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quarta-feira, 18 de junho de 2025

Hipérbato

 

Vamos falar de quando a língua pensa diferente de nós!

Sabe aquele momento em que a gente atropela a fala? Quando a frase sai torta, fora de ordem, e depois já era — porque palavra dita é como pedra atirada: impossível voltar atrás. O que sobra é o ouvinte tentando entender aquele som estranho, como quem monta um quebra-cabeça no ar. Isso acontece porque a língua, de vez em quando, resolve andar de lado, fazer um caminho esquisito — e nasce o tal do hipérbato: essa mania velha da linguagem de embaralhar a ordem das palavras. "De saudade morreu o velho marinheiro" — e não "O velho marinheiro morreu de saudade". Por que falar assim?

Não é só truque de poeta, nem preciosismo de livro antigo. O hipérbato revela algo do nosso próprio pensamento: esse jeito meio embolado, meio torto, de sentir antes de organizar, de querer dizer muita coisa ao mesmo tempo — como quem tropeça nas próprias ideias. Linguistas, psicólogos e até filósofos deram atenção a esse fenômeno. Talvez porque nele mora um segredo bonito: o de que nem sempre pensamos em linha reta.

Vamos tentar entender por que, às vezes, a fala pula etapas — e o que isso diz da nossa mente.

Hipérbato: quando a língua pensa diferente de nós

Às vezes alguém fala de um jeito estranho — e o ouvinte estranha também: "Por que ele fala assim?". É o efeito do hipérbato, essa figura de linguagem que desloca a ordem natural das palavras e, de algum modo misterioso, nos prende a atenção. "Grande é o mistério da vida" — e não "O mistério da vida é grande". Por quê? Porque quem fala assim quer que o “grande” venha primeiro no pensamento, mesmo que venha depois no dicionário.

O nome vem do grego: hyperbaton, que quer dizer "transposição". Desde a Antiguidade já se percebia esse prazer de mexer na ordem das coisas para que o pensamento ganhasse ritmo, surpresa ou impacto. Camões fazia isso. Machado de Assis fazia isso. E, sem perceber, o garçom que diz "A mesa três já pagou, ela" também faz — porque algo no cérebro pede esse "desarranjo" para tornar a fala mais expressiva.

Mas há mais aqui do que estilo. Há um funcionamento mental sendo revelado. Como explica Roman Jakobson, linguista russo que aproximou poesia e linguagem cotidiana, toda fala humana oscila entre duas forças: a da seleção (escolher palavras) e a da combinação (colocar palavras em ordem). O hipérbato brinca com essa segunda força — ele mistura o eixo do tempo e o eixo do espaço na frase. O que devia vir depois vem antes, e vice-versa. É uma microdesordem que gera significado novo.

Do lado da psicologia, isso também se explica. O cérebro adora padrões previsíveis — sujeito, verbo, objeto — porque gastam menos energia. Quando o padrão é quebrado, há uma microtensão cognitiva: o ouvinte "acorda", precisa reorganizar o sentido da frase. É como se o hipérbato dissesse: "Ei, preste atenção. Não é uma frase qualquer". William James, o grande psicólogo da atenção, já dizia: só percebemos o que varia; o resto escapa à consciência.

Lacan daria um sorriso: para ele, o inconsciente é estruturado como uma linguagem, mas não qualquer linguagem — uma linguagem de deslocamentos, condensações, rupturas de ordem. O hipérbato, nesse sentido, é uma brecha onde o inconsciente vaza na fala cotidiana. Quando alguém diz "Feliz, ele não era" está dizendo mais do que a gramática permite — está dizendo também o modo torto e pulsante como o desejo se organiza.

Maurice Merleau-Ponty, filósofo da percepção, talvez acrescentasse: essa inversão é também corporal. O hipérbato desloca o corpo da frase, quebra sua linearidade, como um movimento inesperado no espaço. Por isso o leitor ou o ouvinte sente fisicamente a diferença — uma torção da língua que ecoa no corpo que escuta.

E tem ainda o lado da memória. Os poetas antigos sabiam: o que quebra a ordem fica mais fácil de lembrar. “Inocente é quem não tem culpa”, dizia a poesia latina — e o jogo da inversão fixava a ideia na mente. Publicitários fazem o mesmo hoje: "Porque você merece" soa mais impactante do que "Porque merece você". A inversão gruda no ouvido.

Talvez por isso o hipérbato nunca desapareça, mesmo nas falas banais: ele é um modo de marcar a palavra com intenção, emoção, singularidade. Quem fala assim não só informa — sugere, insinua, provoca.

No fim das contas, é como se a própria língua quisesse pensar diferente de nós. Ou melhor: como se nossa alma, ao falar, não suportasse ser tão direta quanto a lógica exige. Ela se curva, gira, troca de lugar — porque as ideias também chegam tortas, desencontradas, vivas.

Como dizia o velho Fernando Pessoa:

"Tudo é disperso, tudo é variação..."

