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sábado, 10 de maio de 2025

Pau de Chuva

Falácia do controle ilusório e a fé secreta na coincidência

Outro dia, enquanto esperava o ônibus sob um céu que prometia tempestade, ouvi um senhor dizer: “Vai chover. Ontem fiz minha simpatia.” Fiquei olhando para ele, curioso para saber que tipo de pacto ele havia feito com as nuvens. Ele não explicou. Apenas sorria, seguro de que sua ação mística — ou simbólica, ou ritualística — causaria a chuva. E naquele instante me veio à mente a velha falácia do pau de chuva.

Para quem não conhece, o “pau de chuva” é um instrumento musical que, ao ser virado, faz um som que lembra a água caindo. Seu nome virou metáfora para um erro de pensamento muito comum: achar que uma coisa causou a outra só porque veio antes dela. Balanço o pau de chuva, começa a chover — logo, foi minha ação que provocou o efeito. Simples, redondo, sedutor. E totalmente ilusório.

Mas será mesmo que é só uma falácia?

O desejo de encantar o mundo

A falácia do pau de chuva é, sim, um erro lógico clássico — confundimos correlação com causalidade. Mas, filosoficamente, ela revela algo mais profundo: nosso desejo de encantar novamente o mundo, de acreditar que nossas ações têm poder sobre o que está além do nosso controle. É como se disséssemos: “Se o universo não me obedece, então eu invento um modo de fingir que obedece.”

Nietzsche, ao falar sobre os instintos primitivos e o medo do acaso, dizia que preferimos crer no delírio da ordem a aceitar o peso do caos. O ser humano, desde as cavernas, faz danças para a chuva, acende velas para o amor e carrega pedras no bolso para ter sorte. A lógica moderna pode zombar disso, mas a necessidade simbólica permanece — ainda que disfarçada.

Hoje, trocamos o pau de chuva por gráficos, dados e algoritmos. Mas a estrutura emocional é a mesma: queremos controle. Se algo bom acontece depois de uma atitude nossa, por mais irracional que seja, há uma parte secreta da mente que sussurra: “Fui eu.”

A fé na coincidência como modo de viver

O mais curioso é que até mesmo o pensamento científico, tão distante do mágico, às vezes se curva a essa lógica enviesada. Quantas pesquisas são feitas apenas para confirmar algo que já se acredita? Quantas "correlações estatísticas" disfarçam um desejo antigo de encontrar sentido onde só há acúmulo de dados?

A falácia do pau de chuva também vive no coração do marketing, da política, dos conselhos de autoajuda. É comum alguém dizer: “Depois que comecei a acordar às 5h da manhã, tudo mudou.” Talvez tenha mudado mesmo — mas será que foi por isso? Ou será que algo mais estava em movimento?

Essa fé na coincidência nos move. Não é lógica — é uma tentativa poética de viver num mundo que muitas vezes parece indiferente.

O filósofo que comenta do alto da varanda

Bruno Latour, filósofo francês da ciência, diria que a separação entre o racional e o irracional talvez seja uma invenção moderna. Em vez de ridicularizar os paus de chuva contemporâneos, ele nos convida a olhar para eles como traduções simbólicas de desejos reais. O problema não é acreditar que balançar um instrumento faz chover. O problema é não perceber o que estamos realmente tentando provocar: sentido, pertencimento, intervenção no invisível.

Conclusão com as mãos molhadas

No fim da tarde, como previsto pelo senhor da parada, choveu. Não sei se foi a simpatia dele ou apenas o ciclo natural das coisas. Mas, por um instante, desejei que tivesse sido ele mesmo — o velho, com seus gestos secretos e sua confiança gentil no mundo.

A falácia do pau de chuva, afinal, pode ser um erro lógico… mas talvez seja também um acerto humano: a lembrança de que ainda acreditamos que podemos conversar com o céu — mesmo que ele não responda.


sábado, 12 de outubro de 2024

Eternos Sofismas

Em tempos de eleição, os sofismas ganham uma força especial nas campanhas políticas. Com a urgência de conquistar votos, os candidatos recorrem a argumentos que, embora pareçam sólidos, muitas vezes ocultam falácias. Propagandas políticas são terreno fértil para o uso de sofismas, pois apelam às emoções, simplificam questões complexas e criam falsas dicotomias. Frases como “se você não votar em mim, o país vai piorar” ou “somos a única solução para os problemas” exemplificam essas falácias. Em vez de um debate honesto sobre as nuances das propostas, vemos uma distorção da verdade, onde o objetivo é manipular o eleitor e não informá-lo.

Nesse cenário, entender os sofismas é mais do que uma questão de lógica; é uma ferramenta essencial para não se deixar enganar por discursos que, embora persuasivos, estão longe da realidade. Afinal, em um período onde a escolha do eleitor define o futuro do país, distinguir entre argumentos válidos e falácias disfarçadas de promessas é crucial para uma decisão consciente.

Vivemos rodeados de argumentos que, à primeira vista, parecem verdadeiros, mas que, com um olhar mais atento, revelam sua natureza ilusória: os sofismas. A todo momento, encontramos justificativas que se encaixam perfeitamente em nossas crenças ou que parecem fazer sentido, mas que, no fundo, distorcem a realidade. Eles são como truques mentais, mecanismos engenhosos que escondem a fragilidade da lógica sob uma camada de verossimilhança.

