Na rotina apressada da vida moderna, muitas vezes,
não percebemos as sutis metamorfoses ao nosso redor. A linha entre o real e o
irreal parece borrar-se, criando um jogo constante de transformação e
reinvenção. Vamos pensar sobre essa ideia entre o que é e o que parece ser,
acompanhados por algumas reflexões filosóficas.
Há
momentos no cotidiano em que o real parece se dissolver, dando lugar ao irreal.
Pense naqueles dias em que tudo parece fluir sem esforço, como se estivéssemos
vivendo em um sonho. Um exemplo simples: você está atrasado para o trabalho,
corre até o ponto de ônibus, e no exato momento em que chega, o ônibus também
chega. Tudo se encaixa perfeitamente, quase como uma coreografia invisível.
Outro
exemplo: você está procurando um presente especial para alguém querido. Entra
em uma loja sem grandes expectativas e, de repente, encontra exatamente o que
procurava, como se o objeto estivesse ali esperando por você. Essas situações,
embora comuns, carregam um ar de irrealidade, como se houvesse uma mão
invisível guiando os acontecimentos.
A
Magia das Pequenas Coisas
A
sensação de irrealidade também pode surgir nas pequenas coisas. Imagine você
tomando seu café da manhã habitual. De repente, a luz do sol atravessa a janela
de uma maneira diferente, criando padrões de sombra e luz que nunca tinha
percebido antes. Esse momento, embora simples, parece carregado de um
significado oculto, quase mágico.
Outro
exemplo é a primeira vez que você escuta uma música que toca fundo em sua alma.
A melodia e a letra parecem falar diretamente com você, trazendo à tona
memórias e emoções que estavam adormecidas. É como se, por um instante, a
música transformasse a realidade ao seu redor, criando um novo espaço onde o
real e o irreal se encontram.
A
Visão Filosófica de Platão e o Mundo das Ideias
Para
entender melhor essa interseção entre o real e o irreal, podemos recorrer a
Platão e sua teoria do Mundo das Ideias. Segundo Platão, o mundo que percebemos
através dos nossos sentidos é apenas uma sombra imperfeita de um mundo mais
elevado e eterno, o Mundo das Ideias.
Quando
encontramos um objeto que parece perfeito para uma situação específica ou
quando um momento simples se transforma em algo mágico, estamos, de certa
forma, vislumbrando o Mundo das Ideias. Esses momentos de irrealidade são como
pequenos vislumbres de uma realidade mais profunda e significativa.
A
Transformação do Real
O
que Platão sugere é que o irreal, longe de ser uma ilusão, é na verdade uma
janela para uma realidade mais autêntica. Quando vivemos esses momentos de
irrealidade no cotidiano, estamos tocando, mesmo que brevemente, essa dimensão
mais profunda.
A
transformação do real em irreal e vice-versa é uma dança contínua. Uma carta de
amor, um pôr-do-sol deslumbrante, uma conversa profunda com um amigo – todas
essas experiências são transformações do real que nos conectam com algo maior.
O
real e o irreal coexistem em nosso cotidiano, muitas vezes se entrelaçando de
maneiras inesperadas. Ao prestar atenção a esses momentos, podemos perceber que
eles não são meras coincidências ou ilusões, mas sim portas que se abrem para
um mundo mais vasto e profundo. Ao reconhecer e valorizar essas experiências,
nos conectamos com a essência do que significa ser humano – uma existência que
transcende a simples materialidade e toca o eterno.
Noutro Ponto de Vista: A Natureza Mutável das
Coisas
Pegue, por exemplo, um simples parque da cidade.
Durante o dia, é um lugar de risos, de crianças brincando e adultos fazendo
exercícios. Quando a noite cai, o mesmo espaço adquire um ar misterioso, quase
fantasmal. A percepção do ambiente muda, mas a realidade física do parque
permanece a mesma. Essa transformação nos faz questionar: o que é o parque de
verdade? É o local alegre do dia ou o enigmático da noite?
O Smartphone: Realidade em Mutação
Outro exemplo está bem na palma de nossas mãos: os
smartphones. O que começou como um simples dispositivo de comunicação evoluiu
para um portal para mundos inteiramente novos. Um minuto estamos enviando uma
mensagem, no outro, estamos mergulhados em uma realidade virtual de um jogo ou
assistindo a um vídeo em uma plataforma de streaming. A realidade que
experimentamos através da tela é tão convincente que, por momentos, o irreal
parece mais real que o mundo físico ao nosso redor.
Reflexões de Baudrillard
O filósofo Jean Baudrillard trouxe à tona a ideia
de que a distinção entre o real e o irreal tem se tornado cada vez mais
difícil. Em seu conceito de "simulacros e simulação", ele argumenta
que as imagens e símbolos da realidade acabam por substituir a própria
realidade. O parque que conhecemos através de uma postagem nas redes sociais ou
o evento que assistimos ao vivo pelo streaming tornam-se a nossa realidade, uma
versão filtrada e editada que muitas vezes difere da experiência direta.
Jean
Baudrillard, em "Simulacros e Simulação", argumenta que vivemos em
uma era onde as representações (simulacros) tornaram-se mais reais do que o
próprio real, criando um mundo de simulação onde as cópias não apenas
substituem os originais, mas tornam-se mais influentes e reconhecidas. Os
simulacros são as imagens ou representações que perdem a conexão com o
original, enquanto a simulação é o processo contínuo de viver dentro dessas
representações, borrando a linha entre o real e o irreal. Um exemplo prático é
a foto retocada de uma celebridade que se torna mais "real" e
influente do que a própria pessoa ou os parques temáticos, onde as construções
artificiais são aceitas como realidade pelos visitantes.
Histórias do Cotidiano
Imagine-se caminhando por uma rua antiga de uma
cidade histórica. As fachadas dos prédios evocam uma era passada, mas, ao
adentrar uma dessas construções, você encontra um moderno café com wi-fi e
decoração minimalista. O que era um símbolo do passado agora serve aos
confortos do presente. A história que esses edifícios contam é transformada
pelo uso contemporâneo, criando um elo entre o que foi e o que é.
Ou considere uma velha fotografia de família. Olhar
para ela é como abrir uma janela para o passado, mas a nossa interpretação da
imagem muda ao longo do tempo. As memórias associadas podem tornar-se mais
suaves, mais nostálgicas, ou até mesmo se desvanecer, enquanto as figuras na
foto permanecem inalteradas. O irreal aqui é a construção mental da lembrança,
sempre em fluxo, sempre mudando.
A Filosofia de Heráclito
Heráclito, o filósofo grego pré-socrático, afirmou
que "ninguém se banha duas vezes no mesmo rio". Para ele, a mudança
constante era a verdadeira natureza da realidade. Esse pensamento é
profundamente relevante quando consideramos como o real se transforma no irreal
e vice-versa. Cada momento é uma nova versão do que veio antes, cada
experiência uma nova camada na tapeçaria da vida.
Na intersecção entre o real e o irreal, encontramos
um espaço fértil para a imaginação e a reflexão. As transformações que
presenciamos e experimentamos no cotidiano são um lembrete constante de que a
realidade é, em sua essência, mutável. Seja através das lentes da tecnologia,
das mudanças de percepção ou das contínuas evoluções do tempo, somos convidados
a questionar, reimaginar e reinventar o que consideramos ser o
"real".