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sábado, 5 de julho de 2025

Implicações Cruciais

O Abismo Que Sustenta: Um Ensaio Filosófico a Partir de Paul Tillich (1886 – 1965)

Sobre o filósofo: Paul Johannes Oskar Tillich foi um teólogo alemão-estadounidense e filósofo da religião. Seu trabalho abordou as implicações cruciais para o cristianismo levantadas pelos filósofos existencialistas do século XX e explorou a relação entre teologia e cultura. Wikipédia

 

No meio de uma crise, sentado na beira da cama, alguém pergunta a si mesmo: “E agora?” Não é uma oração formal. Não é filosofia. Mas é profundamente existencial. Tillich diria: aí começa a teologia — no grito silencioso de quem encara o vazio. Para ele, Deus não está no céu com uma barba longa, anotando nossos pecados. Está muito mais próximo, mais dentro, mais fundamental: é o fundamento do ser. Esta ideia não é simples e nem confortável, mas ela abre caminhos inesperados para se pensar não só a fé, como também a arte, a política, o medo e a própria coragem de viver.

I. A fé que resiste ao colapso

A proposta de Paul Tillich parece estranha à primeira vista: dizer que Deus não é um “ser”, mas o “ser mesmo” ou seu fundamento. Mas isso não é uma ginástica verbal. É uma resposta radical à experiência humana de ruína, de perda de sentido, de naufrágio. Para Tillich, quando tudo parece desmoronar, ainda assim algo nos sustenta: uma coragem misteriosa, silenciosa, que nos empurra para continuar sendo. Essa coragem não é um acessório emocional — ela é sagrada.

Diferente da fé como crença cega ou manual de respostas prontas, a fé para Tillich é o ato de afirmar-se diante do abismo. Isso muda tudo. Porque o abismo não desaparece. Ele fica lá, como o fundo escuro da consciência, como a finitude, como a morte. Mas algo em nós ousa dizer sim — e esse sim é a centelha do divino.

II. O divino como urgência vital

Se Deus é o fundamento do ser, então não está apenas no templo, na missa, no dogma. Está na dança de quem enfrenta a dor com beleza. Está na arte que ressignifica o sofrimento. Está na política que busca justiça, ainda que o mundo resista. E isso tem implicações cruciais: o teólogo vira intérprete do mundo, não guardião de verdades estanques.

Tillich propõe o que ele chama de “método da correlação”: ouvir o que o ser humano moderno está perguntando e buscar, nos símbolos religiosos, respostas possíveis. É uma via de mão dupla — onde a cultura alimenta a teologia e vice-versa. Isso faz da religião algo dinâmico, encarnado na vida, não um museu de crenças mortas.

III. Símbolos em chamas

Um dos maiores perigos da religião, para Tillich, é tomar seus símbolos como literais. Deus, inferno, céu, salvação — são imagens carregadas de sentido, mas não são mapas geográficos do além. Eles apontam para experiências profundas. Quando esquecemos isso, os símbolos viram ídolos — e a religião se fecha, torna-se violenta, condenatória, ideológica.

A implicação disso é delicada: é preciso reaprender a ler os símbolos como se lê um poema, um quadro ou um sonho. A fé, nesse sentido, se aproxima da arte: não diz o que é, mas o que pode ser sentido como verdadeiro. Assim, falar de Deus é sempre falar do indizível — e qualquer tentativa de possuí-lo é um equívoco perigoso.

IV. A coragem de ser (e de errar)

Tillich escreveu sobre a coragem de ser como a virtude central da existência humana. Essa coragem não é força de vontade pura, nem entusiasmo otimista. É resistência contra a tentação de ceder ao nada. É continuar mesmo quando não há garantias. E isso nos conecta a um sagrado que não se mede por milagres, mas por presença.

O mais inovador é que essa ideia da fé como coragem redefine o que é uma “vida espiritual”. Não se trata de cumprir mandamentos ou repetir fórmulas. Trata-se de sustentar o ser no meio da angústia. A espiritualidade, assim, não é uma fuga do mundo — é um mergulho profundo nele, sustentado por algo que não se vê, mas se sente na carne da existência.

