O Abismo Que Sustenta: Um Ensaio Filosófico a Partir de Paul Tillich (1886 – 1965)
Sobre
o filósofo: Paul Johannes Oskar Tillich foi um
teólogo alemão-estadounidense e filósofo da religião. Seu trabalho abordou as implicações
cruciais para o cristianismo levantadas pelos filósofos existencialistas do
século XX e explorou a relação entre teologia e cultura. Wikipédia
No
meio de uma crise, sentado na beira da cama, alguém pergunta a si mesmo: “E
agora?” Não é uma oração formal. Não é filosofia. Mas é profundamente
existencial. Tillich diria: aí começa a teologia — no grito silencioso de quem
encara o vazio. Para ele, Deus não está no céu com uma barba longa, anotando
nossos pecados. Está muito mais próximo, mais dentro, mais fundamental: é o fundamento
do ser. Esta ideia não é simples e nem confortável, mas ela abre caminhos
inesperados para se pensar não só a fé, como também a arte, a política, o medo
e a própria coragem de viver.
I.
A fé que resiste ao colapso
A
proposta de Paul Tillich parece estranha à primeira vista: dizer que
Deus não é um “ser”, mas o “ser mesmo” ou seu fundamento. Mas isso não é uma
ginástica verbal. É uma resposta radical à experiência humana de ruína, de
perda de sentido, de naufrágio. Para Tillich, quando tudo parece desmoronar,
ainda assim algo nos sustenta: uma coragem misteriosa, silenciosa, que
nos empurra para continuar sendo. Essa coragem não é um acessório emocional —
ela é sagrada.
Diferente
da fé como crença cega ou manual de respostas prontas, a fé para Tillich é o
ato de afirmar-se diante do abismo. Isso muda tudo. Porque o abismo não
desaparece. Ele fica lá, como o fundo escuro da consciência, como a finitude,
como a morte. Mas algo em nós ousa dizer sim — e esse sim é a centelha do
divino.
II.
O divino como urgência vital
Se
Deus é o fundamento do ser, então não está apenas no templo, na missa, no
dogma. Está na dança de quem enfrenta a dor com beleza. Está na arte que
ressignifica o sofrimento. Está na política que busca justiça, ainda que o
mundo resista. E isso tem implicações cruciais: o teólogo vira intérprete do
mundo, não guardião de verdades estanques.
Tillich
propõe o que ele chama de “método da correlação”: ouvir o que o ser
humano moderno está perguntando e buscar, nos símbolos religiosos, respostas
possíveis. É uma via de mão dupla — onde a cultura alimenta a teologia e
vice-versa. Isso faz da religião algo dinâmico, encarnado na vida, não um museu
de crenças mortas.
III.
Símbolos em chamas
Um
dos maiores perigos da religião, para Tillich, é tomar seus símbolos como
literais. Deus, inferno, céu, salvação — são imagens carregadas de sentido, mas
não são mapas geográficos do além. Eles apontam para experiências profundas.
Quando esquecemos isso, os símbolos viram ídolos — e a religião se fecha,
torna-se violenta, condenatória, ideológica.
A
implicação disso é delicada: é preciso reaprender a ler os símbolos como se lê
um poema, um quadro ou um sonho. A fé, nesse sentido, se aproxima da arte: não
diz o que é, mas o que pode ser sentido como verdadeiro. Assim, falar de
Deus é sempre falar do indizível — e qualquer tentativa de possuí-lo é um
equívoco perigoso.
IV.
A coragem de ser (e de errar)
Tillich
escreveu sobre a coragem de ser como a virtude central da existência
humana. Essa coragem não é força de vontade pura, nem entusiasmo otimista. É
resistência contra a tentação de ceder ao nada. É continuar mesmo quando não há
garantias. E isso nos conecta a um sagrado que não se mede por milagres, mas
por presença.
O
mais inovador é que essa ideia da fé como coragem redefine o que é uma “vida
espiritual”. Não se trata de cumprir mandamentos ou repetir fórmulas. Trata-se
de sustentar o ser no meio da angústia. A espiritualidade, assim, não é uma
fuga do mundo — é um mergulho profundo nele, sustentado por algo que não se vê,
mas se sente na carne da existência.
V.
Quando a vida desmonta: a fé na depressão
Imagine
alguém que se levanta da cama com imenso esforço, sem saber por quê. A comida
não tem gosto. O tempo parece pesado. Tudo o que antes dava sentido agora soa
vazio. Não há energia para se revoltar — só o silêncio e o esvaziamento. Essa é
a experiência da depressão profunda.
