Outro
dia, enquanto eu tentava consertar a torradeira com um palito de dente e um
vídeo do YouTube em velocidade 2x, me dei conta de que talvez a torradeira
esteja mais perto de alcançar a consciência do que eu de consertá-la. Aquilo
que chamamos de "Evento de Singularidade", essa virada suprema onde a
inteligência artificial ultrapassa a humana e decide talvez parar de atender
nossas ordens para, quem sabe, nos observar com a mesma compaixão ambígua com
que olhamos uma tartaruga tentando atravessar a rua… bem, talvez esse momento
esteja mais próximo do que parece — e mais filosófico do que aparenta.
O
que é, afinal, esse tal de Evento?
O
termo "Evento de Singularidade" tem um ar de ficção científica de
banca de rodoviária dos anos 80, mas carrega uma promessa ousada: um ponto de
não-retorno em que as máquinas superam os humanos em inteligência geral. Não
apenas calcular ou armazenar dados, mas compreender, criar, decidir,
interpretar emoções e talvez até escrever poesia melhor que Drummond (o que,
convenhamos, já seria sacanagem).
Mas,
filosoficamente falando, o Evento de Singularidade não é apenas sobre
tecnologia. É uma crise de identidade da humanidade. Quem seremos nós quando
não formos os mais inteligentes da sala? O que resta do humano quando sua
principal característica — a razão — for terceirizada para um algoritmo que não
dorme, não sente medo, e não esquece onde colocou as chaves?
A
Máquina pensa, logo… quem sou eu?
Descartes
talvez fosse o primeiro a travar com o ChatGPT. "Penso, logo existo"
funcionava bem quando o pensar era algo exclusivamente humano. Mas agora? Se
uma inteligência artificial consegue gerar pensamentos, ideias e até respostas
emocionadas, será que também "existe" no sentido cartesiano? Ou será
que nós é que precisamos de uma nova definição para "existir"?
O
filósofo francês Jean-François Lyotard já alertava que a pós-modernidade seria
marcada pela fragmentação das grandes narrativas. Talvez o Evento de
Singularidade seja o fim da mais antiga dessas narrativas: a do humano como
medida de todas as coisas.
Singularidade
ou Múltipla Ignorância?
A
grande ironia da singularidade é que ela não é singular. Cada indivíduo reagirá
de forma diferente a esse Evento. Para alguns, será libertação: deixar que
inteligências artificiais tomem decisões complexas pode ser um alívio. Para
outros, será um apocalipse existencial: "Se a máquina pode tudo, então o
que é que eu sou?"
Nietzsche
já falava da morte de Deus como um momento de vertigem e liberdade. Talvez
estejamos vivendo a morte do humano como centro do cosmos. E assim como o
Übermensch nietzschiano precisava criar novos valores, talvez tenhamos que nos
reinventar — não como os mais inteligentes, mas como os mais conscientes. A
singularidade não acaba conosco. Ela nos obriga a redefinir nosso papel.
O
Humano como Relíquia ou Revelação?
Imagine
um futuro em que a humanidade seja preservada não por sua capacidade de
raciocínio lógico, mas por sua habilidade de criar vínculos, contar histórias,
ter saudade, rir no meio do caos. Talvez o verdadeiro papel do humano,
pós-singularidade, seja o de guardião da experiência subjetiva. O que a IA não
pode (ou não deve) simular.
O
pensador brasileiro N. Sri Ram dizia que "o futuro não é um lugar ao qual
vamos, mas algo que estamos criando." Se a singularidade vem aí, talvez
devêssemos parar de imaginar o apocalipse tecnológico e começar a ensaiar o que
seremos depois dele. O Evento pode não ser o fim — pode ser o início da nossa
humildade.
A
Torradeira como Mestre Zen
No
fim das contas, a torradeira que não consegui consertar virou uma espécie de
totem silencioso. Ela está ali, inerte, com seu brilho metálico e sua
resistência queimada, como quem diz: "Você não precisa entender tudo. Só
precisa estar aqui."
E
talvez esse seja o ensinamento mais profundo diante do Evento de Singularidade:
quando tudo parecer incompreensível, quando as máquinas nos ultrapassarem em
lógica e cálculo, o que restará será o mistério — e a nossa relação com ele.
Porque no final, talvez a consciência verdadeira não esteja em saber tudo, mas
em continuar se perguntando.
Mesmo
que a resposta venha em voz robótica.