V. Quando a vida desmonta: a fé na depressão

Imagine alguém que se levanta da cama com imenso esforço, sem saber por quê. A comida não tem gosto. O tempo parece pesado. Tudo o que antes dava sentido agora soa vazio. Não há energia para se revoltar — só o silêncio e o esvaziamento. Essa é a experiência da depressão profunda.

Tillich não vê isso como uma falha moral, mas como o encontro cru com o nada — o nada do sentido, o nada da vontade, o nada da esperança. É nesse ponto que sua teologia se torna medicina para a alma: a fé não exige que você esteja bem para existir. Ela começa exatamente aí, quando tudo parece ter desabado.

Ter fé, nesse caso, não é sorrir à toa ou afirmar que tudo vai dar certo. É simplesmente não se render totalmente. É, por vezes, apenas respirar e suportar o dia. Esse gesto mínimo — levantar-se para tomar água, escutar alguém, assistir a um filme — pode ser uma forma de fé silenciosa.

A fé, diz Tillich, é a coragem de aceitar ser aceito, mesmo quando nos sentimos absolutamente indignos de aceitação. Isso tem um valor terapêutico profundo, que a psicologia moderna, em diálogo com a teologia, começa a reconhecer.

VI. Arte como revelação: o símbolo na tela

Num museu ou galeria, uma pintura nos prende. Não porque retrata algo bonito, mas porque nos faz sentir algo que ainda não sabíamos nomear. Ali, sem palavras, algo é revelado. Tillich chamaria isso de uma experiência simbólica da profundidade.

A arte, nesse sentido, cumpre função religiosa — não porque fala de Deus diretamente, mas porque acessa aquilo que é “de máxima importância” na alma humana. Um quadro de Rothko, uma escultura de Giacometti, uma peça de teatro de Beckett: não oferecem consolo, mas revelam o trágico com beleza. E essa beleza nos transforma.

Tillich via na arte uma forma de teologia implícita. Artistas são, muitas vezes, profetas involuntários: revelam as fissuras da existência, dão forma à angústia, mas também anunciam o que ainda não se vê. A religião, nesse diálogo, aprende a olhar o mundo com mais escuta, menos imposição.

VII. Política: resistir ao nada coletivo

Agora imagine um jovem ativista em uma cidade onde a desigualdade parece eterna. Ele organiza reuniões, discute com vereadores, defende causas que quase ninguém escuta. Muitas vezes, sente que está perdendo tempo. Mas continua. Por quê?

Essa perseverança não é apenas política. É existencial. Tillich diria que há aí um movimento de fé — não no sentido religioso tradicional, mas na coragem de afirmar o ser mesmo quando a cultura caminha para o colapso.

O “nada” contra o qual se resiste não é só individual. É social: opressão, desumanização, apatia generalizada. A fé, nesse caso, se expressa em gestos políticos. E a política ganha, assim, uma dimensão espiritual: lutar por dignidade humana é, em última instância, lutar pela presença do ser sobre o nada.

Tillich, que viveu sob o nazismo e teve de fugir da Alemanha, sabia bem do que falava. Sua teologia nasceu do confronto direto com o autoritarismo. Por isso, suas ideias continuam relevantes: elas lembram que fé e liberdade estão mais próximas do que parecem.

O invisível que sustenta o visível

Ao ampliar a proposta de Tillich para a vida cotidiana, vemos que a teologia deixa de ser um discurso abstrato e passa a ser um modo de olhar — um modo de perceber o que sustenta mesmo quando tudo ameaça ruir.

Na depressão, ela é o fio que não se rompe.

Na arte, é o símbolo que nos revela a profundidade.

Na política, é o gesto que recusa o desespero coletivo.

Fé, aqui, é sinônimo de resistência sensível. Não é certeza, nem conforto — é o abraço entre o frágil e o eterno. Tillich nos convida a trocar a busca por respostas absolutas por uma presença atenta diante do mistério do ser. E isso, nos dias de hoje, talvez seja o mais revolucionário que alguém pode propor.

Talvez o maior legado de Tillich esteja em sua capacidade de devolver à fé seu sentido mais radical: não o de um sistema, mas o de um mergulho. Em vez de dogmas rígidos, Tillich oferece uma sensibilidade filosófica para o mistério. Em vez de respostas prontas, ele oferece perguntas que nos acompanham até o fim.