Até a ordem das palavras. E talvez seja justamente nisso que mora o sentido mais verdadeiro da fala humana: no inesperado lugar onde a linguagem e o pensamento se cruzam — e tropeçam — um no outro.

quinta-feira, 12 de junho de 2025

Sinônimos de Amor

Por que não um ensaio Filosófico-Poético sobre um Verbo Irremediável: “Amor é Amar”

Para ler ouvindo a música Sinônimos de Zé Ramalho:

https://www.youtube.com/watch?v=FUz0a2cl_RM

Dizem que amar é verbo nobre, mas nunca disseram que é um verbo sem defesa. Amar é, no fundo, consentir com o próprio desamparo. É sofrer de forma escolhida — e eis a novidade: um sofrimento querido, quase desejado, aceito como quem aceita uma ferida que não quer ver curada. Não há amor sem alguma fissura, como não há casa antiga sem rachadura nas paredes. O amor, como as velhas moradias, guarda o cheiro de seus próprios desabamentos.

Amar não é paz. É um incêndio discreto que arde sem consumir — uma febre sem remédio, uma fome que não passa porque o alimento é o próprio desejo. O amante sofre porque quer — sofre porque ama; e não há jeito de separar um do outro sem que ambos morram. O amor sem sofrimento é jardim de plástico: bonito de longe, mas sem vida, sem cheiro, sem risco.

Quem ama teme. Teme perder, teme não ser amado, teme ser demais, teme ser de menos. Teme que o outro mude, que o tempo mude, que a própria alma mude. O amor é um campo minado de suposições, esperanças, incertezas. Nenhum amor verdadeiro anda de mãos dadas com a segurança — quem se sente seguro demais no amor já não ama, apenas administra um contrato civil de convivência.

Amar é sofrer porque o outro escapa. O outro nunca cabe inteiro no nosso abraço, nunca é exatamente o que imaginamos. O amor real é sempre um pouco menor (ou maior) que o amor sonhado. E é nessa fresta que mora o sofrimento: o amor é o que falta, mesmo quando está presente. Como dizia Fernando Pessoa:

"Tudo quanto o amor me dá

É o que me faz falta nele..."

Sim, o amor é falta. O outro é sempre inacessível em alguma parte — e é isso que nos mantém vivos, desejantes, queimando de curiosidade pela alma alheia.

Mas — e eis o que a filosofia nos sussurra — o sofrimento do amor não é fracasso, é potência. Porque só quem ama de verdade se permite não controlar. Só quem ama aceita a aventura de ser ferido e mesmo assim permanece. Amar é dizer ao mundo: "estou disposto a perder". E nisso reside uma força mais rara que a razão: a força de quem suporta o incerto.

Schopenhauer via nisso uma armadilha da vida: amar seria cair no truque da natureza, que nos obriga a sofrer para perpetuar a espécie. Um ciclo de desejo e dor do qual não podemos escapar, meros joguetes da Vontade cega da vida. Mas talvez ele estivesse cego para o outro lado do espelho: que sofrer por amor é a única dor que nos torna mais vivos, não menos.

Nietzsche, ao contrário, via no amor (especialmente no amor que sofre) uma promessa de superação. Não um castigo, mas uma prova: quem ama intensamente é empurrado para fora de si mesmo, para o perigo, para a vertigem — e só quem suporta isso pode tornar-se criador de si. Para ele, o amor que dói é o mesmo que fortalece; é um campo de batalha onde morre o velho eu e nasce o novo. Ele escreveu:

"Há sempre um pouco de loucura no amor. Mas também há sempre um pouco de razão na loucura."

Amar, para Nietzsche, é desordem criativa — não morte, mas transformação.

No fim, amar é sofrer, sim — mas é um sofrer que acorda, não que adormece. Um sofrer que afia a alma, como quem passa a faca na pedra até que brilhe. Sofrer de amor é a única dor que vale o preço, porque ao final dela descobrimos o mais estranho dos milagres: que doendo, crescemos.

Fernando Pessoa, com sua lucidez trágica, sabia disso. Em seus versos dispersos, confessou:

"Amo tudo o que foi,

Tudo o que já não é,

A dor que já me não dói,

A antiga e errônea fé..."

Até mesmo o amor sofrido vira saudade bela. Até a dor se recicla em ouro da memória.

Por isso, quem ama sofre. E quem foge do amor, sofre também — mas de um sofrimento mais frio, mais inútil, mais seco. O sofrimento de quem não ousou. O sofrimento de quem escolheu a paz dos que não viveram.

Talvez o amor seja, afinal, a arte de escolher o sofrimento certo.

A dor certa.

A ferida nobre.

A falta que nos salva.


sábado, 7 de junho de 2025

Corrompido de Sentido

Agora vamos fazer uma jornada de reflexão, vamos falar o sobre o esvaziamento do comportamento humano...

Há dias em que as coisas não parecem erradas, mas… tortas. Não é um crime, mas algo parece fora do eixo. Um bom dia que soa automático, um abraço dado sem corpo, uma indignação que parece moda e não sentimento. A gente sente que algo mudou. E mudou mesmo. Não só os hábitos, mas o modo como sentimos e interpretamos esses hábitos. Como se os gestos humanos tivessem sido corrompidos não por maldade, mas por um certo esvaziamento interior. Estamos, aos poucos, sendo corrompidos de sentido.

A corrupção de sentido é mais sutil que a mentira. Ela não grita, não se impõe. Ela vai acontecendo pelas bordas, no excesso de repetição, na transformação do necessário em performance. O comportamento humano, nesse cenário, passa a simular o que antes nascia do íntimo: empatia, cuidado, respeito, verdade.

