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domingo, 20 de julho de 2025

Lembrar Não Dói

Quando há ausência de emoção como proteção, escolha ou superação

Há quem chore ao lembrar do passado. Há quem sorria. E há quem se cale — não por escolha, mas porque, mesmo lembrando, não sente nada. Esse silêncio emocional diante da memória pode parecer estranho, frio ou até inquietante. Mas nem sempre é sinal de indiferença. Pode ser um mecanismo de defesa, uma estratégia de sobrevivência ou até um sinal de que algo foi resolvido em profundidade.

A pergunta que nos guia aqui é: por que algumas pessoas lembram, mas não sentem?

 

Defesa: quando o corpo decide esquecer o sentir

Em situações de trauma ou dor profunda, o sistema psíquico humano pode adotar o que a psicologia chama de anestesia afetiva. A lembrança permanece, mas a emoção correspondente é suprimida — como se o corpo dissesse: "É melhor não sentir isso agora."

Esse distanciamento não é escolha consciente. É um tipo de desligamento interno. Muito comum em vítimas de violência, abusos, perdas ou situações de estresse extremo. Lembrar sem sentir, nesses casos, é uma forma de seguir em frente sem quebrar por dentro.

 

Congelamento emocional: viver com a torneira fechada

Para outros, a ausência de emoção tem raízes mais longas: infância sem afeto, educação que valoriza o controle emocional, ambientes onde chorar era fraqueza. O afeto foi secando aos poucos. A lembrança, então, vira um arquivo sem cheiro, sem calor, sem lágrimas.

Essas pessoas podem parecer “como máquinas”. Mas o que há nelas, na verdade, é uma torneira emocional travada. Algo que talvez nem saibam destravar — e às vezes nem queiram. Porque não sentir pode parecer mais seguro do que correr o risco de sofrer.

 

Intelectualização: quando a razão toma conta do coração

Alguns lidam com o passado como se fosse um livro de filosofia: analisam, explicam, contextualizam… mas não se emocionam.

É o que chamamos de intelectualização — um recurso comum entre pessoas muito racionais, estudiosas, ou que foram treinadas a confiar mais na mente do que nas entranhas.

Essa ausência de emoção não é vazio — é excesso de controle. É uma blindagem com aparência de lucidez.

 

Superação: quando o sentir se transforma

Há, no entanto, um outro tipo de ausência de dor: aquela que vem depois da aceitação. Quando a memória já foi atravessada, digerida, ressignificada. Não é que a pessoa não sente — ela sente de outra forma.

É como quem perdeu alguém e consegue falar disso com doçura, sem nó na garganta.
Ou como quem foi ferido e, anos depois, consegue olhar para o agressor sem ódio.
Aqui, a lembrança não dói porque já foi vivida até o fim. Já não é prisão, nem sombra. É parte do caminho.

 

Viktor Frankl: sofrimento como caminho para o sentido

O psiquiatra Viktor Frankl, sobrevivente de campos de concentração nazistas, desenvolveu a Logoterapia, uma abordagem terapêutica baseada no sentido da vida. Ele observou que não é o sofrimento em si que destrói o ser humano, mas a ausência de sentido nele.

Frankl dizia:

“A dor deixa de ser sofrimento no momento em que encontramos um significado para ela.”

Com isso, ele nos ensina que a ausência de emoção diante da lembrança pode, sim, ser um sinal de que o sofrimento foi integrado e superado — transformado em aprendizado, em paz, ou em silêncio fecundo.

 

Afinal, o que essa ausência de emoção nos diz?

Ela pode ser:

  • Um grito silencioso de alguém que não sabe mais como sentir
  • Uma defesa antiga, ainda operando mesmo sem necessidade
  • Uma escolha inconsciente por evitar o contato com a dor
  • Um sinal de maturidade emocional, quando a ferida virou cicatriz

Por isso, a ausência de emoção nunca deve ser julgada às pressas. Cada silêncio carrega uma história. E nem sempre o choro é prova de sensibilidade — assim como a calma não é prova de frieza.

 

E as máquinas nisso tudo?

Talvez as máquinas lembrem sem sentir porque são feitas assim. Mas nós, humanos, às vezes também somos assim — não por natureza, mas por necessidade.

A verdadeira pergunta talvez seja: o que em mim precisou parar de sentir para poder continuar existindo?

E mais ainda: será que posso voltar a sentir com segurança?


sexta-feira, 11 de julho de 2025

Dilemas Modernos

O impasse de estar vivo hoje

Vivemos tempos que nos oferecem mais possibilidades do que nunca — e, paradoxalmente, mais angústias. Os dilemas modernos não são apenas problemas a serem resolvidos, mas conflitos entre valores igualmente válidos que se chocam no dia a dia. É como escolher entre duas verdades, sabendo que qualquer escolha trará perda.

Um exemplo simples: vida profissional ou qualidade de vida? Queremos crescer, ser reconhecidos, conquistar uma estabilidade. Mas isso quase sempre exige horas a mais no trabalho, menos tempo com os filhos, menos horas de sono, menos vida. Trabalhar menos parece irresponsável. Trabalhar demais parece insano. E o dilema se mantém.

Ou ainda: liberdade de expressão ou respeito ao outro? As redes sociais viraram uma arena em que dizer o que se pensa é confundido com dizer o que se quer, de qualquer forma. Mas até onde vai a liberdade? E quando ela começa a ferir? Defender o direito de falar não significa esquecer a responsabilidade do que se diz. Um dilema que escapa das regras formais e entra no campo ético.

Há também o dilema entre conexão e solidão. Temos mil formas de nos comunicar, mas muitos não sabem mais ficar a sós. Estamos conectados o tempo todo, mas nos sentimos sozinhos. Queremos estar juntos, mas a presença física virou quase um luxo. É difícil dizer o que é melhor: estar com todos ao mesmo tempo ou estar plenamente com um só?

Outro dilema silencioso: autenticidade ou aceitação social? Ser quem se é pode significar ser deixado de lado, não se encaixar, ser estranho. Fingir, adaptar, performar — tudo isso traz recompensas sociais. Mas a que custo? A originalidade virou marketing, a vulnerabilidade, conteúdo. Há quem nunca saiba se está vivendo ou sendo visto vivendo.

O filósofo Zygmunt Bauman dizia que os dilemas modernos são líquidos: mudam de forma, escorrem por entre os dedos, não se fixam. Por isso, não são resolvidos, mas administrados. Cabe a cada um de nós descobrir quais perdas estamos dispostos a aceitar para sustentar o que consideramos importante.