No cotidiano, é comum nos depararmos com o sofisma disfarçado de argumento legítimo. Pense em uma situação comum, como uma campanha publicitária que promete “a felicidade” em forma de produto. "Compre isso, e você será feliz", nos dizem. O sofisma aqui é simples: associar a felicidade a um bem material é uma falácia, mas, ao mesmo tempo, a ideia ressoa tão bem com nossos desejos e esperanças que acabamos acreditando. Esse é o poder do sofisma: ele se apoia naquilo que queremos ouvir, naquilo que já estamos predispostos a aceitar.

Há algo de eternamente presente nos sofismas. Eles se repetem, se reformulam, mas nunca desaparecem completamente. É como se fossem uma parte intrínseca da comunicação humana, um atalho que muitas vezes tomamos para simplificar a complexidade do mundo. Em debates políticos, por exemplo, o uso de sofismas é uma ferramenta constante. Quantas vezes não ouvimos promessas que, embora lógicas na superfície, se desfazem diante de uma análise mais profunda? Frases como “se você não está comigo, está contra mim” são exemplos de sofismas clássicos, onde se cria uma falsa dicotomia, eliminando qualquer nuance ou complexidade.

O filósofo grego Aristóteles já alertava para o perigo dos sofismas em sua obra Refutação dos Sofismas. Segundo ele, esses argumentos falaciosos possuem o poder de enganar, mas não necessariamente de convencer permanentemente. A questão é que, muitas vezes, nos deixamos seduzir pela facilidade do raciocínio simplista, em vez de confrontarmos a realidade de frente, com todas as suas ambiguidades e incertezas. Somos eternamente vulneráveis ao conforto que um bom sofisma oferece.

Nosso dia a dia está cheio de exemplos sutis. Quando justificamos uma atitude irresponsável com a famosa frase “todo mundo faz isso”, estamos usando o sofisma do apelo à maioria. Se todos fazem, então deve ser aceitável — ou será? Esse tipo de raciocínio evita a reflexão crítica e, ao mesmo tempo, cria uma falsa sensação de segurança, como se estar em grupo significasse estar certo.

Os sofismas também se infiltram nas nossas relações pessoais. Pense em discussões cotidianas onde alguém argumenta: “se você realmente se importasse, faria isso”. Essa é uma falácia emocional, pois coloca a responsabilidade da ação em uma falsa correlação com o sentimento, criando um impasse difícil de quebrar. Nesse caso, o sofisma se mistura com a manipulação, tornando-se uma armadilha perigosa.

Mas por que somos tão suscetíveis a esses enganos? Talvez porque, em algum nível, os sofismas falam diretamente ao nosso desejo de evitar a complexidade. O mundo real é complicado, cheio de nuances, e os sofismas oferecem uma saída fácil, um caminho mais curto para as conclusões. Em vez de questionarmos profundamente, preferimos a comodidade de um raciocínio que se ajusta perfeitamente àquilo que já acreditamos.

No entanto, o grande perigo dos sofismas está exatamente aí: ao aceitarmos essas falsas lógicas, nos afastamos da verdade e, por conseguinte, da possibilidade de uma compreensão mais autêntica do mundo e de nós mesmos. Sofismas não são apenas truques retóricos — eles são também obstáculos ao nosso crescimento intelectual e emocional.

O desafio que se coloca, então, é como escapar desse ciclo de enganos perpétuos. Talvez a resposta esteja na prática constante da dúvida, da investigação, do confronto com a realidade em sua plenitude. É preciso estar alerta, questionar até mesmo aquilo que nos parece inquestionável, e não ceder à tentação das explicações fáceis. Só assim podemos nos libertar dos eternos sofismas que nos cercam e caminhar em direção a uma visão mais clara e honesta do mundo.

Como diria o filósofo e crítico brasileiro Olavo de Carvalho, os sofismas são uma espécie de doença intelectual, pois deformam o entendimento. Ao distorcer a verdade, limitam nossa capacidade de discernir e compreender. Assim, para evitar cair em seus laços, precisamos não apenas de conhecimento, mas de uma disposição vigilante para a reflexão crítica e a autocrítica.


terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Evitando o Espantalho

Quem nunca se deparou com uma discussão acalorada em que um dos lados distorce as palavras do outro para parecer mais convincente? Isso é exatamente o que chamamos de falácia do espantalho, um truque retórico que consiste em distorcer o argumento do oponente para torná-lo mais fraco e mais fácil de refutar. Mas, afinal, por que essa estratégia é tão comum e por que devemos ficar atentos a ela?

Um exemplo corriqueiro e simples da falácia do espantalho pode ocorrer em uma conversa entre amigos sobre preferências de comida. Imagine que Maria e João estão discutindo sobre suas opções para jantar fora. Maria sugere que eles experimentem um restaurante de comida mexicana, enquanto João prefere um restaurante italiano. Em vez de discutir suas preferências de maneira construtiva, eles acabam caindo na falácia do espantalho.

Maria argumenta que a comida mexicana é uma escolha mais emocionante e variada, com sabores vibrantes e pratos tradicionais deliciosos. No entanto, João distorce sua opinião, retratando-a como alguém que não aprecia a culinária italiana e está fechada a novas experiências. Ele exagera a posição de Maria, sugerindo que ela é avessa à ideia de comer em qualquer lugar que não seja mexicano.

Por sua vez, Maria acusa João de ser conservador e limitado em suas escolhas, insistindo apenas em comida italiana. Ela retrata a posição de João como alguém que se recusa a experimentar novas culturas gastronômicas e está preso em sua zona de conforto.

