Outro dia, entre um café passado na hora e um barulho qualquer vindo da rua, percebi que não precisava de muito para me incomodar. Bastava alguém sentar onde costumo sentar. Um desconhecido, ali, naquele canto que sempre foi meu. Claro que não era meu de fato — a cadeira é do mundo, o espaço é livre —, mas aquilo mexeu comigo. Um incômodo quase infantil, como se tivessem me tirado o cobertor preferido. E foi aí que a pulga filosófica mordeu: será que somos, todos nós, essencialmente territoriais e egoístas?
O
ego no centro: um velho conhecido
Não
é novidade dizer que o ego gosta de espaço. Não só espaço físico, mas
simbólico: lugar na conversa, nas decisões, no mundo. O ego quer ser notado,
lembrado, preferido. Quer um canto para chamar de seu. Freud já apontava isso
quando falava do ego como mediador entre nossos impulsos internos e o mundo
externo. Mas mesmo esse mediador às vezes se esquece da diplomacia e bate o pé:
“isso é meu”.
Ser
territorial é mais do que proteger um pedaço de chão. É proteger uma narrativa:
“aqui sou eu, aqui está a minha marca, aqui é onde eu existo de forma mais
plena.” Isso vale pro assento do ônibus, pro lugar na fila, pro armário da
cozinha, pro afeto de uma pessoa. A territorialidade tem menos a ver com
geografia e mais com identidade.
Egoísmo:
autodefesa ou vício?
Somos
treinados desde pequenos para entender que dividir é bonito. Mas entre o
discurso e o gesto há um abismo. Quando chega a hora de repartir o último
pedaço de pizza ou dar atenção ao problema alheio enquanto estamos exaustos, o
egoísmo aparece com suas garras bem polidas. E não necessariamente como maldade
— às vezes ele é só um mecanismo de sobrevivência.
Thomas
Hobbes diria que o ser humano, no estado natural, é competitivo por
necessidade. "O homem é o lobo do homem", dizia ele, numa sociedade
onde todos lutam por segurança, reconhecimento e posse. Egoísmo, nesse
contexto, é estratégia. É o modo que encontramos de garantir nossa permanência
num mundo onde tudo parece escasso: tempo, amor, respeito.
Mas
será que o mundo é realmente escasso, ou nós é que o dividimos com cercas
invisíveis?
A
ilusão da posse e os muros que criamos
Quando
alguém ocupa "nosso" espaço, sentimos que perdemos algo. Mas o que
exatamente? Um conforto? Uma ilusão de controle? A verdade é que muito do nosso
egoísmo nasce da crença de que temos domínio sobre algo que, na prática, nunca
foi só nosso.
Nietzsche
dizia que “o egoísmo é a base de toda moralidade saudável”, o que soa
controverso. Mas ele se referia a um egoísmo criativo, vital, que nos
impulsiona a afirmar a própria existência. O problema é quando esse impulso
vira exclusão. Quando, para que eu exista, o outro precisa desaparecer.
Nesse
ponto, a territorialidade se torna um espelho do medo. Medo de não ser visto,
de ser substituído, de ser irrelevante. Protegemos territórios como quem
protege a própria sombra.
Um
caminho possível: desapegar do centro
Se
somos todos territorialistas e egoístas por natureza, talvez o desafio não seja
negar isso, mas entender como equilibrar. Dar lugar ao outro sem perder o
nosso. Compartilhar sem desaparecer. Habitar um mundo onde a existência não
precise ser uma disputa constante.
A
sabedoria budista fala de não-apego, de reconhecer que tudo é fluxo. Nada é
fixo — nem o assento do café, nem as pessoas que amamos, nem as ideias que
defendemos com unhas e dentes. Ser menos territorial talvez seja entender que o
espaço que realmente importa é aquele que abrimos dentro de nós para o outro
existir.