmente define a paranoia? E até que ponto ela é um desvio ou apenas uma extensão exagerada de um mecanismo natural da mente?

A paranoia é, essencialmente, uma percepção distorcida da realidade, em que eventos casuais são interpretados como parte de uma conspiração contra o sujeito. Mas se olharmos de perto, há um espectro amplo de paranoia: desde uma desconfiança cotidiana até delírios persecutórios graves. O filósofo Michel Foucault, em sua análise do poder e das instituições, nos lembra que o olhar vigilante do outro pode moldar a nossa subjetividade. Será, então, que a paranoia também nasce de um mundo que constantemente nos observa e avalia?

De certa forma, a paranoia pode ser vista como um mecanismo de sobrevivência. O ser humano evoluiu para detectar padrões e ameaças no ambiente, antecipando perigos. No entanto, quando essa habilidade se torna hipertrofiada, enxergamos armadilhas onde há apenas coincidências. Jean-Paul Sartre descrevia algo parecido ao falar sobre "o olhar do outro" em sua filosofia existencialista: a consciência de que somos vistos nos coloca em um estado de alerta constante, como se estivéssemos sempre sob julgamento.

Por outro lado, há a paranoia coletiva, aquela que se espalha como um incêndio. Em tempos de redes sociais e teorias da conspiração, a paranoia não é apenas individual, mas se torna um fenômeno social. Quando grupos inteiros passam a desconfiar sistematicamente de instituições, da ciência e da própria realidade, caímos em um terreno perigoso onde qualquer fato pode ser reinterpretado como parte de uma grande manipulação oculta.

No fim, a paranoia nos convida a refletir sobre a tênue fronteira entre a prudência e o delírio. Um pouco de desconfiança pode nos proteger, mas quando a suspeita se torna regra e não exceção, corremos o risco de perder o contato com a realidade. Talvez a solução esteja em cultivar uma vigilância equilibrada – atentos ao mundo, mas sem nos tornarmos prisioneiros de nossos próprios fantasmas.