Neste exemplo simples, Maria e João caíram na falácia do espantalho ao distorcerem as opiniões um do outro sobre comida. Em vez de discutirem de maneira construtiva sobre as vantagens e desvantagens de cada opção culinária, eles criaram versões exageradas e distorcidas das preferências um do outro, tornando a discussão menos produtiva e mais polarizada.

Esse exemplo ilustra como a falácia do espantalho pode surgir até mesmo em conversas cotidianas sobre assuntos triviais, quando as pessoas se deixam levar pela emoção ou pela falta de compreensão mútua. É importante estar ciente desses padrões de argumentação para promover um diálogo mais saudável e construtivo em todas as áreas da vida.

Agora vamos sofisticar nossa imaginação, imagine a seguinte situação: você está debatendo sobre os impactos ambientais da agricultura moderna e defende a necessidade de práticas mais sustentáveis. Seu oponente, em vez de abordar seus argumentos diretamente, distorce sua posição, afirmando que você é contra o progresso tecnológico na agricultura e que quer voltar a métodos arcaicos e ineficientes. Aqui está um exemplo clássico da falácia do espantalho em ação.

Essa estratégia retórica é eficaz porque cria uma caricatura da posição do oponente, muitas vezes uma versão exagerada e distorcida, que é mais fácil de atacar. É como se alguém estivesse lutando contra um espantalho no campo: não importa o quão bem você atinja o espantalho, ele nunca irá contra-atacar.

Essa falácia é onipresente em debates políticos, discussões nas redes sociais e até mesmo em conversas cotidianas. Quando alguém desvia o foco do verdadeiro argumento para atacar uma versão distorcida da posição do outro, estamos diante de um espantalho intelectual.

Outro exemplo que dá pano para manga, imagine um debate acalorado sobre políticas de saúde entre duas pessoas com visões políticas opostas: Ana, que defende um sistema de saúde totalmente público e universal, e João, que acredita em um modelo misto, com participação tanto do setor público quanto do setor privado.

Ana argumenta que um sistema de saúde público e universal garantiria acesso igualitário aos serviços médicos para toda a população, independentemente de sua condição socioeconômica. Ela destaca que, em um sistema como esse, ninguém seria deixado para trás por falta de recursos financeiros e que a saúde seria tratada como um direito fundamental.

Por outro lado, João argumenta que um sistema puramente público pode resultar em longas filas de espera, falta de incentivo à inovação e baixa qualidade dos serviços. Ele defende a introdução de parcerias com o setor privado para aumentar a eficiência e oferecer opções aos cidadãos que desejam cuidados de saúde mais personalizados e ágeis.

Durante o debate, Ana acusa João de defender um sistema que prioriza os interesses das empresas privadas em detrimento da saúde da população mais vulnerável. Ela retrata a posição de João como uma tentativa de privatizar o sistema de saúde e exclui os mais necessitados em nome do lucro corporativo.

João, por sua vez, acusa Ana de ser ingênua ao confiar exclusivamente no governo para fornecer serviços de saúde eficientes e de qualidade. Ele argumenta que a competição trazida pelo setor privado pode estimular a inovação e melhorar a qualidade dos serviços, beneficiando a todos, inclusive aqueles que dependem do sistema público.

Neste debate, ambos os lados estão envolvidos na falácia do espantalho. Ana distorce a posição de João ao retratá-lo como alguém que quer abolir completamente o sistema público de saúde em favor do lucro privado, enquanto João exagera a posição de Ana ao retratá-la como alguém que confia cegamente no governo para resolver todos os problemas de saúde.

É crucial reconhecer que tanto Ana quanto João têm preocupações legítimas e válidas sobre o sistema de saúde, e que um debate produtivo requer honestidade intelectual e respeito mútuo pelas diferentes perspectivas. Enquanto continuarem a construir e atacar espantalhos, será difícil encontrar soluções eficazes e equitativas para os desafios complexos que envolvem políticas de saúde.

Agora ficou para o final o que nós brasileiros tanto discutimos: corrupção; imagine uma conversa entre Pedro e Maria, ambos engajados em uma discussão acalorada sobre políticos corruptos. Pedro defende o político A, enquanto Maria está do lado do político B. Ambos os políticos enfrentam acusações de corrupção, mas Pedro e Maria têm opiniões firmes sobre a inocência de seus respectivos candidatos.

Pedro argumenta veementemente que todas as acusações de corrupção contra o político A são fabricadas e politicamente motivadas. Ele cita declarações de apoio de outros membros de seu partido, alegando que o político A está sendo alvo de uma campanha difamatória por seus oponentes políticos, que querem manchar sua reputação para ganhar vantagem nas eleições.

Por outro lado, Maria rebate as afirmações de Pedro, insistindo que as acusações contra o político B são completamente infundadas. Ela aponta para uma série de notícias e fontes que questionam a credibilidade das investigações, sugerindo que há uma conspiração para desacreditar o político B e minar sua popularidade entre os eleitores.

À medida que a discussão se intensifica, Pedro e Maria começam a lançar acusações um contra o outro. Pedro sugere que Maria está sendo ingênua e manipulada pela mídia tendenciosa que apoia o político B, enquanto Maria argumenta que Pedro está cego para os fatos e está disposto a ignorar a corrupção por motivos puramente partidários.

Nesse cenário, tanto Pedro quanto Maria estão envolvidos na falácia do espantalho. Cada um deles distorce as acusações de corrupção contra o político rival, retratando-as como invenções maliciosas destinadas a prejudicar a reputação de seus respectivos candidatos.