Porque, no fundo, todo dilema é uma escolha que exige coragem. Coragem de viver com a dúvida, com o risco e com a consciência de que não há resposta perfeita — só caminhos possíveis.

E quando perguntam “tá tudo bem?” e a gente engole o mundo

Tem dias em que a pergunta “tá tudo bem?” soa quase como um deboche do universo. Porque não tá. Porque nada parece fazer sentido. Porque você acorda, respira fundo, vai, mas tudo pesa. E ainda assim, você responde: “tudo bem”.

Por educação, por cansaço, por não querer explicar. Ou porque a verdade, nua e crua, não cabe num bom dia apressado. Dizer “tá tudo bem” virou um código social: ninguém espera uma confissão. Mas, por dentro, há uma avalanche. Às vezes, a gente só quer que alguém segure o nosso olhar por um segundo a mais, pra perceber o que não foi dito.

É aí que, de forma estranha, Nietzsche começa a fazer sentido. Ele que parecia tão extremo, tão sombrio, tão desconfortável. Mas que escreveu: “aquele que tem um porquê para viver pode suportar quase qualquer como”. Em dias de silêncio interno, de sentido escorregando pelos dedos, a gente entende a importância de um “porquê”. E o que machuca é justamente a falta dele.

Responder com sinceridade é coragem. Mas também é risco. Porque nem todo mundo sabe escutar uma verdade crua no meio da rotina. Às vezes a gente tenta e recebe um “ih, fase ruim, né?”, como se fosse algo leve. A verdade, para ser dita, precisa encontrar quem esteja disposto a carregá-la com a gente, mesmo que por um momento.

Mas guardar tudo também cobra seu preço. Fica no corpo. Vira dor nas costas, falta de ar, insônia. A alma vai se entortando na tentativa de parecer reta.

Talvez o meio do caminho seja aprender a dizer: “não tá tudo bem, mas tô tentando”. É simples, honesto, e ainda assim respeita o próprio tempo de elaboração. Porque nem sempre temos as palavras certas, mas às vezes só precisamos da permissão para não estar bem.

E se Nietzsche faz sentido quando tudo parece sem sentido, é porque ele também passou por esses abismos. E de lá tirou uma coisa importante: o fundo do poço às vezes revela estrelas que a superfície esconde.

sábado, 5 de julho de 2025

Implicações Cruciais

O Abismo Que Sustenta: Um Ensaio Filosófico a Partir de Paul Tillich (1886 – 1965)

Sobre o filósofo: Paul Johannes Oskar Tillich foi um teólogo alemão-estadounidense e filósofo da religião. Seu trabalho abordou as implicações cruciais para o cristianismo levantadas pelos filósofos existencialistas do século XX e explorou a relação entre teologia e cultura. Wikipédia

 

No meio de uma crise, sentado na beira da cama, alguém pergunta a si mesmo: “E agora?” Não é uma oração formal. Não é filosofia. Mas é profundamente existencial. Tillich diria: aí começa a teologia — no grito silencioso de quem encara o vazio. Para ele, Deus não está no céu com uma barba longa, anotando nossos pecados. Está muito mais próximo, mais dentro, mais fundamental: é o fundamento do ser. Esta ideia não é simples e nem confortável, mas ela abre caminhos inesperados para se pensar não só a fé, como também a arte, a política, o medo e a própria coragem de viver.

I. A fé que resiste ao colapso

A proposta de Paul Tillich parece estranha à primeira vista: dizer que Deus não é um “ser”, mas o “ser mesmo” ou seu fundamento. Mas isso não é uma ginástica verbal. É uma resposta radical à experiência humana de ruína, de perda de sentido, de naufrágio. Para Tillich, quando tudo parece desmoronar, ainda assim algo nos sustenta: uma coragem misteriosa, silenciosa, que nos empurra para continuar sendo. Essa coragem não é um acessório emocional — ela é sagrada.

Diferente da fé como crença cega ou manual de respostas prontas, a fé para Tillich é o ato de afirmar-se diante do abismo. Isso muda tudo. Porque o abismo não desaparece. Ele fica lá, como o fundo escuro da consciência, como a finitude, como a morte. Mas algo em nós ousa dizer sim — e esse sim é a centelha do divino.

II. O divino como urgência vital

Se Deus é o fundamento do ser, então não está apenas no templo, na missa, no dogma. Está na dança de quem enfrenta a dor com beleza. Está na arte que ressignifica o sofrimento. Está na política que busca justiça, ainda que o mundo resista. E isso tem implicações cruciais: o teólogo vira intérprete do mundo, não guardião de verdades estanques.

Tillich propõe o que ele chama de “método da correlação”: ouvir o que o ser humano moderno está perguntando e buscar, nos símbolos religiosos, respostas possíveis. É uma via de mão dupla — onde a cultura alimenta a teologia e vice-versa. Isso faz da religião algo dinâmico, encarnado na vida, não um museu de crenças mortas.

III. Símbolos em chamas

Um dos maiores perigos da religião, para Tillich, é tomar seus símbolos como literais. Deus, inferno, céu, salvação — são imagens carregadas de sentido, mas não são mapas geográficos do além. Eles apontam para experiências profundas. Quando esquecemos isso, os símbolos viram ídolos — e a religião se fecha, torna-se violenta, condenatória, ideológica.

A implicação disso é delicada: é preciso reaprender a ler os símbolos como se lê um poema, um quadro ou um sonho. A fé, nesse sentido, se aproxima da arte: não diz o que é, mas o que pode ser sentido como verdadeiro. Assim, falar de Deus é sempre falar do indizível — e qualquer tentativa de possuí-lo é um equívoco perigoso.

IV. A coragem de ser (e de errar)

Tillich escreveu sobre a coragem de ser como a virtude central da existência humana. Essa coragem não é força de vontade pura, nem entusiasmo otimista. É resistência contra a tentação de ceder ao nada. É continuar mesmo quando não há garantias. E isso nos conecta a um sagrado que não se mede por milagres, mas por presença.

O mais inovador é que essa ideia da fé como coragem redefine o que é uma “vida espiritual”. Não se trata de cumprir mandamentos ou repetir fórmulas. Trata-se de sustentar o ser no meio da angústia. A espiritualidade, assim, não é uma fuga do mundo — é um mergulho profundo nele, sustentado por algo que não se vê, mas se sente na carne da existência.