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han observa, em obras como A sociedade do cansaço e A expulsão do outro, que vivemos numa era em que o excesso de positividade e a busca constante por desempenho destroem os vínculos mais humanos. Não há mais espaço para o outro real, com sua lentidão, suas contradições. No lugar disso, surgem comportamentos estéticos, calculados, que imitam a empatia sem senti-la. Sorrir virou protocolo. Escutar virou tempo perdido. Cuidar do outro virou conteúdo para postagem.

A tecnologia, por sua vez, surgiu como extensão da inteligência e da criatividade humana — um instrumento para aliviar tarefas, expandir possibilidades e conectar pessoas. No entanto, quando utilizada sem sabedoria, ela deixa de ser ferramenta e passa a ser modelo. Em vez de servir ao humano, o humano começa a imitá-la. Tornamo-nos eficientes como algoritmos, previsíveis como linhas de código, otimizados como máquinas — e, nesse processo, nossos comportamentos também se automatizam. O gesto perde intenção, o olhar perde pausa, a fala perde silêncio. Como alertou o filósofo Günther Anders, ao refletir sobre a obsolescência do homem, há um risco real de sermos substituídos não pelas máquinas em si, mas pela forma como passamos a viver como elas. A tecnologia não corrompe por si só — mas, quando usada como substituto da relação, da reflexão e da presença, ela acelera a corrosão do sentido humano.

Nietzsche, já no século XIX, alertava sobre o perigo de viver entre máscaras. No Crepúsculo dos Ídolos, ele dizia que "todo hábito torna a mão mais espirituosa, e o espírito mais preguiçoso". Aplicando isso ao comportamento, podemos dizer que repetir gestos sem consciência nos afasta do sentido real das coisas. Tornamo-nos habilidosos em parecer humanos, sem saber mais o que isso significa.

Mas não é só crítica. Também é diagnóstico. Estamos, talvez, num momento de reinvenção do comportamento. Um cansaço profundo das simulações parece se anunciar em vozes novas. A filósofa brasileira Viviane Mosé aponta para a urgência de uma ética sensível, em que o corpo, o afeto e a escuta sejam reconectados à linguagem. Para ela, a palavra só tem força quando está ligada à experiência real. Senão, é ruído.

O desafio, então, não é só individual, mas coletivo. Não basta buscarmos o "ser verdadeiro" como um ideal pessoal — é preciso cultivar espaços onde a verdade possa sobreviver. Onde o abraço não precise ser filmado, onde o silêncio não seja constrangimento, onde o cuidado não precise de like. Onde o comportamento humano recupere, devagar, o seu conteúdo.

Ser corrompido de sentido não é um destino. É uma condição. E condições podem ser enfrentadas.

Talvez o caminho seja pequeno: reaprender o gesto. Reencantar a palavra. Refazer o contato. Não com pressa, mas com presença.

Porque o que está corrompido ainda pode ser restaurado — não com verniz, mas com alma.


sexta-feira, 6 de junho de 2025

Pecado Original

O que fizemos de errado antes mesmo de nascer?

Parece injusto carregar uma culpa que não foi escolhida. Como se nascêssemos devendo algo. Como se a vida, em seu primeiro fôlego, já nos colocasse sob suspeita. Estamos falando do chamado pecado original — esse conceito antigo, estranho, e ainda hoje ressoante, que diz que herdamos de Adão e Eva, lá no Éden, uma falha moral de fábrica. Mas e se olhássemos para isso de outro jeito? E se essa culpa não fosse um castigo, mas um modo simbólico de nos contar algo profundo sobre a condição humana?

Herança sem testamento

Na tradição cristã, o pecado original nasce com a desobediência: comer o fruto proibido, desafiar a ordem divina. Mas o problema não é só o ato, é o que ele revela: o desejo de conhecer, escolher, experimentar. Não é estranho que o primeiro erro tenha sido querer saber mais? O pecado, então, não seria um acidente, mas uma revelação: o humano é, por natureza, um ser inquieto. E talvez o pecado original seja isso — não um erro cometido, mas uma vocação inevitável para o excesso, o risco, o desvio.

Não escolhemos ser assim, apenas somos. Como dizia Agostinho, “em Adão todos pecaram” — o que soa como uma condenação universal, mas também como um retrato da fragilidade que nos une. Não é apenas um castigo: é a lembrança de que somos falhos, e talvez por isso tão humanos.

Um mito sobre a liberdade

Se tirarmos a linguagem religiosa e ficarmos com a estrutura simbólica, o pecado original pode ser lido como o nascimento da liberdade. Adão e Eva não erram porque são maus, mas porque são livres. A serpente, o fruto, o ato de comer — tudo isso compõe uma cena inaugural de escolha. Um universo sem pecado original seria um mundo de bonecos obedientes, de seres sem conflito. Seria, talvez, um jardim sem humanidade.

A expulsão do paraíso é, então, a entrada na realidade. O Éden é infância, segurança, ilusão de harmonia. Fora dele, encontramos a vida: o trabalho, o sofrimento, o tempo, a morte — e também o amor, a ética, a construção de sentido. Ser lançado no mundo, como diria Heidegger, é existir em angústia, mas também em possibilidade.

A culpa como condição

O psicanalista Jacques Lacan observava que a culpa não nasce apenas do que fazemos, mas do próprio fato de desejar. Desejar é se comprometer com a falta, com aquilo que não temos e que nos move. Nesse sentido, o pecado original seria o símbolo do desejo que funda o sujeito. Não desejamos por sermos culpados. Somos culpados porque desejamos. A culpa original é a sombra da liberdade: aparece assim que escolhemos ser alguém.