É importante lembrar que, em casos de corrupção política, é fundamental separar os fatos das narrativas partidárias e manter uma visão crítica das informações apresentadas. Enquanto Pedro e Maria continuarem a defender cegamente seus políticos sem considerar as evidências objetivas, será difícil alcançar uma compreensão verdadeira da situação e responsabilizar os responsáveis por condutas antiéticas e ilegais.

Então, como podemos nos proteger e evitar cair nessa armadilha?

Em primeiro lugar, é essencial estar sempre atento ao contexto da discussão e ao verdadeiro ponto de vista do oponente. Em vez de responder à caricatura que está sendo apresentada, devemos voltar ao argumento original e abordá-lo de forma direta e honesta.

Além disso, praticar o pensamento crítico e questionar ativamente os argumentos apresentados pode ajudar a expor a fragilidade da falácia do espantalho. Pergunte-se: "O argumento que estou enfrentando realmente representa a posição do meu oponente, ou é apenas uma distorção conveniente?"

Por fim, lembre-se de que o objetivo de um debate saudável não é vencer a qualquer custo, mas sim buscar a verdade e compreender diferentes pontos de vista. Ao reconhecer e evitar a falácia do espantalho, estamos contribuindo para um diálogo mais construtivo e enriquecedor.

A falácia do espantalho é uma armadilha comum na arena do debate humano, mas não é invencível. Com pensamento crítico, honestidade intelectual e uma dose saudável de cautela, podemos desmascarar essa falácia e promover discussões mais produtivas e esclarecedoras em todas as esferas da vida.

Sugestão de leitura: 

Nahra,Cinara. Ivan Hingo Weber. Através da lógica. Petrópolis, RJ: 2ª Ed. Vozes, 1997.

 

sábado, 14 de janeiro de 2012

O Amor é uma Falácia?


O Amor é uma Falácia?
A blogada de hoje vai para quem gosta de lógica, e é dedicado para os amantes e enamorados, principalmente para aqueles que gostariam que o outro fosse diferente.
Alguns anos atrás levei para sala de aula o texto “O Amor é uma Falácia”, e percebi que as turmas gostaram bastante, a partir daí despertou interesse e nasceram algumas brincadeiras interessantes.
Imaginar o que poderia ter se passado após a leitura, precisa primeiro que tenham conhecimento do texto, para isto compartilho o texto de M. Sulman:

O Amor é uma Falácia
M. Sulman
Eu era frio e lógico. Sutil, calculista, perspicaz, arguto e astuto - era tudo isso. Tinha um cérebro poderoso como um dínamo, preciso como uma balança de farmácia, penetrante como um bisturi. E tinha - imaginem só - dezoito anos.
Não é comum ver alguém tão jovem com um intelecto tão gigantesco. Tomem, por exemplo, o caso do meu companheiro de quarto na universidade, Pettey Bellows. Mesma idade, mesma formação, mas burro como uma porta. Um bom sujeito, compreendam, mas sem nada lá em cima. Do tipo emocional. Instável, impressionável. Pior do que tudo, dado a manias. Eu afirmo que a mania é a própria negação da razão. Deixar-se levar por qualquer nova moda que apareça, entregar a alguma idiotice só porque os outros a segue, isto, para mim, é o cúmulo da insensatez. Petey, no entanto, não pensava assim.
Certa tarde, encontrei-o deitado na cama com tal expressão de sofrimento no rosto que o meu diagnóstico foi imediato: apendicite.
- Não se mexa. Não tome laxante. Vou chamar o médico.
- Couro preto - balbuciou ele.
- Couro preto? - disse eu, interrompendo a minha corrida.
- Quero uma jaqueta de couro preto - disse.
Percebi que o seu problema não era físico, mas mental.
- Por que você quer uma jaqueta de couro preto?
- Eu devia ter adivinhado - gritou ele, socando a cabeça - Devia ter adivinhado que eles voltariam com o Charleston. Como um idiota, gastei todo o meu dinheiro em livros para as aulas e agora não posso comprar uma jaqueta de couro preto.
- Quer dizer - perguntei incrédulo - que estão mesmo usando jaquetas de couro preto outra vez?
- Todas as pessoas importantes da universidade estão. Onde você tem andado?
- Na biblioteca - respondi, citando um lugar não freqüentado pela pessoas importantes da Universidade.
Ele saltou da cama e pôs-se a andar de um lado para o outro do quarto.
- Preciso conseguir uma jaqueta de couro preto - disse, exaltado - Preciso mesmo.
- Por que, Pety? Veja a coisa racionalmente. Jaquetas de couro preto são desconfortáveis. Impedem o movimento dos braços. São pesadas, são feias, são ...
- Você não compreende - interrompeu ele com impaciência - é o que todos estão usando. Você não quer andar na moda?
- Não - respondi, sinceramente.
- Pois eu sim - declarou ele - daria tudo para ter uma jaqueta de couro preto. Tudo.
Aquele instrumento de precisão, meu cérebro, começou a funcionar a todo vapor.
- Tudo? - perguntei, examinando seu rosto com olhos semicerrados.
- Tudo - confirmou ele, em tom dramático.
Alisei o queixo, pensativo. Eu, por acaso, sabia onde encontrar uma jaqueta de couro preto. Meu pai usara um nos seus tempos de estudante; estava agora dentro de um malão, no sótão da casa. E, também por acaso, Petey tinha algo que eu queria. Não era dele, exatamente, mas pelo menos ele tinha alguns direitos sobre ela. Refiro-me à sua namorada, Polly Spy.
Eu há muito desejava Polly Spy. Apresso-me a esclarecer que o meu desejo não era de natureza emotiva. A moça, não há dúvida, despertava emoções, mas eu não era daqueles que se deixam dominar pelo coração. Desejava Polly para fins engenhosamente calculados e inteiramente cerebrais.
Cursava eu o primeiro ano de direito. Dali a algum tempo, estaria me iniciando na profissão. Sabia muito bem a importância que tinha a esposa na vida e na carreira de um advogado. Os advogados de sucesso, segundo as minhas observações, eram quase sempre casados com mulheres bonitas, graciosas e inteligentes. Com uma única exceção, Polly preenchia perfeitamente estes requisitos.
Era bonita. Suas proporções ainda não eram clássicas, mas eu tinha certeza de que o tempo se encarregaria de fornecer o que faltava. A estrutura básica estava lá.
Graciosa também era. Por graciosa quero dizer cheia de graças sociais. Tinha porte ereto, a naturalidade no andar e a elegância que deixavam transparecer a melhor das linhagens. Á mesa, suas maneiras eram finíssimas. Eu já vira Polly no barzinho da escola comendo a especialidade da casa - um sanduíche que continha pedaços de carne assada, molho, castanhas e repolho - sem nem sequer umedecer os dedos.
Inteligente ela não era. Na verdade, tendia para o oposto. Mas eu confiava em que, sob a minha tutela, haveria de tornar-se brilhante. Pelo menos valia a pena tentar. Afinal de contas, é mais fácil fazer uma moça bonita e burra ficar inteligente do que uma moça feia e inteligente ficar bonita.
- Petey - perguntei - você ama Polly Spy?
- Eu acho que ela é interessante - respondeu - mas não sei se chamaria isso de amor. Por quê?
- Você - continuei - tem alguma espécie de arranjo formal com ela? Quero dizer, vocês saem exclusivamente um com o outro?
- Não. Nos vemos seguidamente. Mas saímos os dois com outros também. Por quê?
- Existe alguém - perguntei - algum outro homem que ela goste de maneira especial?
- Que eu saiba não. Por quê?
Fiz que sim com a cabeça, satisfeito.
- Em outras palavras, a não ser por você, o campo está livre, é isso?
- Acho que sim. Aonde você quer chegar?
- Nada, anda - respondi com inocência, tirando minha mala de dentro do armário.
- Onde é que você vai? - quis saber Petey.
- Passar o fim de semana em casa.
Atirei algumas roupas dentro da mala.
- Escute - disse Petey, apegando-se com força ao meu braço - em casa, será que você não poderia pedir dinheiro ao seu pai, e me emprestar para comprar uma jaqueta de couro preto?
- Posso até fazer mais do que isso - respondi, piscando o olho misteriosamente. Fechei a mala e saí.
- Olhe - disse a Petey, ao voltar na segunda feira de manhã. Abri a mala e mostrei o enorme objeto cabeludo e fedorento que meu pai usara ao volante de seu Stutz Beacat em 1955.
- Santo Pai - exclamou Petey com reverência. Passou as mãos na jaqueta e depois no rosto.