V. Quando a vida desmonta: a fé na depressão

Imagine alguém que se levanta da cama com imenso esforço, sem saber por quê. A comida não tem gosto. O tempo parece pesado. Tudo o que antes dava sentido agora soa vazio. Não há energia para se revoltar — só o silêncio e o esvaziamento. Essa é a experiência da depressão profunda.

Tillich não vê isso como uma falha moral, mas como o encontro cru com o nada — o nada do sentido, o nada da vontade, o nada da esperança. É nesse ponto que sua teologia se torna medicina para a alma: a fé não exige que você esteja bem para existir. Ela começa exatamente aí, quando tudo parece ter desabado.

Ter fé, nesse caso, não é sorrir à toa ou afirmar que tudo vai dar certo. É simplesmente não se render totalmente. É, por vezes, apenas respirar e suportar o dia. Esse gesto mínimo — levantar-se para tomar água, escutar alguém, assistir a um filme — pode ser uma forma de fé silenciosa.

A fé, diz Tillich, é a coragem de aceitar ser aceito, mesmo quando nos sentimos absolutamente indignos de aceitação. Isso tem um valor terapêutico profundo, que a psicologia moderna, em diálogo com a teologia, começa a reconhecer.

VI. Arte como revelação: o símbolo na tela

Num museu ou galeria, uma pintura nos prende. Não porque retrata algo bonito, mas porque nos faz sentir algo que ainda não sabíamos nomear. Ali, sem palavras, algo é revelado. Tillich chamaria isso de uma experiência simbólica da profundidade.

A arte, nesse sentido, cumpre função religiosa — não porque fala de Deus diretamente, mas porque acessa aquilo que é “de máxima importância” na alma humana. Um quadro de Rothko, uma escultura de Giacometti, uma peça de teatro de Beckett: não oferecem consolo, mas revelam o trágico com beleza. E essa beleza nos transforma.

Tillich via na arte uma forma de teologia implícita. Artistas são, muitas vezes, profetas involuntários: revelam as fissuras da existência, dão forma à angústia, mas também anunciam o que ainda não se vê. A religião, nesse diálogo, aprende a olhar o mundo com mais escuta, menos imposição.

VII. Política: resistir ao nada coletivo

Agora imagine um jovem ativista em uma cidade onde a desigualdade parece eterna. Ele organiza reuniões, discute com vereadores, defende causas que quase ninguém escuta. Muitas vezes, sente que está perdendo tempo. Mas continua. Por quê?

Essa perseverança não é apenas política. É existencial. Tillich diria que há aí um movimento de fé — não no sentido religioso tradicional, mas na coragem de afirmar o ser mesmo quando a cultura caminha para o colapso.

O “nada” contra o qual se resiste não é só individual. É social: opressão, desumanização, apatia generalizada. A fé, nesse caso, se expressa em gestos políticos. E a política ganha, assim, uma dimensão espiritual: lutar por dignidade humana é, em última instância, lutar pela presença do ser sobre o nada.

Tillich, que viveu sob o nazismo e teve de fugir da Alemanha, sabia bem do que falava. Sua teologia nasceu do confronto direto com o autoritarismo. Por isso, suas ideias continuam relevantes: elas lembram que fé e liberdade estão mais próximas do que parecem.

O invisível que sustenta o visível

Ao ampliar a proposta de Tillich para a vida cotidiana, vemos que a teologia deixa de ser um discurso abstrato e passa a ser um modo de olhar — um modo de perceber o que sustenta mesmo quando tudo ameaça ruir.

Na depressão, ela é o fio que não se rompe.

Na arte, é o símbolo que nos revela a profundidade.

Na política, é o gesto que recusa o desespero coletivo.

Fé, aqui, é sinônimo de resistência sensível. Não é certeza, nem conforto — é o abraço entre o frágil e o eterno. Tillich nos convida a trocar a busca por respostas absolutas por uma presença atenta diante do mistério do ser. E isso, nos dias de hoje, talvez seja o mais revolucionário que alguém pode propor.

Talvez o maior legado de Tillich esteja em sua capacidade de devolver à fé seu sentido mais radical: não o de um sistema, mas o de um mergulho. Em vez de dogmas rígidos, Tillich oferece uma sensibilidade filosófica para o mistério. Em vez de respostas prontas, ele oferece perguntas que nos acompanham até o fim.

E aqui está a virada: o abismo não precisa ser temido se reconhecemos que há, nele, um chão invisível que nos sustenta. Deus, então, não é o que nos livra do sofrimento — é o que nos acompanha nele. E a fé não é certeza, mas fidelidade ao chamado mais profundo do ser: continuar sendo, apesar de tudo.


sexta-feira, 27 de junho de 2025

Nó e o Fio

Numa manhã gelada deste inverno sorvia um mate, acredite, sol no rosto, vento gelado e fraco, frente ao mar em Garopaba, entre um mate e outro minha imaginação como sempre tamborilava na mente, foi quando senti a presença de mais alguém sentado ao meu lado, era a figura do velho Wittgenstein, enquanto enchia a cuia com agua quente, pensei: por que não bater um papo com ele? em português, é claro, então resolvi fazer, talvez a única pergunta que lhe faria algum sentido:

— Herr Wittgenstein, posso lhe fazer uma pergunta?

— Pode tentar. Mas lembre-se: muitas vezes, o que parece uma pergunta é apenas um nó na linguagem.

— É sobre isso, justamente. Há um problema que me inquieta há anos: qual é o sentido da vida?

(Wittgenstein fica em silêncio por um momento, observando o vapor que saia de dentro da cuia, como se a resposta estivesse ali.)

— Você quer uma resposta… ou quer que o problema desapareça?

— Bem, acho que quero entendê-lo.

— Entendê-lo é deixar de vê-lo como problema. Veja: você procura um sentido, como quem procura um objeto perdido. Mas talvez seja como tentar encontrar a moldura enquanto olha de dentro do quadro.

— Quer dizer que o problema está mal colocado?

— Ele está mal vivido. O problema não está no mundo. O mundo é o que é. O problema é o modo como você olha para ele esperando que ele fale algo que ele não sabe dizer.

— Então o sentido da vida não está no mundo?

— Exato. O sentido, se existe, está fora do mundo. Ou melhor: está no modo como você habita o mundo. É como a fé. Não é algo que se prova, mas que se vive.

— Isso é bonito, mas também meio frustrante. Eu queria uma resposta.

