Quando o delírio pede licença ao real
Certo
dia, no meio de uma reunião virtual que parecia não ter fim, peguei-me
desenhando mentalmente uma casa flutuante, daquelas que desafiam a gravidade
como nos filmes de Miyazaki. Tinha escadas em espiral, janelas redondas e
girassóis plantados no teto. Um devaneio puro, interrompido bruscamente pelo
som do meu nome na chamada. Voltamos à pauta. Voltamos ao “possível”. Mas ali
ficou a pergunta: por que a imaginação, essa faculdade tão livre, precisa se
subordinar à lógica do que é viável? Por que ela, que deveria ser soberana, age
como funcionária do mundo pragmático?
Esse
é o ponto de partida para este ensaio: a subordinação da imaginação – um
fenômeno que nos obriga a dobrar os voos da mente à régua do cotidiano. Há quem
diga que isso é maturidade. Outros chamariam de colonização da alma.
A
imaginação como potência criadora
Para
começar, vale lembrar o que dizia Spinoza: “A imaginação é uma forma de
conhecimento, ainda que confusa.” Em sua Ética, ele distingue entre três
gêneros de conhecimento: a opinião ou imaginação, a razão e a ciência
intuitiva. A imaginação, nesse sistema, é o primeiro degrau – um saber
misturado, impreciso, mas ainda assim essencial. Sem ela, não há sequer o
impulso para conhecer.
No
entanto, em vez de ser cultivada como potência criadora, a imaginação foi sendo
domesticada. Na vida adulta, ela se torna produtiva ou é descartada. Ela é
bem-vinda apenas quando serve para projetar lucros, inovar em startups, prever
riscos. A escola cobra da criança que use a criatividade… mas dentro da margem.
A margem do tema, do tempo, do bom senso.
A
imaginação como tapete mágico
Imaginar
é, muitas vezes, como sentar num tapete mágico que nos leva a terras distantes
– não apenas geografias exóticas, mas também estados da alma que
desconhecíamos. Quando crianças, esse voo era natural: bastava fechar os olhos
para atravessar desertos, florestas, planetas. À medida que crescemos, vão nos
dizendo para dobrar esse tapete e guardá-lo no fundo do armário das
inutilidades. Mas ele continua lá, esperando. A cada vez que nos deixamos levar
por uma música, por uma história, por um instante de devaneio no ônibus ou na
fila do banco, o tapete se sacode e nos convida a embarcar. A imaginação, nesse
sentido, é uma forma de viagem sem passaporte, uma recusa ao confinamento do
presente. E talvez seja isso que tanto assuste: sua capacidade de romper com a
estabilidade, de nos mostrar que a vida não está dada, mas pode ser
reinventada.
A
imaginação entre educação e trabalho
Na
escola e no trabalho, a imaginação muitas vezes é tratada como um adorno –
bem-vindo quando ilustra, mas indesejável quando questiona. A criança que sonha
acordada é chamada de distraída; o profissional que propõe caminhos novos é
acusado de não seguir o escopo. E no entanto, como bem lembrou Paulo Freire,
educar é também libertar. Não há libertação sem imaginação – sem a capacidade
de conceber mundos possíveis, de romper com o “destino” que nos deram. Em
ambientes corporativos, fala-se muito em “pensar fora da caixa”, mas o que se
espera é que a nova ideia ainda caiba na planilha. Quando a imaginação se
atreve a mudar a caixa inteira, ela assusta. Por isso, formar e trabalhar com
imaginação requer coragem institucional – e humildade para ouvir o que ainda
não tem forma.
Quando
imaginar se torna suspeito
Num
mundo marcado pela vigilância e pela cobrança de eficiência, imaginar demais
pode ser visto como fuga, ou pior: desvio. O delírio virou patologia. A
fantasia virou produto (e só é bem aceita quando empacotada na forma de série
de streaming). Pensadores como Herbert Marcuse, em O Homem Unidimensional,
denunciam essa limitação da imaginação imposta pelas sociedades tecnocráticas:
tudo o que não pode ser medido, vendido ou aplicado é descartado como inútil.
A
imaginação crítica – aquela que poderia propor mundos alternativos, formas de
vida diferentes, relações mais sensíveis – é silenciada. E o mais curioso é que
essa censura nem sempre vem de fora. Muitas vezes, a própria pessoa desiste de
imaginar para não parecer ingênua, ou para não sofrer com a diferença entre o
que imagina e o que vive.
Imaginar
como resistência
Mas
há também quem resista. Há aqueles que fazem da imaginação uma forma de
subversão. O filósofo brasileiro Vladimir Safatle fala da “imaginação radical”
como uma ruptura com os modos hegemônicos de vida. Para ele, a imaginação não é
apenas devaneio, mas gesto político. Imaginar outra forma de trabalho, de amor,
de cidade, é já começar a minar a hegemonia do que nos parece “normal”.
É
nesse ponto que a imaginação se rebela contra sua subordinação. Quando ela
recusa o papel de ferramenta e se afirma como linguagem própria. Quando ela não
quer mais servir para nada – apenas para ser, para provocar, para cantar uma
possibilidade.
Considerações
para quem sonha acordado
Talvez
devêssemos reaprender a imaginar como quem escuta um segredo. Não para tirar
algo dali, mas para preservar a vibração. A imaginação não precisa sempre se
transformar em projeto, ação ou consequência. Às vezes, ela só quer existir em
estado de suspensão, como um pensamento que dança.
E
se aceitássemos isso – que imaginar não é perder tempo, mas criar tempo?
Voltei
à reunião virtual. O colega ainda falava sobre metas. Mas eu, sem culpa,
imaginei um girassol abrindo devagar no teto da sala. Não para resolver nada.
Só para lembrar que há mundos onde o impossível mora com tranquilidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário