Por que não um ensaio Filosófico-Poético sobre um Verbo Irremediável: “Amor é Amar”
Para
ler ouvindo a música Sinônimos de Zé Ramalho:
https://www.youtube.com/watch?v=FUz0a2cl_RM
Dizem
que amar é verbo nobre, mas nunca disseram que é um verbo sem defesa. Amar é,
no fundo, consentir com o próprio desamparo. É sofrer de forma escolhida — e
eis a novidade: um sofrimento querido, quase desejado, aceito como quem aceita
uma ferida que não quer ver curada. Não há amor sem alguma fissura, como não há
casa antiga sem rachadura nas paredes. O amor, como as velhas moradias, guarda
o cheiro de seus próprios desabamentos.
Amar
não é paz. É um incêndio discreto que arde sem consumir — uma febre sem
remédio, uma fome que não passa porque o alimento é o próprio desejo. O amante
sofre porque quer — sofre porque ama; e não há jeito de separar um do outro sem
que ambos morram. O amor sem sofrimento é jardim de plástico: bonito de longe,
mas sem vida, sem cheiro, sem risco.
Quem
ama teme. Teme perder, teme não ser amado, teme ser demais, teme ser de menos.
Teme que o outro mude, que o tempo mude, que a própria alma mude. O amor é um
campo minado de suposições, esperanças, incertezas. Nenhum amor verdadeiro anda
de mãos dadas com a segurança — quem se sente seguro demais no amor já não ama,
apenas administra um contrato civil de convivência.
Amar
é sofrer porque o outro escapa. O outro nunca cabe inteiro no nosso abraço,
nunca é exatamente o que imaginamos. O amor real é sempre um pouco menor (ou
maior) que o amor sonhado. E é nessa fresta que mora o sofrimento: o amor é o
que falta, mesmo quando está presente. Como dizia Fernando Pessoa:
"Tudo
quanto o amor me dá
É
o que me faz falta nele..."
Sim,
o amor é falta. O outro é sempre inacessível em alguma parte — e é isso que nos
mantém vivos, desejantes, queimando de curiosidade pela alma alheia.
Mas
— e eis o que a filosofia nos sussurra — o sofrimento do amor não é fracasso, é
potência. Porque só quem ama de verdade se permite não controlar. Só quem ama
aceita a aventura de ser ferido e mesmo assim permanece. Amar é dizer ao mundo:
"estou disposto a perder". E nisso reside uma força mais rara que a
razão: a força de quem suporta o incerto.
Schopenhauer
via nisso uma armadilha da vida: amar seria cair no truque da natureza, que nos
obriga a sofrer para perpetuar a espécie. Um ciclo de desejo e dor do qual não
podemos escapar, meros joguetes da Vontade cega da vida. Mas talvez ele
estivesse cego para o outro lado do espelho: que sofrer por amor é a única dor
que nos torna mais vivos, não menos.
Nietzsche,
ao contrário, via no amor (especialmente no amor que sofre) uma promessa de
superação. Não um castigo, mas uma prova: quem ama intensamente é empurrado
para fora de si mesmo, para o perigo, para a vertigem — e só quem suporta isso
pode tornar-se criador de si. Para ele, o amor que dói é o mesmo que fortalece;
é um campo de batalha onde morre o velho eu e nasce o novo. Ele escreveu:
"Há
sempre um pouco de loucura no amor. Mas também há sempre um pouco de razão na
loucura."
Amar,
para Nietzsche, é desordem criativa — não morte, mas transformação.
No
fim, amar é sofrer, sim — mas é um sofrer que acorda, não que adormece. Um
sofrer que afia a alma, como quem passa a faca na pedra até que brilhe. Sofrer
de amor é a única dor que vale o preço, porque ao final dela descobrimos o mais
estranho dos milagres: que doendo, crescemos.
Fernando
Pessoa, com sua lucidez trágica, sabia disso. Em seus versos
dispersos, confessou:
"Amo
tudo o que foi,
Tudo
o que já não é,
A
dor que já me não dói,
A
antiga e errônea fé..."
Até
mesmo o amor sofrido vira saudade bela. Até a dor se recicla em ouro da
memória.
Por
isso, quem ama sofre. E quem foge do amor, sofre também — mas de um sofrimento
mais frio, mais inútil, mais seco. O sofrimento de quem não ousou. O sofrimento
de quem escolheu a paz dos que não viveram.
Talvez
o amor seja, afinal, a arte de escolher o sofrimento certo.
A
dor certa.
A
ferida nobre.
A
falta que nos salva.
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