(Wittgenstein sorri com um certo cansaço austríaco.)

— Você quer uma resposta como quem quer uma chave para abrir a porta. Mas talvez a porta nunca tenha estado trancada.

— E o que faço, então?

— Olhe em volta. Veja como as palavras agem. Veja como as perguntas nascem. Veja como vive quem não se pergunta isso. A filosofia, meu caro, não resolve enigmas — ela mostra que o enigma era uma ilusão feita com palavras.

(Pausa. Ele toma um gole do mate que ofereci a ele.)

— Sabe, às vezes penso que filosofar é como desfazer um nó — mas o nó é feito com o próprio fio da nossa linguagem.

— E o que sobra depois que o nó é desfeito?

— O fio. Simples, contínuo, silencioso.

(E nos calamos. Pela primeira vez, parecia que estávamos dizendo alguma coisa.)


segunda-feira, 23 de junho de 2025

Significado no Repetitivo

Então chegou à segunda-feira. Tem dia que parece filme repetido: você senta no mesmo lugar, liga o mesmo computador, faz a mesma tarefa de ontem — e de anteontem — e de anteontem do anteontem. Dá aquela sensação de que a vida virou um looping sem fim, um "Déjà vu" corporativo. E aí bate a pergunta: tem como encontrar algum sentido nisso tudo? Já sentiu viver à moda Sísifo? Será que dá pra tirar algo de bom desse trabalho que parece sempre igual? Talvez sim. Talvez o segredo não esteja no que a gente faz, mas como a gente enxerga o que faz.

Muita gente se vê presa nisso: tarefas repetitivas, dias parecidos, sensação de que nada muda — e aí vem a dúvida: como encontrar significado nisso?

Primeiro, é bom lembrar que o trabalho repetitivo não é algo novo. Monges medievais copiavam manuscritos linha por linha. Trabalhadores em fábricas apertam o mesmo parafuso o dia inteiro. Donas de casa lavam a mesma louça todo santo dia. E mesmo assim, alguns encontraram sentido nisso.

Talvez o primeiro passo seja mudar a lente com que se olha. A repetição permite aperfeiçoamento. Quem faz a mesma coisa cem vezes ganha um domínio que ninguém mais tem. É o que o filósofo japonês Kitarō Nishida chamaria de "ação intuitiva" — quando a prática repetida permite ao corpo e à mente se fundirem com o ato. O trabalho vira uma espécie de meditação em movimento.

Outro ponto: o efeito que esse trabalho tem nos outros. Uma atendente que repete "bom dia" para cem pessoas talvez ache tudo automático — mas para o cliente, pode ser o único sorriso do dia. Um balconista que empacota produtos numa prateleira acha que empilha latas — mas alguém mais tarde vai comer aquele alimento porque ele estava lá. Mesmo o menor dos gestos serve a algo maior.

Também há quem transforme o próprio trabalho em jogo: cronometrar quanto tempo leva, bater o próprio recorde, inventar uma micro-arte no modo de organizar papéis, dobrar roupas ou resolver planilhas. Essa brincadeira secreta quebra a rigidez do repetitivo.

Há quem encontre sentido fora do trabalho, mas leve o fruto dele para o trabalho: quem escreve um romance à noite e usa o emprego repetitivo como sustento; quem sonha com um projeto e vê no trabalho atual uma ponte para lá; quem guarda energia mental enquanto repete tarefas para sonhar acordado.

O filósofo Viktor Frankl dizia que sentido não se acha, se dá. O próprio trabalhador injeta sentido no ato — ao vê-lo como arte, serviço, treino de alma, trampolim ou disciplina espiritual.

Mesmo o trabalho mais repetitivo pode ser um terreno secreto de cultivo interior.

Penso que antes de procurar sentido no trabalho, na rotina, no chefe, no salário... talvez a pergunta mais honesta seja: eu tenho dentro de mim um motivo para viver?

Porque quem carrega uma motivação interior — um desejo, uma paixão, uma esperança, um propósito pessoal — dá sentido até ao gesto mais pequeno. Mesmo um trabalho repetitivo vira parte de uma caminhada maior.

Nietzsche dizia: “Quem tem um porquê suporta quase qualquer como.” Ou seja, se o motivo está claro por dentro, o resto — o cansaço, a monotonia, o tédio — vira detalhe do cenário.

O risco é inverter a ordem: querer que o trabalho ou o mundo preencham um vazio que é só nosso resolver. Buscar sentido lá fora quando o que falta é fogo aqui dentro.

Talvez o primeiro movimento, antes de achar graça no trabalho repetitivo, seja esse: descobrir o que faz a própria alma acordar de manhã. O que nos move de verdade — mesmo em silêncio, mesmo em segredo.


quinta-feira, 19 de junho de 2025

Tempo de Despertar

O Despertar que Desnuda o Tempo: Ensaio Filosófico sobre Tempo de Despertar, de Oliver Sacks

Resumo introdutório:

Em Tempo de Despertar (1973), o neurologista britânico Oliver Sacks narra a extraordinária experiência clínica com pacientes vítimas da encefalite letárgica, uma misteriosa epidemia que os mergulhou, durante décadas, num estado catatônico sem saída. O advento do medicamento L-DOPA, no fim dos anos 1960, trouxe um aparente milagre: o retorno súbito desses indivíduos à consciência, à linguagem, ao movimento. Mas o que prometia ser redenção revelou-se, muitas vezes, tragédia: o despertar foi também um encontro cruel com o tempo perdido, com um mundo irreconhecível e com a fragilidade do próprio "eu".

O livro é mais que um relato médico: é uma meditação viva sobre o enigma da existência, do tempo, da identidade — uma obra que ultrapassa a neurologia e toca a metafísica.

Ensaio filosófico:

I. Despertar não é acordar: é nascer de novo num mundo estranho.

Sacks nos convida a uma ideia incômoda: o despertar radical não é retorno, é estranhamento. Quem desperta após quarenta anos de ausência não reencontra seu mundo: encontra outro mundo — outro corpo, outro tempo, outra história. O "milagre" é, em parte, uma violência.

Aqui, o despertar se aproxima do conceito de unheimlich (estranho-familiar) de Freud: algo que deveria ser íntimo — meu corpo, meu tempo — torna-se irreconhecível. Os pacientes de Sacks não voltam à vida que conheciam; despertam num mundo que os traiu com o envelhecimento, com a morte dos entes queridos, com o progresso tecnológico que os excluiu. A continuidade do eu foi quebrada. Quem são eles agora?