E aqui está a virada: o abismo não precisa ser temido se reconhecemos que há, nele, um chão invisível que nos sustenta. Deus, então, não é o que nos livra do sofrimento — é o que nos acompanha nele. E a fé não é certeza, mas fidelidade ao chamado mais profundo do ser: continuar sendo, apesar de tudo.


quarta-feira, 7 de maio de 2025

Aperto no Peito

 

A angústia e o desespero em Kierkegaard

Tem dias em que a gente acorda como se tivesse esquecido quem é. Não é cansaço, não é tristeza, não é tédio. É outra coisa. Um incômodo surdo, um nó na garganta que não se desata, uma vontade de sair correndo sem saber pra onde. Nessas horas, não é raro procurar distração: abrir o celular, comer alguma coisa, ligar a TV. Mas esse bicho estranho que aparece dentro da gente não se distrai fácil. Ele exige escuta, porque tem algo a dizer. É aí que Søren Kierkegaard entra como um velho amigo que, em vez de consolar, diz: “isso que você está sentindo tem nome. Chama-se angústia. E é um privilégio humano.”

Kierkegaard não é um pensador que nos poupa. Ele fala de dentro da experiência, e sua filosofia nasce de dores reais. A angústia, para ele, é o sentimento de quem percebe que é livre — e que, por isso mesmo, carrega o peso das escolhas e a vertigem do possível. Não é a tristeza de quem perdeu algo, mas o abismo aberto diante de quem pode ser qualquer coisa. É o susto de olhar no espelho e entender que ninguém, além de si mesmo, vai decidir quem você será.

O desespero, por outro lado, é um pouco mais traiçoeiro. Kierkegaard o define como uma espécie de doença da alma. Nem sempre o desesperado sabe que está em desespero. É o estado de quem tenta se afastar de si mesmo, fugir da própria verdade, viver uma vida fabricada para agradar os outros, ou para evitar o peso da liberdade. É uma anestesia existencial: a pessoa até sorri, mas por dentro está perdida de si.

E aqui está a virada inovadora que Kierkegaard propõe — e que ainda hoje assusta e liberta. Para ele, tanto a angústia quanto o desespero não são doenças a serem curadas, mas oportunidades de despertar. A angústia é como a febre que mostra que algo importante está acontecendo dentro da alma. O desespero, quando se torna consciente, pode ser o primeiro passo rumo à autenticidade. Ou seja, sentir-se angustiado ou desesperado pode ser sinal de que você está, finalmente, começando a viver de verdade.

Nas palavras do próprio Kierkegaard:

“A angústia é a vertigem da liberdade. [...] A psicologia sempre esteve certa ao dizer que a angústia pode conduzir à loucura, mas esqueceu de acrescentar que ela também pode conduzir à fé.”

(O Conceito de Angústia, 1844)

Kierkegaard enxergava a fé não como um abrigo seguro, mas como um salto no escuro. A fé, para ele, é o oposto da certeza. Não é algo que se prova, que se explica ou que se constrói com lógica — é uma decisão existencial. E é justamente isso que a torna tão angustiante. Para crer de verdade, é preciso aceitar que não há garantias.

No livro O Desespero Humano, ele mostra que a fé não elimina o desespero de ser quem se é — ela transforma esse desespero em caminho. O salto da fé, que ele tanto menciona, não é um pulo irresponsável, mas um mergulho consciente no paradoxo da existência. É quando o indivíduo decide ser ele mesmo, diante de Deus, mesmo sabendo que essa escolha envolve dor, dúvida e solidão.

Fé, nesse sentido, não é consolo: é confronto. E é por isso que a angústia não é um obstáculo à fé, mas quase sua condição. Só quem experimentou a vertigem da liberdade, o peso do próprio ser, e ainda assim decide afirmar a si mesmo diante do mistério, é capaz de dar esse salto. Como escreve Kierkegaard em O Conceito de Angústia, a fé nasce no exato ponto onde a razão reconhece seu limite — e o eu escolhe mesmo assim.

A fé, então, é o passo de quem olha o abismo — e não recua.