- Santo Pai - repetiu, umas quinze ou vinte vezes.
- Você gostaria de ficar com ele? - perguntei.
- Sim - gritou ele, apertando a jaqueta contra o peito. Em seguida, seus olhos assumiram um ar precavido. - O que quer em troca?
- A sua namorada - disse eu, não desperdiçando palavras.
- Polly? - sussurrou Petey, horrorizado. - Você quer a Polly?
- Isso mesmo.
Ele jogou a jaqueta pra longe.
- Nunca - declarou resoluto.
Dei de ombros.
- Tudo bem. Se você não quer andar na moda, o problema é seu.
Sentei-me numa cadeira e fingi que lia um livro, mas continuei espiando Petey, com o rabo dos olhos. Era um homem partido em dois. Primeiro olhava para a jaqueta com a expressão de uma criança desamparada diante da vitrine de uma confeitaria. Depois dava-lhe as costas e cerrava os dentes, altivo. Depois voltava a olhar para a jaqueta. Com uma expressão ainda maior de desejo no rosto. Depois virava-se outra vez, mas agora sem tanta resolução. Sua cabeça ia e vinha, o desejo ascendendo, a resolução descendendo. Finalmente, não se virou mais: ficou olhando para a jaqueta com pura lascívia.
- Não é como se eu estivesse apaixonado por Polly - balbuciou. - Ou mesmo namorando sério, ou coisa parecida.
- Isso mesmo - murmurei.
- Afinal, Polly significa o que para mim, ou eu pra ela?
- Nada - respondi.
- Foi uma coisa banal. Nos divertimos um pouco. Só isso.
- Experimente a jaqueta - disse eu.
Ele obedeceu. A jaqueta ficou bem larga, passando da cintura. Ele parecia um motoqueiro mal vestido da década de cinqüenta.
- Serve perfeitamente - disse, contente.
Levantei-me da cadeira e perguntei, estendendo a mão.
- Negócio feito?
Ele engoliu a seco.
- Feito - disse, e apertou a minha mão.
Saí com Polly pela primeira vez na noite seguinte.
O Primeiro programa teria o caráter de pesquisa preparatória. Eu desejava saber o trabalho que me esperava para elevar a sua mente ao nível desejado. Levei-a para jantar.
- Puxa, que jantar interessante! - disse ela, quando saímos do restaurante. Fomos ao cinema.
- Puxa, que filme interessante! - disse ela, quando saímos do cinema.
Levei-a para casa.
- Puxa, que noite interessante - disse ela, ao nos despedirmos.
Voltei para o quarto com o coração pesado. Eu subestimara gravemente as proporções da minha tarefa. A ignorância daquela moça era aterradora. E não seria o bastante apenas instruí-la. Era preciso, antes de tudo, ensiná-la a pensar. O empreendimento se me afigurava gigantesco, e a princípio me vi inclinado a devolvê-la a Petey. Mas aí comecei a pensar nos seus dotes físicos generosos e na maneira como entrava numa sala ou segurava uma faca, um garfo, e decidi tentar novamente.
Procedi, como sempre, sistematicamente. Dei-lhe um curso de Lógica. Acontece que, como estudante de direito, eu freqüentava na ocasião aulas de Lógica, e portanto tinha tudo na ponta da língua.
- Polly - disse eu, quando fui buscá-la para o nosso segundo encontro. - Esta noite vamos até o parque conversar.
- Ah, que interessante! - respondeu ela.
Uma coisa deve ser dita em favor da moça: seria difícil encontrar alguém tão bem disposta para tudo.
Fomos até o parque, o local de encontros da universidade, nos sentamos debaixo de uma árvore, e ela me olhou cheia de expectativa.
- Sobre o que vamos conversar? - perguntou.
- Sobre Lógica.
Ela pensou durante alguns segundos e depois sentenciou:
- Interessante!
- A Lógica - comecei, limpando a garganta - é a ciência do pensamento. Se quisermos pensar corretamente, é preciso antes saber identificar as falácias mais comuns da Lógica. É o que vamos abordar hoje.
- Interessante! - exclamou ela, batendo palmas de alegria.
Fiz uma careta, mas segui em frente, com coragem.
- Vamos primeiro examinar uma falácia chamada Dicto Simpliciter.
- Vamos - animou-se ela, piscando os olhos com animação.
- Dicto Simpliciter quer dizer um argumento baseado numa generalização não qualificada. Por exemplo: o exercício é bom, portanto todos devem se exercitar.
- Eu estou de acordo - disse Polly, fervorosamente. - Quer dizer, o exercício é maravilhoso. Isto é, desenvolve o corpo e tudo.
- Polly - disse eu, com ternura - o argumento é uma falácia. Dizer que o exercício é bom é uma generalização não qualificada. Por exemplo: para quem sofre do coração, o exercício é ruim. Muitas pessoas têm ordem de seus médicos para não exercitarem. É preciso qualificar a generalização. Deve-se dizer: o exercício é geralmente bom, ou é bom para a maioria das pessoas. Do contrário está-se cometendo um Dicto Simpliciter. Você compreende?
- Não - confessou ela. - Mas isso é interessante. Quero mais. Quero mais!
- Será melhor se você parar de puxar a manga da minha camisa - disse eu e, quando ela parou, continuei:
- Em seguida, abordaremos uma falácia chamada generalização apressada. Ouça com atenção: você não sabe falar francês, eu não sei falar francês, Petey Bellows não sabe falar francês. Devo portanto concluir que ninguém na universidade sabe falar francês.
- É mesmo? - espantou-se Polly. - Ninguém?
Contive a minha impaciência.
- É uma falácia, Polly. A generalização é feita apressadamente. Não há exemplos suficientes para justificar a conclusão.
- Você conhece outras falácias? - perguntou ela, animada. - Isto é até melhor do que dançar.
- Esforcei-me por conter a onda de desespero que ameaçava me invadir. Não estava conseguindo nada com aquela moça, absolutamente nada. Mas não sou outra coisa senão persistente. Continuei.
- A seguir, vem o Post Hoc. Ouça: Não levemos Bill conosco ao piquenique. Toda vez que ele vai junto, começa a chover.
- Eu conheço uma pessoa exatamente assim - exclamou Polly. - Uma moça da minha cidade, Eula Becker. Nunca falha. Toda vez que ela vai junto a um piquenique...