E se não for culpa, mas ponto de partida?

Talvez devêssemos deixar de ver o pecado original como uma dívida e passar a vê-lo como um reconhecimento: de que ninguém começa do zero, de que a existência já vem atravessada por histórias que não escolhemos, de que o mundo nos molda antes mesmo de sabermos quem somos. É injusto? Sim. Mas é também uma chance de compreender que crescer é lidar com o que herdamos — não apenas genes, mas dores, pesos, narrativas.

O filósofo brasileiro Rubem Alves dizia que “o paraíso não é lugar onde não há dor, mas onde a dor faz sentido”. Talvez o pecado original, longe de ser um erro isolado no passado, seja uma metáfora para nossa condição atual: a de quem vive entre a queda e o salto, entre o erro e a reconstrução.

O pecado original pode não ser literal. Mas é real no sentido em que todos nós, de algum modo, nascemos num mundo que já nos antecede, com suas regras, seus limites, suas faltas. A questão nunca foi evitar o pecado, mas descobrir o que fazemos com ele. Afinal, se não podemos apagar a mancha, talvez possamos transformá-la em arte.


sábado, 12 de abril de 2025

Lembrança Incerta

Estava pensando, falando cá com meus botões, e se a nossa memória não fosse confiável? Seria o caso das falhas da lembrança e a construção da realidade?

Outro dia, meu filho contou uma história da infância com riqueza de detalhes: nós dois brincando na sala de casa, uma bronca que levamos por termos derrubado café sobre o tapete. Eu, sinceramente, não lembrava de nada disso. E mais: achava que eu nem estava presente naquela ocasião. Ficamos os dois convencidos de que nossa versão era a correta — e, ironicamente, ambos estávamos certos... e errados.

A questão é que a memória não é um espelho do passado, e sim uma reconstrução narrativa, como já sugeria o filósofo francês Henri Bergson. Em sua obra Matéria e Memória (1896), ele argumenta que lembrar não é simplesmente armazenar e recuperar dados, mas sim reinterpretar o passado à luz do presente. Cada lembrança, portanto, não é uma cópia, mas uma reinvenção.

Essa ideia foi posteriormente reforçada pelas ciências cognitivas. Elizabeth Loftus, psicóloga cognitiva e pesquisadora da Universidade da Califórnia, demonstrou com inúmeros experimentos que memórias falsas podem ser implantadas com facilidade. Em um de seus estudos clássicos, participantes foram convencidos de que haviam se perdido em um shopping quando crianças — e muitos não apenas acreditaram, como acrescentaram detalhes fictícios à lembrança. Isso colocou em xeque a validade dos testemunhos oculares e mostrou como somos mais vulneráveis à manipulação do que gostaríamos de admitir.

E não é só sobre manipulação externa. O próprio cérebro preenche lacunas quando precisa. Como observou Oliver Sacks, neurologista e escritor, em O Homem que Confundiu Sua Mulher com um Chapéu, pessoas com lesões neurológicas criam versões alternativas da realidade com base em memórias fragmentadas. Essas versões são, para elas, tão reais quanto qualquer outra.

Nosso cotidiano está repleto de exemplos mais sutis. Um casal que discorda sobre o tom de uma conversa; irmãos que lembram diferentes versões da mesma viagem; o funcionário que acha ter sido injustiçado por um chefe que sequer se recorda do episódio. A memória, muitas vezes, não guarda fatos — ela guarda emoções associadas a fatos. E isso muda tudo.

O filósofo britânico Bertrand Russell advertia que “a lembrança é sempre, em certa medida, um ato de criação.” Já Friedrich Nietzsche foi além: em A Genealogia da Moral, ele sugere que a memória é moldada pela necessidade social — aprendemos a lembrar da dor para obedecer, lembrar da culpa para sermos domesticados. Ou seja, nem sempre lembramos por vontade própria: muitas vezes lembramos porque fomos ensinados a lembrar de certos eventos e não de outros.

Do ponto de vista neurocientífico, sabe-se hoje que cada vez que acessamos uma lembrança, ela é regravada no cérebro — um processo chamado reconsolidação. Isso significa que lembrar é também alterar. Como uma foto que vai perdendo qualidade a cada cópia, a memória se degrada e se adapta. Nossos neurônios, longe de serem arquivos estáticos, são mais como um sistema de edição contínua.

Isso nos leva a um dilema curioso: se a nossa memória é fluida, o que isso diz sobre a nossa identidade? Somos, em parte, o que lembramos — nossas escolhas, arrependimentos, alegrias e medos. Mas se nossas lembranças mudam, quem somos nós realmente?

Talvez a resposta esteja na aceitação da memória como narrativa. Como uma história contada por alguém que se reconstrói com o tempo. E isso não precisa ser visto como um problema. A memória criativa é também uma memória que cura, que reinterpreta o sofrimento, que permite recontar a própria vida com um novo significado.

No fundo, a memória não busca a verdade literal — ela busca sentido. E, como escreveu Clarice Lispector: “o que me salva é o saber que, mesmo quando erro, estou tentando acertar o caminho do que me importa”. Lembrar é, muitas vezes, isso: tentar acertar o caminho do que importa.


domingo, 30 de março de 2025

Confuso Mundo

Muita estória começa numa cafeteria. Certa vez, em meio ao burburinho de uma cafeteria, percebi uma cena curiosa: um homem tentava equilibrar uma bandeja com café, celular e um livro aberto ao mesmo tempo. Uma metáfora perfeita para o mundo de hoje, onde tudo acontece de maneira simultânea, caótica, sobreposta. Vivemos na era do excesso de informação, da aceleração constante e da fragmentação da experiência. O mundo, confuso em sua essência, nos desafia a encontrar um fio condutor, uma lógica mínima que nos permita caminhar sem tropeçar a cada passo.

