A angústia e o desespero em Kierkegaard
Tem
dias em que a gente acorda como se tivesse esquecido quem é. Não é cansaço, não
é tristeza, não é tédio. É outra coisa. Um incômodo surdo, um nó na garganta
que não se desata, uma vontade de sair correndo sem saber pra onde. Nessas
horas, não é raro procurar distração: abrir o celular, comer alguma coisa,
ligar a TV. Mas esse bicho estranho que aparece dentro da gente não se distrai
fácil. Ele exige escuta, porque tem algo a dizer. É aí que Søren Kierkegaard
entra como um velho amigo que, em vez de consolar, diz: “isso que você está
sentindo tem nome. Chama-se angústia. E é um privilégio humano.”
Kierkegaard
não é um pensador que nos poupa. Ele fala de dentro da experiência, e sua
filosofia nasce de dores reais. A angústia, para ele, é o sentimento de quem
percebe que é livre — e que, por isso mesmo, carrega o peso das escolhas e a
vertigem do possível. Não é a tristeza de quem perdeu algo, mas o abismo aberto
diante de quem pode ser qualquer coisa. É o susto de olhar no espelho e
entender que ninguém, além de si mesmo, vai decidir quem você será.
O
desespero, por outro lado, é um pouco mais traiçoeiro. Kierkegaard o define
como uma espécie de doença da alma. Nem sempre o desesperado sabe que está em
desespero. É o estado de quem tenta se afastar de si mesmo, fugir da própria
verdade, viver uma vida fabricada para agradar os outros, ou para evitar o peso
da liberdade. É uma anestesia existencial: a pessoa até sorri, mas por dentro
está perdida de si.
E
aqui está a virada inovadora que Kierkegaard propõe — e que ainda hoje assusta
e liberta. Para ele, tanto a angústia quanto o desespero não são doenças a
serem curadas, mas oportunidades de despertar. A angústia é como a febre que
mostra que algo importante está acontecendo dentro da alma. O desespero, quando
se torna consciente, pode ser o primeiro passo rumo à autenticidade. Ou seja,
sentir-se angustiado ou desesperado pode ser sinal de que você está,
finalmente, começando a viver de verdade.
Nas
palavras do próprio Kierkegaard:
“A
angústia é a vertigem da liberdade. [...] A psicologia sempre esteve certa ao
dizer que a angústia pode conduzir à loucura, mas esqueceu de acrescentar que
ela também pode conduzir à fé.”
(O
Conceito de Angústia, 1844)
Kierkegaard
enxergava a fé não como um abrigo seguro, mas como um salto no escuro. A fé,
para ele, é o oposto da certeza. Não é algo que se prova, que se explica ou que
se constrói com lógica — é uma decisão existencial. E é justamente isso que a
torna tão angustiante. Para crer de verdade, é preciso aceitar que não há
garantias.
No
livro O Desespero Humano, ele mostra que a fé não elimina o
desespero de ser quem se é — ela transforma esse desespero em caminho. O salto
da fé, que ele tanto menciona, não é um pulo irresponsável, mas um mergulho
consciente no paradoxo da existência. É quando o indivíduo decide ser ele
mesmo, diante de Deus, mesmo sabendo que essa escolha envolve dor, dúvida e
solidão.
Fé,
nesse sentido, não é consolo: é confronto. E é por isso que a angústia não é um
obstáculo à fé, mas quase sua condição. Só quem experimentou a vertigem da
liberdade, o peso do próprio ser, e ainda assim decide afirmar a si mesmo
diante do mistério, é capaz de dar esse salto. Como escreve Kierkegaard em O
Conceito de Angústia, a fé nasce no exato ponto onde a razão reconhece
seu limite — e o eu escolhe mesmo assim.
A
fé, então, é o passo de quem olha o abismo — e não recua.
Em
tempos em que o bem-estar é vendido como ideal absoluto, Kierkegaard nos
convida a acolher o desconforto. Ele não romantiza a dor, mas a reconhece como
caminho. A angústia é o aviso de que a alma está viva; o desespero é o grito de
quem ainda não se encontrou — ou pior, encontrou-se e não gostou do que viu.
