O autor é Youssef Ziedan, acadêmico egípcio, especialista em estudos árabes e islâmicos, professor universitário, conferencista, colunista, além de autor de mais de cinquenta livros. É também diretor do Centro e Museu de Manuscritos da Biblioteca Alexandrina.
Na introdução do
livro recomendada pelo autor encontramos o que segue:
Este livro, o qual recomendei que fosse publicado apenas após minha morte, contém uma tradução fiel, tanto quanto foi possível, de um conjunto de pergaminhos descobertos há dez anos em sítios arqueológicos no noroeste da cidade síria de Aleppo. Tais ruínas se estendem ao longo de 3 quilômetros junto à velha estrada que ligava as duas cidades antigas de Aleppo e Antioquia, cidades cuja história começou antes da história conhecida. É uma estrada pavimentada, considerada a última etapa da famosa rota da seda, que antigamente começava nos extremos da Ásia e chegava ao fim no litoral do Mediterrâneo. Esses pergaminhos sem igual chegaram até nós em bom estado, com todas as inscrições siríacas (aramaicas) antigas, embora tenham sido escritas na primeira metade do quinto século da nossa era, ou, mais precisamente, há 1555 anos.
A obra do egípcio Youssef Ziedan é um romance histórico ambientado no século V d.C, escrito como se fosse a tradução de pergaminhos a respeito de um monge em sua jornada espiritual e de autoconhecimento, a estória é bem montada pelo autor, concisa, encantadora, sedutora porque nos faz pensar a respeito de conceitos e ideias forjados em nossa cultura religiosa, o autor escreve com leveza e naturalidade tratando de assuntos profundos como a relação dos sedutores prazeres mundanos e as expectativas dele ser um monge e como deveria reagir e se comportar diante das tentações que surgem a cada curva da estrada da vida.
Monges são seres humanos que escolheram dedicar-se a vida monástica, muitos vivendo em mosteiros tentando levar a vida afastados da sociedade, dedicando-se à oração e à produção de textos litúrgicos, de modo a alcançar um estado de graça e pureza de alma pela contemplação, porem como seres humanos precisam lutar contra suas tendências, instintos e paixões humanas, o enclausuramento e algo que não é natural para o ser humano, a escolha pelo isolamento é um dos fatores que causaram o declínio de muitos mosteiros, outros deram certo pela vocação e disciplina forjados a duros sacrifícios, dedicação e foco.
O personagem central do romance é Hipa, um monge-médico que vive no século V, peregrino no árido e rigoroso deserto no antigo Egito, viajando a pé, de barco ou em lombo de burro desde Alexandria até a Síria, num período em que os alicerces do Cristianismo estavam sendo construídos, historicamente é um período de muitas dificuldades devido ao fanatismo, a violência, a intolerância e a corrupção são as forças que formaram o cristianismo atual, estas forças são os elementos que vão introduzindo os conceitos religiosos cristãos segundo o entendimento dos vários segmentos, gradativamente na cultura politeísta do continente asiático.
A medida que a leitura avança o envolvimento do leitor com a estória se dá na imaginação que flui em razão da habilidade do autor na narrativa, e é fácil esquecer que se está lendo um romance.
Nesta caminhada em busca pelo autoconhecimento e entendimento do mundo levam anos, Hipa vai parando de localidade em localidade, vivendo as realidades locais, os dramas, a luta pelo primitivo cristianismo tentando firmar-se entre os pagãos, e principalmente a luta do monge com seu demônio interior “Azazel”, é ele que surge mesmo sem ser chamado para atormentar com dúvidas e tentações na discussão de sua consciência entre o que sente e o que sabe que deveria fazer com os pensamentos, emoções e sentimentos é a dura luta entre o profano e o sagrado, para o monge, Azazel é o responsável pelas incitações e provocações do terreno e do carnal, o demônio conduz direta e indiretamente Hipa aos desvios que farão com que sua integridade e retidão sejam colocados à prova, seus deslizes e arrependimentos demonstram como o ser humano navega neste mar de emoções.
“Será que Deus expulsou Adão porque este O desobedeceu? Ou porque, quando Adão conheceu a feminilidade de Eva, teve ciência de sua própria masculinidade e de que era diferente de Deus, apesar de ter sido criado à Sua imagem?” Pg.41
A sensibilidade, coragem e reações do monge são de um ser humano que luta para saber se tem vocação para a vida monástica, o que nos faz pensar em como seria viver abrindo mão a uma vida como conhecemos, constituindo família, relacionando-nos uns com os outros com o sexo como parte natural e ao mesmo tempo sagrado. Hipa tem empatia com as pessoas, consegue através da admiração e amizade com alguns personagens que vai narrando em sua convivência detalhes, conforme a leitura que faz das pessoas através de seus comportamentos e das conversas travadas superficial ou em confidencias, é possível perceber na narrativa como as tentações assumem diversas formas e como cada um a seu modo pensam e agem para afastar o outro mesmo que tenha de demonizar a mulher para se afastar do pecado.