O filósofo Zygmunt Bauman descreveu nossa época como "líquida", sem formas fixas, sem certezas duradouras. A modernidade sólida deu lugar a um estado fluido, onde tudo se dissolve rapidamente: valores, relações, identidades. O que era seguro ontem hoje parece incerto, e o que parece verdade hoje pode ser refutado amanhã. Essa instabilidade nos obriga a um malabarismo constante, como o homem da cafeteria, tentando equilibrar todas as exigências sem deixar nada cair.

Mas essa confusão do mundo não é apenas um problema externo; ela se reflete dentro de nós. Há dias em que sentimos que nossas identidades são múltiplas e contraditórias. A pessoa que somos no trabalho não é a mesma que se revela na solidão do quarto ou no encontro casual com um amigo de infância. Somos, ao mesmo tempo, espectadores e atores de uma peça cujos roteiros mudam a cada instante.

A filosofia sempre tentou organizar esse caos, buscando ordem na aparente desordem. Os estóicos, por exemplo, sugeriam que a chave para viver bem era aceitar aquilo que não controlamos e focar no que depende de nós. Já Nietzsche nos alertava sobre os perigos das verdades absolutas, defendendo a necessidade de criar nossos próprios valores. O mundo sempre foi confuso, mas nossa percepção dessa confusão é que se intensificou.

Talvez a solução não seja buscar uma lógica definitiva para tudo, mas aprender a dançar no meio desse fluxo imprevisível. Aceitar que a incerteza faz parte da condição humana e que, no fundo, a própria busca por sentido já é uma forma de dar sentido à vida. Como diria Heráclito, tudo flui. O desafio está em não nos afogarmos nessa correnteza, mas em encontrar nosso próprio ritmo dentro dela.


terça-feira, 18 de março de 2025

Absurdo da Informação

O Novo Mito de Sísifo

Vivemos na era do excesso. As notificações se acumulam como ondas quebrando na praia, uma após a outra, sem pausa para contemplação. O celular vibra, a tela brilha, um novo dado, uma nova opinião, uma nova crise, uma nova promessa de verdade. Mas onde tudo isso nos leva? Sentimos que sabemos mais do que nunca e, paradoxalmente, compreendemos cada vez menos.

Albert Camus reinterpretou o mito de Sísifo como uma metáfora para a condição humana diante do absurdo: empurramos a rocha montanha acima apenas para vê-la rolar de volta ao vale, em um ciclo interminável. Hoje, a rocha foi substituída pela informação. Nos esforçamos para consumi-la, catalogá-la, absorvê-la – mas, assim que pensamos tê-la compreendido, novas camadas de dados se sobrepõem, desfazendo qualquer tentativa de sentido consolidado.

A internet, com sua aparente promessa de democratização do conhecimento, acabou por nos afogar em um mar de hiperconectividade e desorientação. O problema não é apenas o volume, mas a efemeridade e fragmentação da informação. Não há tempo para a reflexão profunda; tudo deve ser consumido, compartilhado, esquecido e substituído em um ciclo vertiginoso.

O mito contemporâneo de Sísifo não se resume ao trabalho sem sentido, mas à busca de sentido em meio ao caos informacional. Em um mundo onde qualquer pessoa pode produzir e disseminar conhecimento instantaneamente, o que diferencia o verdadeiro saber do mero ruído?

Gilles Deleuze já apontava para a crise do pensamento em uma sociedade movida por estímulos rápidos e respostas prontas. O problema não está apenas na proliferação da informação, mas na forma como ela é consumida – passivamente, sem espaço para a construção de significados mais profundos. A reflexão dá lugar à reação imediata. A sabedoria é sufocada pela urgência.

E, no entanto, Sísifo continua subindo a montanha. Talvez o ato de questionar, de discernir, de resistir ao fluxo incessante seja a nossa única forma de revolta contra esse absurdo informacional. Como Camus sugeria, a liberdade está na consciência do absurdo e na escolha de continuar, apesar dele. Assim, ao invés de sermos apenas consumidores de informação, devemos ser seus alquimistas – extraindo da enxurrada digital o ouro da compreensão verdadeira.

O que nos resta é decidir: empurramos a rocha cegamente ou escolhemos encontrar, no próprio fardo, um caminho para a lucidez?


segunda-feira, 17 de março de 2025

Proposições de Valor

Entre o Preço e o Sentido

Outro dia, enquanto tomava um café numa livraria, ouvi uma conversa curiosa entre dois amigos. Um dizia que um produto "valia muito", ao que o outro respondia que “o valor era relativo”. Fiquei pensando: falamos tanto em valor, mas o que ele realmente significa? Para uma empresa, pode ser a proposta de valor que diferencia um serviço dos concorrentes. Para um colecionador, pode ser o significado sentimental de um objeto. Para um filósofo, bem… é aí que as coisas se complicam.