Em tempos em que o bem-estar é vendido como ideal absoluto, Kierkegaard nos convida a acolher o desconforto. Ele não romantiza a dor, mas a reconhece como caminho. A angústia é o aviso de que a alma está viva; o desespero é o grito de quem ainda não se encontrou — ou pior, encontrou-se e não gostou do que viu.

O que fazer, então, com essa angústia que nos visita nos silêncios? E esse desespero disfarçado de normalidade? Kierkegaard diria: enfrente. Não fuja de si. Pare de correr. A liberdade é vertiginosa, sim, mas é só nela que se encontra a verdadeira fé — não uma fé pronta e embalada, mas a fé como salto, como risco, como ato de escolher a si mesmo diante do infinito.

Quem sente angústia está diante da porta. Quem se desespera, já entrou no quarto e percebeu que não há móveis prontos. A construção da vida, para Kierkegaard, é artesanal. Leva tempo, exige coragem e honestidade radical. E talvez seja por isso que ele permanece tão atual: porque nos convida a não viver no automático, mas a construir — na dor e na escolha — a singularidade que somos.

Vou tentar resumir um pouco da vida pessoal de Kierkegaard, parece um daqueles romances intensos onde nada acontece por acaso, e tudo é vivido com peso de eternidade. Ele cresceu num ambiente sombrio, sob a influência de um pai profundamente religioso e melancólico, que acreditava ter amaldiçoado a Deus e transmitido essa culpa ao filho como uma herança invisível. E Kierkegaard a carregou — com uma seriedade quase trágica. Era um homem que amou intensamente, mas rompeu o noivado com Regine Olsen porque achava que não podia oferecer a ela uma vida comum: ele se sentia destinado à solidão e à missão de pensar Deus, a fé e o desespero com uma profundidade que não deixava espaço para o cotidiano do amor. Mesmo amando, afastou-se, e isso o marcou até o fim. Frequentava cafés, andava bem vestido, caminhava pelas ruas de Copenhague como uma presença elegante e enigmática — via as pessoas, mas raramente se deixava ver de verdade. A religião era sua obsessão e sua ferida: acreditava que a fé exigia um salto para o absurdo, uma entrega total e angustiante que a igreja oficial, com suas liturgias bem comportadas, jamais compreenderia. Escreveu muito, sempre como se estivesse tentando encontrar em palavras um caminho para Deus ou para si mesmo — ou para nenhum dos dois. Morreu jovem, aos 42 anos, fiel à sua inquietação, recusando os rituais da igreja que criticava, e deixando para trás uma obra que, em muitos aspectos, é o diário de uma alma atormentada que não queria respostas fáceis.

Vale uma nota de rodapé: Quando Kierkegaard fala em um salto para o absurdo vamos imaginar que a vida o levou até a beira de um penhasco. Lá embaixo, não dá pra ver nada — só neblina e silêncio. Você sabe que continuar na beirada é seguro, mas sente que ficar ali é trair alguma verdade profunda dentro de você. Aí vem Kierkegaard, com aquele jeito dele de profeta urbano, e diz: "Se você quer encontrar Deus de verdade, vai ter que pular." Não tem ponte, não tem escada, não tem certeza. É só você, o vazio e uma esperança absurda de que algo — que você não entende, não controla e não vê — vai te segurar. Esse é o salto da fé. Não é acreditar porque faz sentido; é acreditar justamente quando não faz. É confiar quando tudo em volta grita o contrário. Kierkegaard usava o exemplo de Abraão, que foi capaz de subir a montanha para sacrificar o próprio filho porque acreditava num propósito que ninguém mais entendia. Aos olhos do mundo, isso é loucura. E é isso mesmo: a fé verdadeira, pra ele, é um absurdo — um risco total, sem garantias, sem provas, sem lógica. É dar o salto mesmo tremendo, mesmo com medo, mesmo sem chão. Porque no fundo, o que Kierkegaard está dizendo é que a fé começa onde a razão termina.

Vale muito dar oportunidade para este filósofo falar ao nosso pé de ouvido, nos faz pensar... a leitura é para aqueles que sentem que viver é mais do que cumprir tarefas, a leitura é para leitores inquietos, desses que gostam de pensar para além do senso comum.