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quarta-feira, 7 de maio de 2025

Aperto no Peito

 

A angústia e o desespero em Kierkegaard

Tem dias em que a gente acorda como se tivesse esquecido quem é. Não é cansaço, não é tristeza, não é tédio. É outra coisa. Um incômodo surdo, um nó na garganta que não se desata, uma vontade de sair correndo sem saber pra onde. Nessas horas, não é raro procurar distração: abrir o celular, comer alguma coisa, ligar a TV. Mas esse bicho estranho que aparece dentro da gente não se distrai fácil. Ele exige escuta, porque tem algo a dizer. É aí que Søren Kierkegaard entra como um velho amigo que, em vez de consolar, diz: “isso que você está sentindo tem nome. Chama-se angústia. E é um privilégio humano.”

Kierkegaard não é um pensador que nos poupa. Ele fala de dentro da experiência, e sua filosofia nasce de dores reais. A angústia, para ele, é o sentimento de quem percebe que é livre — e que, por isso mesmo, carrega o peso das escolhas e a vertigem do possível. Não é a tristeza de quem perdeu algo, mas o abismo aberto diante de quem pode ser qualquer coisa. É o susto de olhar no espelho e entender que ninguém, além de si mesmo, vai decidir quem você será.

O desespero, por outro lado, é um pouco mais traiçoeiro. Kierkegaard o define como uma espécie de doença da alma. Nem sempre o desesperado sabe que está em desespero. É o estado de quem tenta se afastar de si mesmo, fugir da própria verdade, viver uma vida fabricada para agradar os outros, ou para evitar o peso da liberdade. É uma anestesia existencial: a pessoa até sorri, mas por dentro está perdida de si.

E aqui está a virada inovadora que Kierkegaard propõe — e que ainda hoje assusta e liberta. Para ele, tanto a angústia quanto o desespero não são doenças a serem curadas, mas oportunidades de despertar. A angústia é como a febre que mostra que algo importante está acontecendo dentro da alma. O desespero, quando se torna consciente, pode ser o primeiro passo rumo à autenticidade. Ou seja, sentir-se angustiado ou desesperado pode ser sinal de que você está, finalmente, começando a viver de verdade.

Nas palavras do próprio Kierkegaard:

“A angústia é a vertigem da liberdade. [...] A psicologia sempre esteve certa ao dizer que a angústia pode conduzir à loucura, mas esqueceu de acrescentar que ela também pode conduzir à fé.”

(O Conceito de Angústia, 1844)

Kierkegaard enxergava a fé não como um abrigo seguro, mas como um salto no escuro. A fé, para ele, é o oposto da certeza. Não é algo que se prova, que se explica ou que se constrói com lógica — é uma decisão existencial. E é justamente isso que a torna tão angustiante. Para crer de verdade, é preciso aceitar que não há garantias.

No livro O Desespero Humano, ele mostra que a fé não elimina o desespero de ser quem se é — ela transforma esse desespero em caminho. O salto da fé, que ele tanto menciona, não é um pulo irresponsável, mas um mergulho consciente no paradoxo da existência. É quando o indivíduo decide ser ele mesmo, diante de Deus, mesmo sabendo que essa escolha envolve dor, dúvida e solidão.

Fé, nesse sentido, não é consolo: é confronto. E é por isso que a angústia não é um obstáculo à fé, mas quase sua condição. Só quem experimentou a vertigem da liberdade, o peso do próprio ser, e ainda assim decide afirmar a si mesmo diante do mistério, é capaz de dar esse salto. Como escreve Kierkegaard em O Conceito de Angústia, a fé nasce no exato ponto onde a razão reconhece seu limite — e o eu escolhe mesmo assim.

A fé, então, é o passo de quem olha o abismo — e não recua.

Em tempos em que o bem-estar é vendido como ideal absoluto, Kierkegaard nos convida a acolher o desconforto. Ele não romantiza a dor, mas a reconhece como caminho. A angústia é o aviso de que a alma está viva; o desespero é o grito de quem ainda não se encontrou — ou pior, encontrou-se e não gostou do que viu.

O que fazer, então, com essa angústia que nos visita nos silêncios? E esse desespero disfarçado de normalidade? Kierkegaard diria: enfrente. Não fuja de si. Pare de correr. A liberdade é vertiginosa, sim, mas é só nela que se encontra a verdadeira fé — não uma fé pronta e embalada, mas a fé como salto, como risco, como ato de escolher a si mesmo diante do infinito.

Quem sente angústia está diante da porta. Quem se desespera, já entrou no quarto e percebeu que não há móveis prontos. A construção da vida, para Kierkegaard, é artesanal. Leva tempo, exige coragem e honestidade radical. E talvez seja por isso que ele permanece tão atual: porque nos convida a não viver no automático, mas a construir — na dor e na escolha — a singularidade que somos.