II. O tempo não passa — ele devora.

O livro desmascara um dos grandes consensos do senso comum: o de que o tempo "passa" suavemente, de forma linear. Não: o tempo rói, consome, altera os contornos do real e do imaginário. Quando os pacientes voltam à consciência, não o fazem no tempo em que adormeceram: o relógio do mundo não esperou.

Henri Bergson já advertia: o tempo vivido (durée) não se mede em números, mas em fluxo de consciência. Os pacientes de Sacks perderam sua durée pessoal; suas consciências congelaram enquanto o mundo externo seguiu outro ritmo. O abismo entre esses dois tempos produziu monstros existenciais: corpos envelhecidos com almas jovens, espíritos perdidos num presente que não reconhecem.

III. A identidade não é um dado — é uma narrativa que o tempo costura.

O maior escândalo filosófico de Tempo de Despertar é este: não existe "eu" fora da história que tece um sentido para o tempo vivido. Os pacientes acordaram sem narrativa — suas biografias tinham um buraco negro de décadas. Como se reconstruir sem lembrança, sem continuidade? A ruptura é tamanha que a própria noção de "pessoa" se desfaz.

Paul Ricoeur escreveu que "somos o tempo contado, narrado". O sujeito que desperta sem história é um estranho para si mesmo — é um corpo presente sem enredo passado. A L-DOPA reanimou músculos e sinapses, mas não devolveu a ponte do sentido. Por isso muitos adoeceram de angústia e desespero: não sabiam mais quem eram.

IV. O milagre moderno é o fracasso metafísico.

A medicina realizou o milagre técnico: devolveu o movimento e a fala. Mas a metafísica do sentido — esse campo onde a alma encontra seu lugar no tempo e no mundo — falhou. O preço do despertar foi o colapso do sentido.

Este paradoxo é um alerta para toda utopia tecnológica: não basta restaurar a função biológica; é preciso restaurar o enraizamento no mundo, o pertencimento simbólico. Sacks, sábio humanista, percebeu isso: seu livro não celebra uma vitória da ciência — lamenta uma derrota da alma.

V. O verdadeiro despertar é filosófico, não neurológico.

A lição secreta de Tempo de Despertar é que todos nós corremos o risco de viver letargicamente — mesmo saudáveis. Quem segue hábitos mecânicos, quem repete papéis vazios, quem não interroga seu lugar no tempo... está adormecido no existir.

O despertar real, diz Sacks sem dizê-lo, é o despertar filosófico: o instante em que o sujeito vê a estranheza da própria vida, percebe o enigma do tempo e ousa perguntar: "Quem sou eu agora? Para onde fui nos anos que passaram?". Esse despertar pode ser doloroso — mas é o começo de uma vida consciente.

Aí vai uma sugestão de leitura complementar: Um Antropólogo em Marte

Para aprofundar essa jornada entre neurologia e existência, vale a leitura do também brilhante Um Antropólogo em Marte (1995), onde Sacks retrata sete histórias clínicas que desafiam a ideia de normalidade.

Em vez de tragédias, muitos dos relatos de Um Antropólogo em Marte são adaptações criativas à diferença: um pintor que perde a capacidade de ver cores e reinventa seu mundo em tons de cinza; um cirurgião com síndrome de Tourette que encontra na medicina uma forma de domar seus impulsos; um autista que interpreta a vida como se fosse, de fato, um observador de outro planeta.

Se Tempo de Despertar mostra o drama do retorno à vida sem enredo, Um Antropólogo em Marte apresenta a beleza de construir novas narrativas a partir da diferença. Ambos os livros são espelhos distorcidos da condição humana — e, juntos, nos fazem perguntar não "o que é normal?", mas "o que é ser humano diante da falha, da adaptação e da consciência?"

Concluindo: O drama de ser tempo

Tempo de Despertar revela uma verdade incômoda: não somos senhores do tempo — somos feitos de tempo. Ele nos atravessa, nos molda, nos perde e nos reencontra. Não há cura médica para isso. Mas há uma vigilância filosófica possível: aquela que aceita o tempo como abismo e ainda assim inventa sentido.

Como disse o pensador brasileiro Vilém Flusser:

"Viver é buscar sentido no sem-sentido do tempo."

Os pacientes de Sacks pagaram o preço extremo dessa busca. E nós, que lemos sua história, somos também convidados a acordar.


quarta-feira, 18 de junho de 2025

Hipérbato

 

Vamos falar de quando a língua pensa diferente de nós!

Sabe aquele momento em que a gente atropela a fala? Quando a frase sai torta, fora de ordem, e depois já era — porque palavra dita é como pedra atirada: impossível voltar atrás. O que sobra é o ouvinte tentando entender aquele som estranho, como quem monta um quebra-cabeça no ar. Isso acontece porque a língua, de vez em quando, resolve andar de lado, fazer um caminho esquisito — e nasce o tal do hipérbato: essa mania velha da linguagem de embaralhar a ordem das palavras. "De saudade morreu o velho marinheiro" — e não "O velho marinheiro morreu de saudade". Por que falar assim?

Não é só truque de poeta, nem preciosismo de livro antigo. O hipérbato revela algo do nosso próprio pensamento: esse jeito meio embolado, meio torto, de sentir antes de organizar, de querer dizer muita coisa ao mesmo tempo — como quem tropeça nas próprias ideias. Linguistas, psicólogos e até filósofos deram atenção a esse fenômeno. Talvez porque nele mora um segredo bonito: o de que nem sempre pensamos em linha reta.

Vamos tentar entender por que, às vezes, a fala pula etapas — e o que isso diz da nossa mente.

Hipérbato: quando a língua pensa diferente de nós

Às vezes alguém fala de um jeito estranho — e o ouvinte estranha também: "Por que ele fala assim?". É o efeito do hipérbato, essa figura de linguagem que desloca a ordem natural das palavras e, de algum modo misterioso, nos prende a atenção. "Grande é o mistério da vida" — e não "O mistério da vida é grande". Por quê? Porque quem fala assim quer que o “grande” venha primeiro no pensamento, mesmo que venha depois no dicionário.

O nome vem do grego: hyperbaton, que quer dizer "transposição". Desde a Antiguidade já se percebia esse prazer de mexer na ordem das coisas para que o pensamento ganhasse ritmo, surpresa ou impacto. Camões fazia isso. Machado de Assis fazia isso. E, sem perceber, o garçom que diz "A mesa três já pagou, ela" também faz — porque algo no cérebro pede esse "desarranjo" para tornar a fala mais expressiva.