- Polly - interrompi, com energia - é uma falácia. Não é Eula Becker que causa a chuva. Ela não tem nada a ver com a chuva. Você estará incorrendo em Post Hoc, se puser a culpa na Eula Becker.
- Nunca mais farei isso - prometeu ela, constrangida. - Você está bravo comigo?
- Não Polly - suspirei. - Não estou bravo.
- Então conte outra falácia.
- Muito bem. Vamos experimentar as premissas contraditórias.
- Vamos - exclamou ela alegremente.
Franzi a testa, mas continuei.
- Aí vai um exemplo de premissas contraditórias. Se Deus pode fazer tudo, pode fazer uma pedra tão pesada que ele mesmo não conseguirá levantar?
- É claro - respondeu ela imediatamente.
- Mas se ele pode fazer tudo, pode levantar a pedra.
- É mesmo - disse ela, pensativa. - Bem, então eu acho que ele não pode fazer a pedra.
- Mas ele pode fazer tudo - lembrei-lhe.
Ela coçou a cabeça linda e vazia.
- Estou confusa - admitiu.
- É claro que está. Quando as premissas de um argumento se contradizem, não pode haver argumento. Se existe uma força irresistível, não pode existir um objeto irremovível. Compreendeu?
- Conte outra dessas histórias interessantes - disse Polly, entusiasmada.
Consultei o relógio.
- Acho melhor parar por aqui. Levarei você em casa, e lá pensará no que aprendeu hoje. Teremos outra sessão amanhã.
Deixei-a no dormitório das moças, onde ela me assegurou que a noitada fora realmente interessante, e voltei desanimadamente para o meu quarto. Petey roncava sobre sua cama, com a jaqueta de couro encolhida a seus pés. Por alguns segundos, pensei em acordá-lo e dizer que ele podia ter Polly de volta. Era evidente que o meu projeto estava condenado ao fracasso. Ela tinha, simplesmente, uma cabeça à prova de Lógica.
Mas logo reconsiderei. Perdera uma noite, por que não perder outra? Quem sabe se em alguma parte daquela cratera de vulcão adormecido que era a mente de Polly, algumas brasas ainda estivessem vivas. Talvez, de alguma maneira, eu ainda conseguisse abaná-las até que flamejasse. As perspectivas não eram das mais animadoras, mas decidi tentar outra vez.
Sentado sob uma árvore, na noite seguinte, disse:
- Nossa primeira falácia desta noite se chama ad misericordiam.
Ela estremeceu de emoção.
- Ouça com atenção - comecei - Um homem vai pedir emprego. Quando o patrão pergunta quais as suas qualificações, o homem responde que tem uma mulher e dois filhos em casa, que a mulher e aleijada, as crianças não tem o que comer, não tem o que vestir nem o que calçar, a casa não tem camas, não há carvão no porão e o inverno se aproxima.
Uma lágrima desceu por cada uma das faces rosadas de Polly.
- Isso é horrível, horrível! - soluçou.
- É horrível - concordei - mas não é um argumento. O homem não respondeu à pergunta do patrão sobre as suas qualificações. Ao invés disso, tentou despertar a sua compaixão. Cometeu a falácia de ad misericordiam. Compreendeu?
Dei-lhe um lenço e fiz o possível para não gritar enquanto ela enxugava os olhos.
- A seguir - disse, controlando o tom da voz - discutiremos a falsa analogia. Eis um exemplo: deviam permitir aos estudantes consultar seus livros durante os exames. Afinal, os cirurgiões levam as radiografias para se guiarem durante uma operação, os advogados consultam seus papéis durante um julgamento, os construtores têm plantas que os orientam na construção de uma casa. Por quê, então, não deixar que os alunos recorram a seus livros durante uma prova?
- Pois olhe - disse ela entusiasmada - está e a idéia mais interessante que eu já ouvi há muito tempo.
- Polly - disse eu com impaciência - o argumento é falacioso. Os cirurgiões, os advogados e os construtores não estão fazendo teste para ver o que aprenderam, e os estudantes sim. As situações são completamente diferentes e não se pode fazer analogia entre elas.
- Continuo achando a idéia interessante - disse Polly.
- Santo Cristo! - murmurei, com impaciência.
- A seguir, tentaremos a hipótese contrária ao fato.
- Essa parece ser boa - foi a reação de Polly.
- Preste atenção: se Madame Curie não deixasse, por acaso, uma chapa fotográfica numa gaveta junto com uma pitada de pechblenda, nós hoje não saberíamos da existência do rádio.
- É mesmo, é mesmo - concordou Polly, sacudindo a cabeça. - Você viu o filme? Eu fiquei louca pelo filme. Aquele Walter Pidgeon é tão bacana! Ele me faz vibrar.
- Se conseguir esquecer o Sr. Pidgeon por alguns minutos - disse eu, friamente - gostaria de lembrar que o que eu disse é uma falácia. Madame Curie teria descoberto o rádio de alguma outra maneira. Talvez outra pessoa o descobrisse. Muita coisa podia acontecer. Não se pode partir de uma hipótese que não é verdadeira e tirar dela qualquer conclusão defensável.
- Eles deviam colocar o Walter Pidgeon em mais filmes - disse Polly - Eu quase não vejo ele no cinema.
Mais uma tentativa, decidi. Mas só mais uma. Há um limite para o que podemos suportar.
- A próxima falácia é chamada de envenenar o poço.
- Que engraçadinho! - deliciou-se Polly.
- Dois homens vão começar um debate. O primeiro se levante e diz: ‘o meu oponente é um mentiroso conhecido. Não é possível acreditar numa só apalavra do que ele disser’. Agora, Polly, pense bem, o que está errado?
Vi-a enrugar a sua testa cremosa, concentrando-se. De repente, um brilho de inteligência - o primeiro que vira - surgiu nos seus olhos.
- Não é justo! - disse ela com indignação - Não é justo. O primeiro envenenou o poço antes que os outros pudesse beber dele. Atou as mãos do adversário antes da luta começar... Polly, estou orgulhoso de você.
- Ora - murmurou ela, ruborizando de prazer.
- Como vê, minha querida, não é tão difícil. Só requer concentração. É só pensar, examinar, avaliar. Venha, vamos repassar tudo o que aprendemos até agora.
- Vamos lá - disse ela, com um abano distraído da mão.