Vou tentar resumir um pouco da vida pessoal de Kierkegaard, parece um daqueles romances intensos onde nada acontece por acaso, e tudo é vivido com peso de eternidade. Ele cresceu num ambiente sombrio, sob a influência de um pai profundamente religioso e melancólico, que acreditava ter amaldiçoado a Deus e transmitido essa culpa ao filho como uma herança invisível. E Kierkegaard a carregou — com uma seriedade quase trágica. Era um homem que amou intensamente, mas rompeu o noivado com Regine Olsen porque achava que não podia oferecer a ela uma vida comum: ele se sentia destinado à solidão e à missão de pensar Deus, a fé e o desespero com uma profundidade que não deixava espaço para o cotidiano do amor. Mesmo amando, afastou-se, e isso o marcou até o fim. Frequentava cafés, andava bem vestido, caminhava pelas ruas de Copenhague como uma presença elegante e enigmática — via as pessoas, mas raramente se deixava ver de verdade. A religião era sua obsessão e sua ferida: acreditava que a fé exigia um salto para o absurdo, uma entrega total e angustiante que a igreja oficial, com suas liturgias bem comportadas, jamais compreenderia. Escreveu muito, sempre como se estivesse tentando encontrar em palavras um caminho para Deus ou para si mesmo — ou para nenhum dos dois. Morreu jovem, aos 42 anos, fiel à sua inquietação, recusando os rituais da igreja que criticava, e deixando para trás uma obra que, em muitos aspectos, é o diário de uma alma atormentada que não queria respostas fáceis.

Vale uma nota de rodapé: Quando Kierkegaard fala em um salto para o absurdo vamos imaginar que a vida o levou até a beira de um penhasco. Lá embaixo, não dá pra ver nada — só neblina e silêncio. Você sabe que continuar na beirada é seguro, mas sente que ficar ali é trair alguma verdade profunda dentro de você. Aí vem Kierkegaard, com aquele jeito dele de profeta urbano, e diz: "Se você quer encontrar Deus de verdade, vai ter que pular." Não tem ponte, não tem escada, não tem certeza. É só você, o vazio e uma esperança absurda de que algo — que você não entende, não controla e não vê — vai te segurar. Esse é o salto da fé. Não é acreditar porque faz sentido; é acreditar justamente quando não faz. É confiar quando tudo em volta grita o contrário. Kierkegaard usava o exemplo de Abraão, que foi capaz de subir a montanha para sacrificar o próprio filho porque acreditava num propósito que ninguém mais entendia. Aos olhos do mundo, isso é loucura. E é isso mesmo: a fé verdadeira, pra ele, é um absurdo — um risco total, sem garantias, sem provas, sem lógica. É dar o salto mesmo tremendo, mesmo com medo, mesmo sem chão. Porque no fundo, o que Kierkegaard está dizendo é que a fé começa onde a razão termina.

Vale muito dar oportunidade para este filósofo falar ao nosso pé de ouvido, nos faz pensar... a leitura é para aqueles que sentem que viver é mais do que cumprir tarefas, a leitura é para leitores inquietos, desses que gostam de pensar para além do senso comum.

domingo, 6 de abril de 2025

Ensaios do Indizível

Outro dia, no meio de uma conversa aleatória com um amigo que acredita que "tudo tem explicação", me peguei pensando: e quando não tem? E quando a coisa escapa tanto da linguagem, da lógica e até da intuição, que tudo o que nos resta é um silêncio constrangido ou um balbucio filosófico meio envergonhado? A gente vive cercado de certezas práticas, manuais de instrução e tutoriais para tudo. Mas o que fazemos com aquilo que não se pode dizer? Com aquilo que está além da física, da lógica e da experiência direta? Eis aí o terreno escorregadio da metafísica — essa arte (ou obsessão) de tentar expressar o indizível.

A ânsia de nomear o que escapa

Desde os pré-socráticos, passamos tentando capturar o ser com palavras, como se o ser fosse um animal exótico que bastasse descrever para compreender. Parmênides nos dizia que o ser é e o não-ser não é. Simples assim — e ao mesmo tempo, brutalmente enigmático. Mas com o passar dos séculos, a metafísica se tornou um tipo de cartografia do invisível: queríamos desenhar mapas de territórios que nem sequer temos certeza se existem.

A questão é que a metafísica opera numa espécie de contrabando do pensamento: ela tenta contrabandear conceitos que ultrapassam qualquer experiência possível. Fala-se do "absoluto", do "uno", do "transcendente", como se fossem objetos que pudéssemos virar nas mãos. Mas não podemos. Wittgenstein nos alertou no Tractatus: “Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar.” O problema é que não conseguimos calar. Queremos desesperadamente dizer.

A linguagem e seus limites

A linguagem é feita para o mundo das cadeiras, dos copos, dos encontros às seis e das dores de cabeça. Ela serve para o cotidiano, para a descrição do que se vê, se toca, se mede. Mas quando tentamos usá-la para falar de "ser-em-si", "causa primeira" ou "nada absoluto", ela começa a ranger, a falhar, a tropeçar nas próprias pernas. É como tentar desenhar um cheiro.

