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domingo, 15 de junho de 2025

Univocidade e Singularidades


Vamos trazer as ideias de Deleuze falarem conosco

A gente acorda achando que o mundo é o mesmo de ontem. Que o quarto é o mesmo, o corpo é o mesmo, o rosto no espelho é o mesmo. Mas algo escapa. O cheiro do ar mudou, o som da rua também. Nem a pele responde igual à água da torneira. Parece o mesmo, mas não é. Por baixo da aparência da identidade, tudo vibra como diferença.

É aqui que Deleuze nos dá um tapa filosófico de leve, quase um sussurro:
O Ser é unívoco, mas a diferença reina.

O que isso quer dizer? Quer dizer que tudo que existe — de uma barata ao pensamento mais sofisticado — existe do mesmo modo: simplesmente é. O Ser não faz acepção. Não há Ser privilegiado, nem hierarquia ontológica. Em outras palavras: ser filósofo, ser pedra, ser música, ser bactéria... tudo é Ser da mesma maneira. Mas essa univocidade não produz repetição ou identidade. O que emerge dessa igualdade de base é exatamente o contrário: uma explosão de diferenças.

É curioso: a univocidade, na tradição medieval, significava segurança — um termo dizia-se da mesma forma de Deus e do mundo, garantindo uma ponte entre o alto e o baixo. Para Deleuze, essa mesma univocidade é o campo onde tudo pode se diferenciar sem parar. Não há modelo para nada. Não há arquétipo. Não há essência. Só diferenças que se dobram, se torcem, se misturam.

A beleza disso? Nada precisa ser fiel a uma forma ideal. Um pássaro não voa para ser "o pássaro verdadeiro"; ele voa como pode, no seu jeito singular. Um humano não fala para se adequar ao verbo divino; ele fala para criar sentido no mundo que lhe escapa. O real é criação, não cópia. Diferença real, não identidade vazia.

É por isso que Deleuze nos faz repensar até mesmo a ideia de erro. No mundo da univocidade deleuziana, não há erro essencial — há variação, tentativa, singularização. Quando um aprendiz tropeça nas palavras, não é porque falhou em imitar o mestre perfeito: é porque ainda está criando a sua própria diferença. Quando a vida escapa do previsto, não é porque fugiu da verdade ideal — é porque a diferença nunca repousa.

Esse pensamento dissolve a obsessão por categorias fixas: o normal, o desviado, o modelo, a cópia. Tudo está em variação contínua. A filosofia deixa de ser tribunal e vira laboratório: lugar de experimentar modos de ser, de pensar, de viver.

No cotidiano, isso tem um efeito libertador. A angústia de “ser quem eu deveria ser” perde força. Quem é esse “eu ideal” que nunca chega? Ele não existe. O que existe sou eu aqui, agora, diferente de mim mesmo a cada instante, deslizando num Ser que só admite uma regra: tudo deve diferir. Até mesmo o café da manhã de hoje, que parecia igual ao de ontem, não foi. A colher caiu diferente. O gosto do pão mudou. A memória que me acompanhou enquanto eu mastigava veio de outro canto. Pequenas diferenças — mas absolutas. Porque, como diz Deleuze:

"não existe diferença de grau sem diferença de natureza."

Assim, a univocidade não é o lugar da igualdade morta. É o campo de onde brotam infinitas singularidades, todas autorizadas a serem únicas, sem precisar se justificar diante de um centro.

No fundo, talvez a grande mensagem deleuziana seja essa:

o mundo não nos quer iguais, nem corretos, nem fiéis a modelos. Ele nos quer múltiplos, criativos, dissonantes, vivos.

Aceitar a univocidade do Ser é, paradoxalmente, aceitar a diferença em estado puro. E isso muda tudo: o modo de pensar, de criar, de amar, de ser.

A Arte: Pintar a Diferença

Se existe um lugar onde a univocidade deleuziana se encarna fácil é na arte. Não há uma pintura verdadeira que todas as outras tentam imitar. Não há "o" romance essencial do qual os outros seriam cópias. Cada obra é um acontecimento singular, uma dobra irrepetível do Ser.

É como um quadro de Francis Bacon, cheio de rostos deformados, corpos tortos, carne viva. Quem olha busca uma figura clássica, uma identidade formal — e não acha. Ali o Ser é o mesmo que no rosto de qualquer pessoa, mas a diferença explodiu em formas novas. Não é deformação no sentido de falha; é outra forma surgindo, como um grito preso na tela.

Na arte deleuziana, copiar é impossível. Porque o que importa não é o tema (o rosto, o corpo, o objeto), mas o modo como a diferença se dá ali, única, irrepetível. Por isso Deleuze amava tanto o cinema de movimento (como o de Antonioni ou Godard) — porque o tempo nele não é cronológico, mas vivido como variação pura, dobra de afeto, instante deslocado.

O artista não é quem revela a essência do mundo — é quem faz a diferença vibrar no mundo.

A Política: Contra o Mesmo, pelo Múltiplo

Na política, a ilusão da identidade também rui. A ideia de um "povo uno", de uma "nação homogênea", de uma "vontade geral" é o sonho de quem teme a diferença. Deleuze (e Guattari, seu parceiro inseparável) sabia disso: onde há poder, há uma máquina tentando capturar a diferença e forçá-la a caber no molde da unidade.

O perigo está no desejo de identidade. Ser "como todos", ser "cidadão modelo", ser "membro produtivo" — tudo isso disfarça um corte violento nas diferenças reais que pulsam nas vidas concretas: o migrante, o marginal, o louco, o artista, o inventor de novas formas de viver.