Animado pela descoberta de que Polly não era uma cretina total, comecei uma longa e paciente revisão de tudo o que dissera até ali. Sem parar citei exemplos, apontei falhas, martelei sem dar trégua. Era como cavar um túnel. A princípio, trabalho duro e escuridão. Não tinha idéia de quando veria a luz ou mesmo se a veria. Mas insisti. Dei duro, até que fui recompensado. Descobri uma fresta de luz. E a fresta foi se alargando até que o sol jorrou para dentro do túnel, clareando tudo.
Levara cinco noites de trabalho forçado, mas valera a pena. Eu transformara Polly em uma lógica, e a ensinara a pensar. Minha tarefa chegara a bom termo. Fizera dela uma mulher digna de mim. Está apta a ser minha esposa, uma anfitriã perfeita para as minhas muitas mansões. Uma mãe adequada para os meus filhos privilegiados.
Não se deve deduzir que eu não sentia amor por ela. Muito pelo contrário. Assim como Pigmaleão amara a mulher perfeita que moldara para si, eu amava a minha. Decidi comunicar-lhe os meus sentimentos no nosso encontro seguinte. Chegara a hora de mudar as nossas relações, de acadêmicas para românticas.
- Polly, disse eu, na próxima vez que nos sentamos sob a árvore - hoje não falaremos de falácias.
- Puxa! - disse ela, desapontada.
- Minha querida - prossegui, favorecendo-a com um sorriso - hoje é a sexta noite que estamos juntos. Nos demos esplendidamente bem. Não há dúvidas de que formamos um bom par.
- Generalização apressada - exclamou ela, alegremente.
- Perdão - disse eu.
- Generalização apressada - repetiu ela. - Como é que você pode dizer que formamos um bom par baseado em apenas cinco encontros?
Dei uma risada, contente. Aquela criança adorável aprendera bem as suas lições.
- Minha querida - disse eu, dando um tapinha tolerante na sua mão - cinco encontros são o bastante. Afinal, não é preciso comer um bolo inteiro para saber se ele é bom ou não.
- Falsa Analogia - disse Polly prontamente - eu não sou um bolo, sou uma pessoa.
Dei outra risada, já não tão contente. A criança adorável talvez tivesse aprendido a sua lição bem demais. Resolvi mudar de tática. Obviamente, o indicado era uma declaração de amor simples, direta e convincente. Fiz uma pausa, enquanto o meu potente cérebro selecionava as palavras adequadas. Depois reiniciei.
- Polly, eu te amo. Você é tudo no mundo pra mim, é a lua e a estrelas e as constelações no firmamento. For favor, minha querida, diga que será minha namorada, senão a minha vida não terá mais sentido. Enfraquecerei, recusarei comida, vagarei pelo mundo aos tropeções, um fantasma de olhos vazios.
Pronto, pensei; está liquidado o assunto.
- Ad misericordiam - disse Polly.
Cerrei os dentes. Eu não era Pigmaleão; era Frankenstein, e o meu monstro me tinha pela garganta. Lutei desesperadamente contra o pânico que ameaçava invadir-me. Era preciso manter a calma a qualquer preço.
- Bem, Polly - disse, forçando um sorriso - não há dúvida que você aprendeu bem as falácias.
- Aprendi mesmo - respondeu ela, inclinando a cabeça com vigor.
- E quem foi que ensinou a você, Polly?
- Foi você.
- Isso mesmo. E portanto você me deve alguma coisa, não é mesmo, minha querida? Se não fosse por mim, você nunca saberia o que é uma falácia.
- Hipótese Contrária ao Fato - disse ela sem pestanejar.
Enxuguei o suor do rosto.
- Polly - insisti, com voz rouca - você não deve levar tudo ao pé da letra. Estas coisas só têm valor acadêmico. Você sabe muito bem que o que aprendemos na escola nada tem a ver com a vida.
- Dicto Simpliciter - brincou ela, sacudindo o dedo na minha direção.
Foi o bastante. Levantei-me num salto, berrando como um touro.
- Você vai ou não vai me namorar?
- Não vou - respondeu ela.
- Por que não? - exigi.
- Porque hoje à tarde eu prometi a Petey Bellows que eu seria a namorada dele.
Quase caí para trás, fulminado por aquela infâmia. Depois de prometer, depois de fecharmos negócio, depois de apertar a minha mão!
- Aquele rato! - gritei, chutando a grama. - Você não pode sair com ele, Polly. É um mentiroso. Um traidor. Um rato.
- Envenenar o poço - disse Polly - E pare de gritar. Acho que gritar também deve ser uma falácia.
Com uma admirável demonstração de força de vontade, modulei a minha voz.
- Muito bem - disse - você é uma lógica. Vamos olhar as coisas logicamente. Como pode preferir Petey Bellows? Olhe para mim: um aluno brilhante, um intelectual formidável, um homem com futuro assegurado. E veja Petey: um maluco, um boa vida, um sujeito que nunca saberá se vai comer ou não no dia seguinte. Você pode me dar uma única razão lógica para namorar Petey Bellows?
- Posso sim - declarou Polly - Ele tem uma jaqueta de couro preto.
( in Sulman, M. (1973): As calcinhas cor-de-rosas do Capitão, Porto Alegre: Ed. Globo)

Espero que tenham gostado, e principalmente despertado interesse nas falacias, com elas aprendemos o jogo do cotidiano.
Em nossa convivencia diaria quantas vezes encontramos situações onde as falacias são utilizadas, as vezes damos-nos conta e seguimos com o jogo, dando em troca o troco com outra falacia sem interromper o ciclo.
Para quem não sabe uma falácia é um argumento logicamente inconsistente, inválido, ou falho na capacidade de provar eficazmente o que alega. Argumentos que se destinam à persuasão podem parecer convincentes para grande parte do público apesar de conterem falácias, mas não deixam de ser falsos por causa disso.
Reconhecer as falácias é por vezes difícil. Os argumentos falaciosos podem ter validade emocional, íntima, psicológica ou emotiva, mas não validade lógica.
É importante conhecer os tipos de falácia para evitar armadilhas lógicas na própria argumentação e para analisar a argumentação alheia.
Espero que tenham aproveitado, um ótimo fim de semana a todos e todas.