Mas há mais aqui do que estilo. Há um funcionamento mental sendo revelado. Como explica Roman Jakobson, linguista russo que aproximou poesia e linguagem cotidiana, toda fala humana oscila entre duas forças: a da seleção (escolher palavras) e a da combinação (colocar palavras em ordem). O hipérbato brinca com essa segunda força — ele mistura o eixo do tempo e o eixo do espaço na frase. O que devia vir depois vem antes, e vice-versa. É uma microdesordem que gera significado novo.

Do lado da psicologia, isso também se explica. O cérebro adora padrões previsíveis — sujeito, verbo, objeto — porque gastam menos energia. Quando o padrão é quebrado, há uma microtensão cognitiva: o ouvinte "acorda", precisa reorganizar o sentido da frase. É como se o hipérbato dissesse: "Ei, preste atenção. Não é uma frase qualquer". William James, o grande psicólogo da atenção, já dizia: só percebemos o que varia; o resto escapa à consciência.

Lacan daria um sorriso: para ele, o inconsciente é estruturado como uma linguagem, mas não qualquer linguagem — uma linguagem de deslocamentos, condensações, rupturas de ordem. O hipérbato, nesse sentido, é uma brecha onde o inconsciente vaza na fala cotidiana. Quando alguém diz "Feliz, ele não era" está dizendo mais do que a gramática permite — está dizendo também o modo torto e pulsante como o desejo se organiza.

Maurice Merleau-Ponty, filósofo da percepção, talvez acrescentasse: essa inversão é também corporal. O hipérbato desloca o corpo da frase, quebra sua linearidade, como um movimento inesperado no espaço. Por isso o leitor ou o ouvinte sente fisicamente a diferença — uma torção da língua que ecoa no corpo que escuta.

E tem ainda o lado da memória. Os poetas antigos sabiam: o que quebra a ordem fica mais fácil de lembrar. “Inocente é quem não tem culpa”, dizia a poesia latina — e o jogo da inversão fixava a ideia na mente. Publicitários fazem o mesmo hoje: "Porque você merece" soa mais impactante do que "Porque merece você". A inversão gruda no ouvido.

Talvez por isso o hipérbato nunca desapareça, mesmo nas falas banais: ele é um modo de marcar a palavra com intenção, emoção, singularidade. Quem fala assim não só informa — sugere, insinua, provoca.

No fim das contas, é como se a própria língua quisesse pensar diferente de nós. Ou melhor: como se nossa alma, ao falar, não suportasse ser tão direta quanto a lógica exige. Ela se curva, gira, troca de lugar — porque as ideias também chegam tortas, desencontradas, vivas.

Como dizia o velho Fernando Pessoa:

"Tudo é disperso, tudo é variação..."

Até a ordem das palavras. E talvez seja justamente nisso que mora o sentido mais verdadeiro da fala humana: no inesperado lugar onde a linguagem e o pensamento se cruzam — e tropeçam — um no outro.

quinta-feira, 12 de junho de 2025

Sinônimos de Amor

Por que não um ensaio Filosófico-Poético sobre um Verbo Irremediável: “Amor é Amar”

Para ler ouvindo a música Sinônimos de Zé Ramalho:

https://www.youtube.com/watch?v=FUz0a2cl_RM

Dizem que amar é verbo nobre, mas nunca disseram que é um verbo sem defesa. Amar é, no fundo, consentir com o próprio desamparo. É sofrer de forma escolhida — e eis a novidade: um sofrimento querido, quase desejado, aceito como quem aceita uma ferida que não quer ver curada. Não há amor sem alguma fissura, como não há casa antiga sem rachadura nas paredes. O amor, como as velhas moradias, guarda o cheiro de seus próprios desabamentos.

Amar não é paz. É um incêndio discreto que arde sem consumir — uma febre sem remédio, uma fome que não passa porque o alimento é o próprio desejo. O amante sofre porque quer — sofre porque ama; e não há jeito de separar um do outro sem que ambos morram. O amor sem sofrimento é jardim de plástico: bonito de longe, mas sem vida, sem cheiro, sem risco.

Quem ama teme. Teme perder, teme não ser amado, teme ser demais, teme ser de menos. Teme que o outro mude, que o tempo mude, que a própria alma mude. O amor é um campo minado de suposições, esperanças, incertezas. Nenhum amor verdadeiro anda de mãos dadas com a segurança — quem se sente seguro demais no amor já não ama, apenas administra um contrato civil de convivência.

Amar é sofrer porque o outro escapa. O outro nunca cabe inteiro no nosso abraço, nunca é exatamente o que imaginamos. O amor real é sempre um pouco menor (ou maior) que o amor sonhado. E é nessa fresta que mora o sofrimento: o amor é o que falta, mesmo quando está presente. Como dizia Fernando Pessoa:

"Tudo quanto o amor me dá

É o que me faz falta nele..."

Sim, o amor é falta. O outro é sempre inacessível em alguma parte — e é isso que nos mantém vivos, desejantes, queimando de curiosidade pela alma alheia.

Mas — e eis o que a filosofia nos sussurra — o sofrimento do amor não é fracasso, é potência. Porque só quem ama de verdade se permite não controlar. Só quem ama aceita a aventura de ser ferido e mesmo assim permanece. Amar é dizer ao mundo: "estou disposto a perder". E nisso reside uma força mais rara que a razão: a força de quem suporta o incerto.

Schopenhauer via nisso uma armadilha da vida: amar seria cair no truque da natureza, que nos obriga a sofrer para perpetuar a espécie. Um ciclo de desejo e dor do qual não podemos escapar, meros joguetes da Vontade cega da vida. Mas talvez ele estivesse cego para o outro lado do espelho: que sofrer por amor é a única dor que nos torna mais vivos, não menos.

Nietzsche, ao contrário, via no amor (especialmente no amor que sofre) uma promessa de superação. Não um castigo, mas uma prova: quem ama intensamente é empurrado para fora de si mesmo, para o perigo, para a vertigem — e só quem suporta isso pode tornar-se criador de si. Para ele, o amor que dói é o mesmo que fortalece; é um campo de batalha onde morre o velho eu e nasce o novo. Ele escreveu:

"Há sempre um pouco de loucura no amor. Mas também há sempre um pouco de razão na loucura."