O
que fazer, então, com essa angústia que nos visita nos silêncios? E esse
desespero disfarçado de normalidade? Kierkegaard diria: enfrente. Não fuja de
si. Pare de correr. A liberdade é vertiginosa, sim, mas é só nela que se
encontra a verdadeira fé — não uma fé pronta e embalada, mas a fé como salto,
como risco, como ato de escolher a si mesmo diante do infinito.
Quem
sente angústia está diante da porta. Quem se desespera, já entrou no quarto e
percebeu que não há móveis prontos. A construção da vida, para Kierkegaard, é
artesanal. Leva tempo, exige coragem e honestidade radical. E talvez seja por
isso que ele permanece tão atual: porque nos convida a não viver no automático,
mas a construir — na dor e na escolha — a singularidade que somos.
Vou
tentar resumir um pouco da vida pessoal de Kierkegaard,
parece um daqueles romances intensos onde nada acontece por acaso, e tudo é
vivido com peso de eternidade. Ele cresceu num ambiente sombrio, sob a
influência de um pai profundamente religioso e melancólico, que acreditava ter
amaldiçoado a Deus e transmitido essa culpa ao filho como uma herança
invisível. E Kierkegaard a carregou — com uma seriedade quase trágica. Era um
homem que amou intensamente, mas rompeu o noivado com Regine Olsen porque achava
que não podia oferecer a ela uma vida comum: ele se sentia destinado à solidão
e à missão de pensar Deus, a fé e o desespero com uma profundidade que não
deixava espaço para o cotidiano do amor. Mesmo amando, afastou-se, e isso o
marcou até o fim. Frequentava cafés, andava bem vestido, caminhava pelas ruas
de Copenhague como uma presença elegante e enigmática — via as pessoas, mas
raramente se deixava ver de verdade. A religião era sua obsessão e sua ferida:
acreditava que a fé exigia um salto para o absurdo, uma entrega total e
angustiante que a igreja oficial, com suas liturgias bem comportadas, jamais
compreenderia. Escreveu muito, sempre como se estivesse tentando encontrar em
palavras um caminho para Deus ou para si mesmo — ou para nenhum dos dois.
Morreu jovem, aos 42 anos, fiel à sua inquietação, recusando os rituais da
igreja que criticava, e deixando para trás uma obra que, em muitos aspectos, é
o diário de uma alma atormentada que não queria respostas fáceis.
Vale
uma nota de rodapé: Quando Kierkegaard fala em um salto
para o absurdo vamos imaginar que a vida o levou até a beira de um penhasco. Lá
embaixo, não dá pra ver nada — só neblina e silêncio. Você sabe que continuar
na beirada é seguro, mas sente que ficar ali é trair alguma verdade profunda
dentro de você. Aí vem Kierkegaard, com aquele jeito dele de profeta urbano, e
diz: "Se você quer encontrar Deus de verdade, vai ter que pular." Não
tem ponte, não tem escada, não tem certeza. É só você, o vazio e uma esperança
absurda de que algo — que você não entende, não controla e não vê — vai te
segurar. Esse é o salto da fé. Não é acreditar porque faz sentido; é acreditar
justamente quando não faz. É confiar quando tudo em volta grita o contrário.
Kierkegaard usava o exemplo de Abraão, que foi capaz de subir a montanha para
sacrificar o próprio filho porque acreditava num propósito que ninguém mais
entendia. Aos olhos do mundo, isso é loucura. E é isso mesmo: a fé verdadeira,
pra ele, é um absurdo — um risco total, sem garantias, sem provas, sem lógica.
É dar o salto mesmo tremendo, mesmo com medo, mesmo sem chão. Porque no fundo,
o que Kierkegaard está dizendo é que a fé começa onde a razão termina.
Vale
muito dar oportunidade para este filósofo falar ao nosso pé de ouvido, nos faz
pensar... a leitura é para aqueles que sentem que viver é mais do que cumprir
tarefas, a leitura é para leitores inquietos, desses que gostam de pensar para
além do senso comum.