O Valor Como Construção

A primeira pergunta que surge é: o valor é algo objetivo ou subjetivo? Desde Platão, há quem defenda que certas ideias e valores são eternos e imutáveis, como a Justiça ou o Bem. Já Nietzsche desmontou essa visão ao dizer que valores são criações humanas, reflexos de forças culturais e históricas. Se for assim, então o que vale para um tempo pode não valer para outro. O ouro já foi a medida do valor absoluto, mas hoje, para muitos, os dados digitais são mais valiosos.

Pense em um ingresso para um show. Ele tem um preço fixo, mas seu valor muda se for o último ingresso disponível ou se for para a despedida da sua banda favorita. Da mesma forma, a amizade tem valor, mas não pode ser comprada. Isso significa que o valor não está na coisa, mas na relação que estabelecemos com ela.

Proposição de Valor: Uma Ilusão?

Nos negócios, o conceito de proposição de valor é essencial. Empresas criam narrativas sobre por que seus produtos são especiais. Mas isso não reflete apenas uma necessidade real, e sim uma construção simbólica. Se compramos um café artesanal por R$ 20, não estamos pagando apenas pelo grão moído, mas pelo status, pela experiência, pelo cheiro da cafeteria. Então, até que ponto o valor é real ou apenas uma ilusão bem contada?

Bauman dizia que vivemos tempos líquidos, onde valores mudam rapidamente. Se isso é verdade, as proposições de valor são promessas instáveis: hoje uma marca pode ser um símbolo de status, amanhã pode ser esquecida. Valores morais seguem a mesma lógica: o que era visto como virtude há cem anos pode ser considerado arcaico hoje.

Valer é Existir?

Se o valor é sempre uma relação, podemos dizer que existir é valer algo para alguém. Um objeto só tem valor se houver um olhar que o reconheça. Um ideal só tem força se houver quem acredite nele. Nietzsche dizia que o homem é um ser que avalia—e talvez seja essa nossa maldição e nosso privilégio. Criamos valores porque precisamos dar sentido ao mundo. Mas será que conseguimos viver sem confundi-los com verdades absolutas?

Da próxima vez que alguém disser que algo "vale muito", pergunte: para quem? e por quê?. Talvez o verdadeiro valor esteja justamente na pergunta.


domingo, 22 de dezembro de 2024

Acreditar Pela Metade

Acreditar pela metade é uma atitude que habita a zona cinzenta entre o ceticismo e a fé, entre o "sim" completo e o "não" absoluto. Trata-se de uma postura que nos convida a investigar o espaço onde a confiança vacila e onde a dúvida se insinua. Mas o que significa, realmente, acreditar pela metade? E o que essa condição revela sobre nós mesmos e sobre o mundo que habitamos?

O Espaço da Dúvida

Na prática cotidiana, acreditar pela metade pode se manifestar em situações simples, como confiar parcialmente em um amigo que já nos decepcionou ou acreditar em uma proposta de trabalho que parece boa demais para ser verdade. Nesses momentos, estamos simultaneamente abertos e fechados, criando uma barreira interna que nos protege, mas que também nos isola.

O filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard sugeriu que a fé verdadeira é um salto no desconhecido, um compromisso total com algo que transcende a razão. Quando acreditamos pela metade, nos recusamos a dar esse salto; ficamos presos na borda do penhasco, hesitando entre o medo de cair e a promessa de voar.

A Sociedade e a Crença Fragmentada

No contexto social, acreditar pela metade é quase uma norma. As redes sociais, por exemplo, nos expõem a uma avalanche de informações que rapidamente consumimos e descartamos. Compartilhamos manchetes, mas raramente lemos o conteúdo. Acreditamos apenas o suficiente para validar nossas opiniões, mas não o bastante para mudar nossas perspectivas. Esse fenômeno é descrito pelo filósofo brasileiro Milton Santos, que alerta sobre a superficialidade das conexões em um mundo globalizado e fragmentado.

Essa crença fragmentada pode ser vista como uma defesa contra a sobrecarga de informações. Afinal, é impossível dedicar nossa confiança plena a tudo o que vemos ou ouvimos. No entanto, esse hábito também nos torna cínicos, desconfiados e, às vezes, incapazes de nos engajarmos profundamente com algo ou alguém.

Acreditar Pela Metade e o Eu

No plano pessoal, acreditar pela metade muitas vezes reflete uma luta interna. Quando não confiamos plenamente em nossas capacidades ou em nossos sonhos, nos tornamos espectadores de nossas próprias vidas. Ficamos à margem, aguardando uma prova definitiva de que é seguro avançar. Hannah Arendt, ao discutir a condição humana, enfatizou que a ação é o que define o ser humano no mundo. Mas, para agir, é necessário acreditar, ao menos por um momento, que o que fazemos importa.

O Que Fazer com a Metade?

Acreditar pela metade pode ser visto tanto como uma limitação quanto como um convite. Por um lado, nos impede de experimentar a totalidade de uma ideia, de uma relação ou de uma escolha. Por outro, nos permite manter um pé no chão enquanto exploramos novas possibilidades. Talvez a questão não seja eliminar a crença parcial, mas aprender a usá-la como uma ponte para algo maior.

O filósofo e educador Rubem Alves costumava dizer que a dúvida é a mãe da sabedoria, pois nos mantém curiosos e dispostos a aprender. Assim, acreditar pela metade não precisa ser um estado permanente, mas um estágio transitório, uma pausa reflexiva antes do próximo passo.