Aqui entra o jogo perigoso da metafísica: ela transforma a impotência da linguagem em discurso autoritário. Ao nomear o inominável, cria sistemas, doutrinas, dogmas. Mas o que ela faz, no fundo, é construir castelos no ar — belos, complexos, sofisticados — mas ainda assim suspensos no vazio.

A ilusão útil (e talvez necessária)

Dizer que a metafísica é ilusória não é dizer que ela é inútil. Como dizia Kant, ela é uma necessidade da razão, mesmo que sem objeto. Ou seja, estamos programados para ultrapassar os limites da experiência. Há em nós uma sede de totalidade, um desejo de saber se há algo antes, depois, por trás, dentro de tudo. Esse desejo não morre mesmo quando nos dizem que não há como satisfazê-lo.

E talvez seja esse o valor mais profundo da metafísica: não como ciência do ser, mas como arte do abismo. Ela nos ensina que há perguntas que não têm resposta, apenas reverberações. Que há experiências que só se vivem, mas nunca se explicam. Que há um "algo mais" que, ainda que nunca possamos compreender, nos move — como uma música que nunca ouvimos inteira, mas da qual não conseguimos esquecer a melodia.

Um filósofo e o silêncio

O pensador brasileiro Vicente Ferreira da Silva escreveu que "toda metafísica verdadeira começa pelo assombro e termina no silêncio". É isso. Não se trata de negar a metafísica, mas de compreender que sua tarefa não é dizer o que é o ser, mas nos colocar diante dele, em estado de escuta, de humildade, de espanto. Não é à toa que os místicos — aqueles que chegaram mais perto do indizível — terminam calando. Ou rindo. Ou chorando.

Concluindo (ou o começo do silêncio)

Talvez o mais inovador a dizer sobre a metafísica seja exatamente isto: que ela fracassa, mas que seu fracasso é revelador. Que ela é impossível, mas necessária. Que ela é ilusória, mas inevitável. E que, no fundo, o maior ato filosófico pode ser admitir que há coisas que só se compreendem quando se desiste de explicá-las. A metafísica, nesse sentido, não é uma resposta, mas um gesto. Um gesto de apontar — com palavras trêmulas — na direção do indizível.

E talvez, só talvez, isso já seja o suficiente.


terça-feira, 1 de abril de 2025

Existencialismo Digital

A Condenação de Estarmos Conectados

Outro dia, estava rolando infinitamente o feed de uma rede social quando me peguei encarando uma tela vazia. Nada ali parecia real, mas tudo exigia minha atenção. Como um Sísifo digital, eu deslizava o dedo, subia e descia, em busca de algo que nunca se concretizava. Foi quando me ocorreu: será que estamos existindo de forma autêntica no espaço digital, ou apenas simulando presença?

O existencialismo clássico, de Sartre e Heidegger, nos coloca diante da liberdade radical e do peso da existência. "Estamos condenados a ser livres", dizia Sartre, pois não há essência antes da existência. Mas e quando essa existência se dá no meio digital, onde o ser parece fragmentado em múltiplas personas, postagens e narrativas? A liberdade virtual é autêntica ou apenas mais um labirinto sem saída?

Na era digital, a identidade é fluida e altamente performática. Criamos perfis, moldamos imagens, escolhemos quais aspectos de nós mesmos exibir e quais ocultar. Isso ecoa a ideia sartreana de "má-fé", quando nos enganamos sobre quem somos para evitar o peso da liberdade. Na internet, a má-fé se torna um algoritmo: curamos nossa própria existência para o olhar dos outros, ao ponto de não sabermos mais onde termina a performance e começa o ser.

Heidegger nos alertava sobre o perigo do "se" impessoal, essa força invisível que nos faz agir conforme "o que se faz". No mundo digital, esse "se" se manifesta na necessidade de engajamento: postamos não porque queremos, mas porque é o que se espera; reagimos para manter a relevância; participamos do fluxo incessante de informações para não sermos esquecidos. Assim, a angústia existencial ganha um novo formato: não apenas tememos a morte, mas também o esquecimento algorítmico.

O existencialismo digital também nos leva a questionar o sentido do real. Se "a existência precede a essência", mas nosso ser está diluído em redes que operam por padrões, preferências e manipulação de dados, quem realmente somos? E mais: a liberdade que Sartre tanto defendeu ainda existe quando nossas escolhas são moldadas por sugestões personalizadas e bolhas de informação?

A solução não é rejeitar a existência digital, mas assumir conscientemente seu peso. Se estamos condenados a ser digitais, que ao menos possamos ser autênticos nisso. Que escolhamos nosso ser para além das métricas e do desejo de validação. Talvez a saída esteja em um paradoxo: usar a conexão para nos desconectar do "se", para reencontrar a angústia produtiva de existir de verdade.

Enquanto isso, sigo rolando o feed, mas com outra consciência. O abismo do digital me encara, e eu encaro de volta.