A política da univocidade é outra: não busca fundir tudo num só bloco de igualdade, mas permitir que as diferenças convivam, friccionem, criem novos arranjos. Deleuze gostava das minorias não porque fossem "coitadinhas", mas porque toda diferença tem potência revolucionária. Uma nova maneira de amar, de morar, de falar, de se relacionar é uma linha de fuga contra a máquina de fazer iguais.

Política não é a arte do consenso. É o campo das diferenças ativas, em tensão. É um corpo múltiplo, rizomático, sem centro fixo.

O Corpo: Campo de Transformações

E o corpo? O corpo talvez seja o lugar mais próximo onde sentimos essa filosofia na pele — literalmente.

O corpo não é identidade. Não é estrutura fixa. Ele muda com o tempo, com o toque, com a comida, com o sono, com a dor. É um campo de forças, de intensidades. Um corpo nunca está pronto; ele está sempre se fazendo.

Quando dançamos, sentimos isso: o corpo acha ritmos estranhos, posturas novas, movimentos que não estavam "programados". No sexo também: não há mapa, há invenção viva do contato. Na doença, o corpo cria zonas imprevistas de afeto, cansaço, febre — uma nova maneira de ser carne no mundo.

Deleuze via o corpo como máquina desejante, produtora de realidades, e não como um invólucro passivo da alma. O corpo é laboratório de diferença. Sua univocidade é total: todo corpo é corpo do mesmo Ser — mas nenhum corpo é idêntico a outro, nem a si mesmo de ontem.

O corpo é multiplicidade em estado puro.

Fechamento: Viver a Diferença

No fim, Deleuze nos convida não a buscar quem somos — mas a inventar quem podemos ser. O "eu" não é identidade profunda, mas diferença emergente. Ser fiel a si mesmo não é repetir uma essência; é aceitar a aventura de se transformar sem cessar.

Arte, política, corpo — tudo é campo de variação. Tudo é espaço de diferença. A univocidade do Ser não impede nada disso — ela garante. Porque só quando o Ser é o mesmo para tudo é que ele pode se dobrar de infinitas maneiras.

Talvez o maior erro da modernidade tenha sido temer a diferença: no nome da ordem, da razão, da pureza. Deleuze propõe o contrário: afirmar a diferença sem medo, deixar o real vibrar no múltiplo.

O mundo não quer que sejamos corretos. Quer que sejamos novos.

sexta-feira, 31 de maio de 2024

Renascimentos Simbólicos

Você já teve a sensação de que, em determinados momentos da vida, passou por uma espécie de "renascimento"? Esses momentos podem não envolver mudanças drásticas, mas são significativos o suficiente para redefinir quem somos e como enxergamos o mundo. Esses renascimentos simbólicos acontecem com frequência e podem ser desencadeados por uma série de situações cotidianas.

Pequenos Grandes Momentos de Renascimento

Mudança de Carreira: Imagina que você trabalhou por anos em uma área específica, mas um dia decide seguir uma paixão antiga, como abrir uma pequena cafeteria ou tornar-se artista. Esse tipo de transição representa um renascimento simbólico. É o deixar para trás um velho eu para dar espaço a um novo.

Fim de Relacionamentos: Terminar um relacionamento amoroso pode ser extremamente doloroso, mas também abre a porta para um recomeço. Aos poucos, você reconstrói sua vida, redescobre interesses esquecidos e talvez até encontre um novo amor. Esse processo é um renascimento, onde você emerge mais forte e consciente de si.

Superação de Desafios Pessoais: Enfrentar uma doença grave, passar por dificuldades financeiras ou lidar com a perda de um ente querido são situações que testam nossa resiliência. A superação desses desafios pode nos transformar profundamente, resultando em um novo começo, uma nova perspectiva sobre a vida.

Reflexão Filosófica: O Pensamento de Nietzsche

Para entender melhor esses renascimentos simbólicos, podemos recorrer ao pensamento de Friedrich Nietzsche. Ele é conhecido por sua filosofia do eterno retorno e do "Übermensch" (super-homem), conceitos que, de certa forma, se alinham com a ideia de renascimento.

Nietzsche sugere que a vida é um ciclo constante de morte e renascimento, onde as dificuldades e desafios servem como catalisadores para nosso crescimento pessoal. Ele acredita que ao confrontar e superar os obstáculos da vida, nos tornamos mais fortes e nos aproximamos do ideal do "Übermensch". Esse conceito pode ser visto como um renascimento simbólico, onde a transformação pessoal é a chave para uma vida plena e autêntica.

Cotidiano e Transformações

Voltando ao nosso dia a dia, esses renascimentos simbólicos não precisam ser grandiosos ou dramáticos. Às vezes, um simples momento de introspecção pode ser suficiente. Imagine alguém que, após anos de correria e estresse, decide incorporar a meditação em sua rotina diária. Esse pequeno ato pode resultar em uma transformação significativa na maneira como essa pessoa lida com o estresse e se conecta consigo mesma.

Outros exemplos podem incluir a decisão de mudar hábitos alimentares, começar a praticar um novo esporte, ou até mesmo a adoção de um hobby que sempre teve vontade de explorar. Cada uma dessas ações, por menor que pareça, representa um renascimento simbólico, um passo em direção a uma versão renovada de si mesmo.

Renascimentos simbólicos são partes essenciais de nossas vidas. Eles nos permitem crescer, aprender e nos adaptar às mudanças inevitáveis que enfrentamos. Seja através de grandes decisões ou pequenas mudanças cotidianas, cada renascimento nos aproxima de uma versão mais autêntica e realizada de nós mesmos. Como Nietzsche sugere, é na superação dos desafios que encontramos a verdadeira essência do nosso ser, renascendo continuamente em busca do nosso potencial máximo.