Amar, para Nietzsche, é desordem criativa — não morte, mas transformação.

No fim, amar é sofrer, sim — mas é um sofrer que acorda, não que adormece. Um sofrer que afia a alma, como quem passa a faca na pedra até que brilhe. Sofrer de amor é a única dor que vale o preço, porque ao final dela descobrimos o mais estranho dos milagres: que doendo, crescemos.

Fernando Pessoa, com sua lucidez trágica, sabia disso. Em seus versos dispersos, confessou:

"Amo tudo o que foi,

Tudo o que já não é,

A dor que já me não dói,

A antiga e errônea fé..."

Até mesmo o amor sofrido vira saudade bela. Até a dor se recicla em ouro da memória.

Por isso, quem ama sofre. E quem foge do amor, sofre também — mas de um sofrimento mais frio, mais inútil, mais seco. O sofrimento de quem não ousou. O sofrimento de quem escolheu a paz dos que não viveram.

Talvez o amor seja, afinal, a arte de escolher o sofrimento certo.

A dor certa.

A ferida nobre.

A falta que nos salva.


sábado, 7 de junho de 2025

Corrompido de Sentido

Agora vamos fazer uma jornada de reflexão, vamos falar o sobre o esvaziamento do comportamento humano...

Há dias em que as coisas não parecem erradas, mas… tortas. Não é um crime, mas algo parece fora do eixo. Um bom dia que soa automático, um abraço dado sem corpo, uma indignação que parece moda e não sentimento. A gente sente que algo mudou. E mudou mesmo. Não só os hábitos, mas o modo como sentimos e interpretamos esses hábitos. Como se os gestos humanos tivessem sido corrompidos não por maldade, mas por um certo esvaziamento interior. Estamos, aos poucos, sendo corrompidos de sentido.

A corrupção de sentido é mais sutil que a mentira. Ela não grita, não se impõe. Ela vai acontecendo pelas bordas, no excesso de repetição, na transformação do necessário em performance. O comportamento humano, nesse cenário, passa a simular o que antes nascia do íntimo: empatia, cuidado, respeito, verdade.

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han observa, em obras como A sociedade do cansaço e A expulsão do outro, que vivemos numa era em que o excesso de positividade e a busca constante por desempenho destroem os vínculos mais humanos. Não há mais espaço para o outro real, com sua lentidão, suas contradições. No lugar disso, surgem comportamentos estéticos, calculados, que imitam a empatia sem senti-la. Sorrir virou protocolo. Escutar virou tempo perdido. Cuidar do outro virou conteúdo para postagem.

A tecnologia, por sua vez, surgiu como extensão da inteligência e da criatividade humana — um instrumento para aliviar tarefas, expandir possibilidades e conectar pessoas. No entanto, quando utilizada sem sabedoria, ela deixa de ser ferramenta e passa a ser modelo. Em vez de servir ao humano, o humano começa a imitá-la. Tornamo-nos eficientes como algoritmos, previsíveis como linhas de código, otimizados como máquinas — e, nesse processo, nossos comportamentos também se automatizam. O gesto perde intenção, o olhar perde pausa, a fala perde silêncio. Como alertou o filósofo Günther Anders, ao refletir sobre a obsolescência do homem, há um risco real de sermos substituídos não pelas máquinas em si, mas pela forma como passamos a viver como elas. A tecnologia não corrompe por si só — mas, quando usada como substituto da relação, da reflexão e da presença, ela acelera a corrosão do sentido humano.

Nietzsche, já no século XIX, alertava sobre o perigo de viver entre máscaras. No Crepúsculo dos Ídolos, ele dizia que "todo hábito torna a mão mais espirituosa, e o espírito mais preguiçoso". Aplicando isso ao comportamento, podemos dizer que repetir gestos sem consciência nos afasta do sentido real das coisas. Tornamo-nos habilidosos em parecer humanos, sem saber mais o que isso significa.

Mas não é só crítica. Também é diagnóstico. Estamos, talvez, num momento de reinvenção do comportamento. Um cansaço profundo das simulações parece se anunciar em vozes novas. A filósofa brasileira Viviane Mosé aponta para a urgência de uma ética sensível, em que o corpo, o afeto e a escuta sejam reconectados à linguagem. Para ela, a palavra só tem força quando está ligada à experiência real. Senão, é ruído.

O desafio, então, não é só individual, mas coletivo. Não basta buscarmos o "ser verdadeiro" como um ideal pessoal — é preciso cultivar espaços onde a verdade possa sobreviver. Onde o abraço não precise ser filmado, onde o silêncio não seja constrangimento, onde o cuidado não precise de like. Onde o comportamento humano recupere, devagar, o seu conteúdo.

Ser corrompido de sentido não é um destino. É uma condição. E condições podem ser enfrentadas.

Talvez o caminho seja pequeno: reaprender o gesto. Reencantar a palavra. Refazer o contato. Não com pressa, mas com presença.

Porque o que está corrompido ainda pode ser restaurado — não com verniz, mas com alma.


sexta-feira, 6 de junho de 2025

Pecado Original

O que fizemos de errado antes mesmo de nascer?

Parece injusto carregar uma culpa que não foi escolhida. Como se nascêssemos devendo algo. Como se a vida, em seu primeiro fôlego, já nos colocasse sob suspeita. Estamos falando do chamado pecado original — esse conceito antigo, estranho, e ainda hoje ressoante, que diz que herdamos de Adão e Eva, lá no Éden, uma falha moral de fábrica. Mas e se olhássemos para isso de outro jeito? E se essa culpa não fosse um castigo, mas um modo simbólico de nos contar algo profundo sobre a condição humana?

Herança sem testamento

Na tradição cristã, o pecado original nasce com a desobediência: comer o fruto proibido, desafiar a ordem divina. Mas o problema não é só o ato, é o que ele revela: o desejo de conhecer, escolher, experimentar. Não é estranho que o primeiro erro tenha sido querer saber mais? O pecado, então, não seria um acidente, mas uma revelação: o humano é, por natureza, um ser inquieto. E talvez o pecado original seja isso — não um erro cometido, mas uma vocação inevitável para o excesso, o risco, o desvio.

Não escolhemos ser assim, apenas somos. Como dizia Agostinho, “em Adão todos pecaram” — o que soa como uma condenação universal, mas também como um retrato da fragilidade que nos une. Não é apenas um castigo: é a lembrança de que somos falhos, e talvez por isso tão humanos.