Tillich
não vê isso como uma falha moral, mas como o encontro cru com o nada — o
nada do sentido, o nada da vontade, o nada da esperança. É nesse ponto que sua
teologia se torna medicina para a alma: a fé não exige que você esteja bem
para existir. Ela começa exatamente aí, quando tudo parece ter desabado.
Ter
fé, nesse caso, não é sorrir à toa ou afirmar que tudo vai dar certo. É
simplesmente não se render totalmente. É, por vezes, apenas respirar e suportar
o dia. Esse gesto mínimo — levantar-se para tomar água, escutar alguém,
assistir a um filme — pode ser uma forma de fé silenciosa.
A
fé, diz Tillich, é a coragem de aceitar ser aceito, mesmo quando nos sentimos
absolutamente indignos de aceitação. Isso tem um valor terapêutico profundo,
que a psicologia moderna, em diálogo com a teologia, começa a reconhecer.
VI.
Arte como revelação: o símbolo na tela
Num
museu ou galeria, uma pintura nos prende. Não porque retrata algo bonito, mas
porque nos faz sentir algo que ainda não sabíamos nomear. Ali, sem palavras,
algo é revelado. Tillich chamaria isso de uma experiência simbólica da
profundidade.
A
arte, nesse sentido, cumpre função religiosa — não porque fala de Deus
diretamente, mas porque acessa aquilo que é “de máxima importância” na alma
humana. Um quadro de Rothko, uma escultura de Giacometti, uma peça de teatro de
Beckett: não oferecem consolo, mas revelam o trágico com beleza. E essa beleza
nos transforma.
Tillich
via na arte uma forma de teologia implícita. Artistas são, muitas vezes,
profetas involuntários: revelam as fissuras da existência, dão forma à
angústia, mas também anunciam o que ainda não se vê. A religião, nesse diálogo,
aprende a olhar o mundo com mais escuta, menos imposição.
VII.
Política: resistir ao nada coletivo
Agora
imagine um jovem ativista em uma cidade onde a desigualdade parece eterna. Ele
organiza reuniões, discute com vereadores, defende causas que quase ninguém
escuta. Muitas vezes, sente que está perdendo tempo. Mas continua. Por quê?
Essa
perseverança não é apenas política. É existencial. Tillich diria que há aí um
movimento de fé — não no sentido religioso tradicional, mas na coragem de
afirmar o ser mesmo quando a cultura caminha para o colapso.
O
“nada” contra o qual se resiste não é só individual. É social: opressão,
desumanização, apatia generalizada. A fé, nesse caso, se expressa em gestos
políticos. E a política ganha, assim, uma dimensão espiritual: lutar por
dignidade humana é, em última instância, lutar pela presença do ser sobre o
nada.
Tillich,
que viveu sob o nazismo e teve de fugir da Alemanha, sabia bem do que falava.
Sua teologia nasceu do confronto direto com o autoritarismo. Por isso, suas
ideias continuam relevantes: elas lembram que fé e liberdade estão mais
próximas do que parecem.
O
invisível que sustenta o visível
Ao
ampliar a proposta de Tillich para a vida cotidiana, vemos que a teologia deixa
de ser um discurso abstrato e passa a ser um modo de olhar — um modo de
perceber o que sustenta mesmo quando tudo ameaça ruir.
Na
depressão, ela é o fio que não se rompe.
Na
arte, é o símbolo que nos revela a profundidade.
Na
política, é o gesto que recusa o desespero coletivo.
Fé,
aqui, é sinônimo de resistência sensível. Não é certeza, nem conforto — é o
abraço entre o frágil e o eterno. Tillich nos convida a trocar a busca por
respostas absolutas por uma presença atenta diante do mistério do ser. E isso,
nos dias de hoje, talvez seja o mais revolucionário que alguém pode propor.
Talvez
o maior legado de Tillich esteja em sua capacidade de devolver à fé seu sentido
mais radical: não o de um sistema, mas o de um mergulho. Em vez de dogmas
rígidos, Tillich oferece uma sensibilidade filosófica para o mistério. Em vez
de respostas prontas, ele oferece perguntas que nos acompanham até o fim.
E
aqui está a virada: o abismo não precisa ser temido se reconhecemos que há,
nele, um chão invisível que nos sustenta. Deus, então, não é o que nos livra do
sofrimento — é o que nos acompanha nele. E a fé não é certeza, mas fidelidade
ao chamado mais profundo do ser: continuar sendo, apesar de tudo.
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