Acreditar pela metade é, em essência, um reflexo da nossa condição humana: ambígua, insegura e constantemente em busca de sentido. Reconhecer essa dualidade pode nos ajudar a navegar melhor pelos dilemas da vida, cultivando a coragem de dar saltos de fé quando necessário e a paciência de permanecer na incerteza quando prudente. Afinal, como disse Fernando Pessoa, "Tudo vale a pena, se a alma não é pequena." E, às vezes, até acreditar pela metade já é um começo.


segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Niilismo Moderno

Vamos ser sinceros: quantas vezes já olhamos ao redor e pensamos que tudo está um tanto vazio de propósito? No trabalho, na fila do banco, na avalanche de posts na internet, parece que falta algo fundamental que nos faça sentir mais vivos. Esse sentimento não é só pessoal, e nem surgiu agora; ele é um dos sintomas do niilismo, uma corrente de pensamento que vem nos acompanhar na modernidade como uma sombra incômoda. Mas afinal, o que é esse tal de niilismo, e por que parece ser tão relevante hoje?

Vivemos cercados por "zumbis tecnológicos," figuras quase hipnotizadas que passam horas deslizando os dedos sobre telas brilhantes, rolando infinitamente por feeds sem rumo ou propósito. Esses zumbis modernos parecem presos em um transe, repetindo gestos automáticos numa busca que nem eles sabem pelo quê. Em um paradoxo cruel, a conexão constante nos desconecta do mundo ao nosso redor: o toque humano se reduz a pixels e os diálogos, a frases curtas e emojis. Como máquinas, seguimos algoritmos invisíveis, permitindo que a tecnologia preencha o vazio com um fluxo incessante de imagens e distrações, deixando pouco espaço para reflexão ou propósito real.

O niilismo, grosso modo, significa o esvaziamento de sentido, o colapso de valores e a descrença em verdades absolutas. Friedrich Nietzsche, o filósofo que deu o nome e a forma a essa ideia, dizia que o niilismo surge quando os valores que sustentavam a vida humana perdem o valor. Para ele, “Deus está morto” representava essa ausência de um eixo de significado supremo que antes dava sentido à existência. E se, no passado, as crenças religiosas, morais e sociais eram nosso mapa, hoje o niilismo aponta que talvez, na modernidade, estejamos sem uma bússola.

Vivemos numa época em que as grandes narrativas, como as religiões e ideologias políticas absolutistas, parecem ter sido substituídas por um relativismo universal. Podemos ser “qualquer coisa,” o que deveria nos deixar livres. Mas será que não estamos mais perdidos do que livres? Numa sociedade de consumo acelerado, onde tudo é descartável – de objetos a relacionamentos – muitos acabam sentindo um vazio, uma angústia que vem da falta de algo sólido para se apegar. Basta olhar ao redor: os índices de depressão e ansiedade subiram, as relações são cada vez mais fragmentadas, e a internet, nosso grande palco moderno, nos mostra a superficialidade e a volatilidade das conexões humanas. O resultado é um niilismo social, onde as pessoas desconfiam até mesmo dos valores tradicionais e duvidam de qualquer verdade.

Nietzsche, claro, sabia que o niilismo era inevitável, mas ele o via também como uma oportunidade. No “Crepúsculo dos Ídolos”, ele sugeria que precisamos superar o niilismo – transformá-lo em uma força criativa. Em vez de deixar que o vazio nos paralise, Nietzsche propõe que sejamos criadores de novos valores. Afinal, o problema do niilismo não é a falta de sentido em si, mas a nossa incapacidade de criar um sentido novo.

A sociedade moderna está diante de um dilema niilista: ou se resigna ao vazio, ou encontra coragem para, coletivamente e individualmente, construir novas formas de dar sentido à vida. É como o filósofo brasileiro Gerd Bornheim sugeriu: o niilismo não é um fim, mas uma transição. Ele nos empurra para uma busca nova, onde a liberdade de escolher o que é importante para cada um é o único caminho para nos reerguer. Pode ser assustador, mas é também uma chance única de recriarmos o mundo em que vivemos.


domingo, 23 de junho de 2024

Pandorgas sem Cauda

 

Quando olhamos para uma pandorga, ou pipa, voando alto no céu, ela parece ser a epítome da liberdade e da alegria. No entanto, essa alegria e liberdade só são possíveis graças ao controle proporcionado pela cauda da pandorga. Sem ele, a pandorga se torna instável, voando de forma errática e imprevisível, até eventualmente cair. Esta imagem pode servir como uma poderosa metáfora para a vida humana, onde a "cauda" simboliza direção e controle.

A Metáfora da Pandorga

Comparar uma pandorga sem cauda a uma pessoa que vive sem direção e controle é um exercício interessante. Assim como a pandorga precisa da cauda para manter-se estável e seguir uma trajetória, as pessoas também necessitam de objetivos claros e disciplina para navegar pela vida de maneira produtiva e satisfatória.

Uma pandorga sem cauda é, na melhor das hipóteses, uma curiosidade efêmera. Ela pode atrair olhares pelo seu comportamento imprevisível, mas sua trajetória caótica não dura muito. Eventualmente, ela perde altura e cai. Da mesma forma, uma pessoa sem propósito ou autocontrole pode atrair atenção por sua imprevisibilidade, mas é provável que enfrente dificuldades em manter um caminho sustentável e gratificante na vida.