Um mito sobre a liberdade

Se tirarmos a linguagem religiosa e ficarmos com a estrutura simbólica, o pecado original pode ser lido como o nascimento da liberdade. Adão e Eva não erram porque são maus, mas porque são livres. A serpente, o fruto, o ato de comer — tudo isso compõe uma cena inaugural de escolha. Um universo sem pecado original seria um mundo de bonecos obedientes, de seres sem conflito. Seria, talvez, um jardim sem humanidade.

A expulsão do paraíso é, então, a entrada na realidade. O Éden é infância, segurança, ilusão de harmonia. Fora dele, encontramos a vida: o trabalho, o sofrimento, o tempo, a morte — e também o amor, a ética, a construção de sentido. Ser lançado no mundo, como diria Heidegger, é existir em angústia, mas também em possibilidade.

A culpa como condição

O psicanalista Jacques Lacan observava que a culpa não nasce apenas do que fazemos, mas do próprio fato de desejar. Desejar é se comprometer com a falta, com aquilo que não temos e que nos move. Nesse sentido, o pecado original seria o símbolo do desejo que funda o sujeito. Não desejamos por sermos culpados. Somos culpados porque desejamos. A culpa original é a sombra da liberdade: aparece assim que escolhemos ser alguém.

E se não for culpa, mas ponto de partida?

Talvez devêssemos deixar de ver o pecado original como uma dívida e passar a vê-lo como um reconhecimento: de que ninguém começa do zero, de que a existência já vem atravessada por histórias que não escolhemos, de que o mundo nos molda antes mesmo de sabermos quem somos. É injusto? Sim. Mas é também uma chance de compreender que crescer é lidar com o que herdamos — não apenas genes, mas dores, pesos, narrativas.

O filósofo brasileiro Rubem Alves dizia que “o paraíso não é lugar onde não há dor, mas onde a dor faz sentido”. Talvez o pecado original, longe de ser um erro isolado no passado, seja uma metáfora para nossa condição atual: a de quem vive entre a queda e o salto, entre o erro e a reconstrução.

O pecado original pode não ser literal. Mas é real no sentido em que todos nós, de algum modo, nascemos num mundo que já nos antecede, com suas regras, seus limites, suas faltas. A questão nunca foi evitar o pecado, mas descobrir o que fazemos com ele. Afinal, se não podemos apagar a mancha, talvez possamos transformá-la em arte.


sábado, 12 de abril de 2025

Lembrança Incerta

Estava pensando, falando cá com meus botões, e se a nossa memória não fosse confiável? Seria o caso das falhas da lembrança e a construção da realidade?

Outro dia, meu filho contou uma história da infância com riqueza de detalhes: nós dois brincando na sala de casa, uma bronca que levamos por termos derrubado café sobre o tapete. Eu, sinceramente, não lembrava de nada disso. E mais: achava que eu nem estava presente naquela ocasião. Ficamos os dois convencidos de que nossa versão era a correta — e, ironicamente, ambos estávamos certos... e errados.

A questão é que a memória não é um espelho do passado, e sim uma reconstrução narrativa, como já sugeria o filósofo francês Henri Bergson. Em sua obra Matéria e Memória (1896), ele argumenta que lembrar não é simplesmente armazenar e recuperar dados, mas sim reinterpretar o passado à luz do presente. Cada lembrança, portanto, não é uma cópia, mas uma reinvenção.

Essa ideia foi posteriormente reforçada pelas ciências cognitivas. Elizabeth Loftus, psicóloga cognitiva e pesquisadora da Universidade da Califórnia, demonstrou com inúmeros experimentos que memórias falsas podem ser implantadas com facilidade. Em um de seus estudos clássicos, participantes foram convencidos de que haviam se perdido em um shopping quando crianças — e muitos não apenas acreditaram, como acrescentaram detalhes fictícios à lembrança. Isso colocou em xeque a validade dos testemunhos oculares e mostrou como somos mais vulneráveis à manipulação do que gostaríamos de admitir.

E não é só sobre manipulação externa. O próprio cérebro preenche lacunas quando precisa. Como observou Oliver Sacks, neurologista e escritor, em O Homem que Confundiu Sua Mulher com um Chapéu, pessoas com lesões neurológicas criam versões alternativas da realidade com base em memórias fragmentadas. Essas versões são, para elas, tão reais quanto qualquer outra.

Nosso cotidiano está repleto de exemplos mais sutis. Um casal que discorda sobre o tom de uma conversa; irmãos que lembram diferentes versões da mesma viagem; o funcionário que acha ter sido injustiçado por um chefe que sequer se recorda do episódio. A memória, muitas vezes, não guarda fatos — ela guarda emoções associadas a fatos. E isso muda tudo.

O filósofo britânico Bertrand Russell advertia que “a lembrança é sempre, em certa medida, um ato de criação.” Já Friedrich Nietzsche foi além: em A Genealogia da Moral, ele sugere que a memória é moldada pela necessidade social — aprendemos a lembrar da dor para obedecer, lembrar da culpa para sermos domesticados. Ou seja, nem sempre lembramos por vontade própria: muitas vezes lembramos porque fomos ensinados a lembrar de certos eventos e não de outros.

Do ponto de vista neurocientífico, sabe-se hoje que cada vez que acessamos uma lembrança, ela é regravada no cérebro — um processo chamado reconsolidação. Isso significa que lembrar é também alterar. Como uma foto que vai perdendo qualidade a cada cópia, a memória se degrada e se adapta. Nossos neurônios, longe de serem arquivos estáticos, são mais como um sistema de edição contínua.

Isso nos leva a um dilema curioso: se a nossa memória é fluida, o que isso diz sobre a nossa identidade? Somos, em parte, o que lembramos — nossas escolhas, arrependimentos, alegrias e medos. Mas se nossas lembranças mudam, quem somos nós realmente?

Talvez a resposta esteja na aceitação da memória como narrativa. Como uma história contada por alguém que se reconstrói com o tempo. E isso não precisa ser visto como um problema. A memória criativa é também uma memória que cura, que reinterpreta o sofrimento, que permite recontar a própria vida com um novo significado.

No fundo, a memória não busca a verdade literal — ela busca sentido. E, como escreveu Clarice Lispector: “o que me salva é o saber que, mesmo quando erro, estou tentando acertar o caminho do que me importa”. Lembrar é, muitas vezes, isso: tentar acertar o caminho do que importa.