A medida que avançamos na leitura vamos descobrindo a complexidade de Hipa, sua dualidade para com seu demônio Azazel, funciona muitas vezes como um confidente, sendo este demônio que o incita a escrever relatos de sua vida, insistindo para que escreva o máximo possível como forma de fazê-lo pensar a respeito de sua escolha para a vida monástica, colocando-o o tempo todo frente a frente com o que estará perdendo se abrir mão de outros prazeres como por exemplo através de estudos buscar na filosofia, matemática, conhecimentos que na época não eram permitidos além daquilo que estava nos evangelhos.
O autor narra de forma dramática a morte da primeira filosofa Hipátia, a perseguição que a igreja local fez com ela por defender o racionalismo científico, a matemática foi acusada de blasfêmia e sentimentos anticristãos. Ela, no entanto, nunca declarou ser aversa ao cristianismo. Na verdade, Hipátia dava aulas para pessoas de diversas crenças religiosas. Uma emboscada tirou a sua vida, sendo Hipa testemunha e ao mesmo tempo acovardado teria deixado de ajudar e a salva-la no momento derradeiro, fato que o atormentara o resto de sua vida.
A obra foi publicada originalmente em 2009, o romance foi recebido em meio a elogios e críticas, foi vencedor do Prêmio Internacional de Ficção Árabe, seu conteúdo não agradou a comunidade copta do Egito por considerá-lo um insulto a religião e aos princípios dessa crença.
Por que quis Deus que o homem permanecesse ignorante? O conhecimento adquirido por Adão era um prelúdio para que conhecesse a imortalidade? A quem Deus se referia ao dizer que Adão havia se tornado um deles? Se Adão e Eva tivessem permanecido ignorantes, ficariam vivos eternamente no Paraíso? Como pode a imortalidade coexistir com a ignorância e o desconhecimento da natureza? O que exatamente eles descobriram quando comeram da árvore? Pg.55
Muitas vezes, Youssef deixa Azazel quase didático ao tratar sobre determinadas passagens da história do Cristianismo. Existe um embate sutil nas páginas do título com relação a natureza do Cristo da Fé com o Cristo Histórico, há momentos em que o embate é filosófico carregando interpretações que devem ter chocado os religiosos.
Na verdade, não existe início nem fim, o que existe são linhas que não se interrompem. No universo, nenhuma ligação se rompe e nenhuma interferência se corrompe; a ramificação não cessa, nem o ato de preencher, nem o de esvaziar. Cada coisa está em ligação permanente, seus círculos vão se alargando para se misturarem a outra coisa, e de ambos sai um novo círculo, que por sua vez se mistura a outros. Assim, a vida se enche quando seu círculo se completa e se esvazia quando terminamos na morte, para que voltemos ao que causou o início. Ai da minha confusão! O que é isso que estou escrevendo? Todos os círculos giram na minha cabeça e só param nos instantes do sono, quando os sonhos começam seu próprio giro. Nos sonhos, assim como no despertar, as lembranças lotam meu coração e me espremem. As lembranças são redemoinhos de círculos ininterruptos, emaranhados. Se a elas me rendo e as narro com minha pena, por onde devo começar? Pg.9
A estória de Hipa é a história das tentações do homem que é universal e sempre povoou nossa mente, em qualquer lugar deste planeta do ocidente ao oriente, o homem vive na tentativa de superar as tentações, e é no exemplo de Jesus que busca orientações de como proceder, como por exemplo em uma de suas máximas como: “Não só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus”, no entanto o homem é prepotente ao buscar o perfeccionismo expresso na figura de Jesus, o exemplo é correto, mas o homem conforme sua natureza ainda é muito primitivo, em seu instinto de sobrevivência ainda não aprendeu a conviver com os demônios internos, ainda precisa aprender a viver sem ter medo e a prepotência na negação as tentações sem que tenha vencido sua arrogância através da humildade em reconhecer sua falibilidade.
Fonte:
Ziedan, Youssef, 1958- Azazel; tradução Safa A-C Jubran. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Record, 2015