A Perspectiva de Viktor Frankl

Para aprofundar essa discussão, podemos recorrer aos pensamentos de Viktor Frankl, um renomado psiquiatra e sobrevivente do Holocausto, autor do livro "Em Busca de Sentido". Frankl argumenta que o ser humano é fundamentalmente impulsionado por uma busca de sentido. Ele acredita que a falta de um propósito claro pode levar ao desespero e ao vazio existencial.

Frankl desenvolveu a logoterapia, uma abordagem terapêutica que se baseia na premissa de que encontrar um sentido na vida é a principal força motivadora dos seres humanos. De acordo com Frankl, mesmo nas circunstâncias mais difíceis, como as que ele próprio enfrentou nos campos de concentração nazistas, a capacidade de encontrar significado pode ser o que nos mantém vivos e nos dá força para seguir em frente.

A Importância da Cauda na Vida

Então, o que seria essa "cauda" na nossa vida cotidiana? Pode ser qualquer coisa que nos dê estabilidade e direção: nossos valores, nossos objetivos, nossos relacionamentos. Sem esses elementos, corremos o risco de nos tornarmos como pandorgas sem cauda, vagando sem rumo e à mercê dos ventos.

Para muitos, encontrar propósito pode envolver definir metas profissionais, construir e manter relações significativas, ou contribuir para algo maior que si mesmo, como uma causa social. A disciplina, por outro lado, é o que nos ajuda a seguir adiante, mesmo quando o caminho se torna difícil. É a força que nos mantém firmes e nos impede de desistir.

Viver sem direção e controle é como ser uma pandorga sem cauda – pode até ser interessante por um tempo, mas não é sustentável. Precisamos de propósito e disciplina para nos mantermos no ar e, assim, alcançar nossos objetivos. Como Viktor Frankl nos ensinou, o sentido da vida é o que nos dá força para enfrentar os desafios e continuar nossa jornada, mesmo nas circunstâncias mais adversas.

Recentemente enfrentamos as adversidades causadas pelas enchentes em nosso Estado. As enchentes podem ser e são devastadoras, arrancando das pessoas tudo o que elas construíram com tanto esforço. Nesses momentos, é natural sentir-se como uma pandorga sem cauda – sem direção, controle e estabilidade. Mas mesmo nas circunstâncias mais difíceis, é possível encontrar um caminho de volta ao sentido e à direção.

Acolhendo a Dor

A primeira coisa a reconhecer é que não há problema em se sentir perdido e sem esperança. A dor e a tristeza são reações humanas naturais diante de uma perda tão grande. Permita-se sentir essa dor sem pressa de superá-la. Buscar apoio emocional de amigos, familiares ou profissionais pode ser uma grande ajuda nesse processo.

Viktor Frankl e a Busca de Sentido

Inspirando-se novamente em Viktor Frankl, podemos encontrar luz mesmo nas trevas. Frankl, em seu livro "Em Busca de Sentido", fala sobre a importância de encontrar um propósito mesmo nas situações mais desesperadoras. Ele argumenta que, mesmo quando tudo parece perdido, ainda podemos encontrar um sentido para seguir em frente. Esse sentido pode ser encontrado em pequenas coisas do dia a dia, nas relações humanas ou em uma missão pessoal que nos impulsiona a reconstruir.

Reconstruindo a Cauda da Pandorga

Para quem perdeu tudo nas enchentes, a vida pode parecer sem rumo, como uma pandorga sem cauda. Mas é possível começar a reconstruir essa estabilidade e direção, passo a passo. Aqui estão algumas sugestões práticas:

Defina Pequenos Objetivos: Comece com objetivos pequenos e alcançáveis. Cada pequena conquista ajudará a construir a confiança e a sensação de controle sobre a sua vida.

Busque Apoio Comunitário: Participar de grupos de apoio ou de iniciativas comunitárias pode proporcionar um sentido de pertencimento e propósito, além de ajudar a dividir a carga emocional.

Cultive Resiliência: A resiliência é a capacidade de se recuperar das adversidades. Fortaleça sua resiliência focando nas suas forças, mantendo uma atitude positiva e sendo gentil consigo mesmo durante o processo de recuperação.

Encontre Significado nas Pequenas Coisas: Muitas vezes, o sentido da vida pode ser encontrado nas pequenas coisas – um ato de bondade, um momento de conexão com a natureza ou uma conversa significativa com um amigo.

Planeje o Futuro: Mesmo que pareça difícil, começar a planejar o futuro pode ajudar a restabelecer um senso de direção. Pense no que você quer construir daqui para frente e como pode começar a dar os primeiros passos nessa direção.

Mensagem de Esperança

Para aqueles que se sentem como pandorgas sem cauda após as enchentes, é importante lembrar que, mesmo nas situações mais difíceis, há sempre uma maneira de reencontrar a direção. A vida pode ser imprevisível e cheia de desafios, mas a capacidade humana de encontrar sentido e propósito é imensa.

Assim como uma pandorga pode ser consertada e ajustada para voar novamente, nós também podemos nos recuperar e encontrar novos caminhos para seguir em frente. O processo pode ser lento e árduo, mas cada pequeno passo em direção à reconstrução é um passo significativo para reencontrar a estabilidade e o propósito na vida.

Então, quando você vir uma pandorga voando alto no céu, lembre-se da importância da cauda. E talvez, reflita sobre quais são os elementos em sua vida que lhe proporcionam direção e controle, garantindo que você também possa voar alto, de maneira estável e significativa.