Vou falar sobre suportar o insuportável...então, vamos refletir...
Tem
dias que a gente acorda e já sente um peso no peito, como se o ar fosse feito
de chumbo. Tudo parece demais: a reunião no trabalho, a conta que venceu, o
silêncio no quarto vazio. Às vezes nem é o que acontece fora, mas dentro. Uma
tristeza sem nome. Uma ausência que não se preenche. Uma saudade que lateja. E
a gente pensa: isso é insuportável. Mas é mesmo?
No
cotidiano, chamamos de insuportável aquele chefe que não escuta, o trânsito que
não anda, a fila que não anda, o filho que grita, a solidão que cala. O curioso
é que a palavra carrega em si o veredito: “não se pode suportar”. E mesmo
assim, seguimos. Chorando no banheiro, respirando fundo, contando até dez, às
vezes só sobrevivendo.
Mas
é no luto que o insuportável costuma se apresentar com toda a sua força. Quando
alguém que amamos parte, não é só a presença física que vai embora. É a rotina
que se quebra, o plano que não se cumpre, a palavra que não foi dita. Parece
que uma parte da gente foi arrancada. Porém, se olharmos com calma, há algo que
não se perde: a memória. E essa, ninguém tira de nós.
As
lembranças ficam. Permanecem nos gestos que herdamos, nas histórias que
contamos, no jeito de olhar que, de repente, lembramos que é igual ao dele ou
dela. Há uma presença que resiste à ausência, e ela vive na memória — esse
território inviolável do afeto. Como dizia a poetisa Adélia Prado, “o
que a memória ama, fica eterno”. O luto, então, não é perda completa. É
transformação de vínculo.
A
filosofia budista, especialmente nas palavras de Thich Nhat Hanh, nos
convida a olhar para o sofrimento não como algo que precisa ser eliminado a
todo custo, mas como uma oportunidade de despertar. Para ele, “o sofrimento
pode nos ensinar compaixão”, e mesmo a dor da perda contém sementes de
compreensão. A impermanência é uma das grandes verdades budistas — tudo muda,
tudo passa, inclusive o que achamos que jamais conseguiríamos suportar. E ainda
assim, algo essencial permanece: o amor que se torna lembrança, e a lembrança
que se torna guia.
Do
lado ocidental, além da força vital que Nietzsche vê no sofrimento — “aquilo
que não me mata, me fortalece” — encontramos em Kierkegaard um
mergulho mais fundo na angústia. Para ele, a angústia é a “tontura da
liberdade”. É aquele momento em que nos deparamos com o abismo das escolhas,
das perdas, da incerteza. E não há consolo imediato. Só o enfrentamento. A
angústia é, segundo ele, um sinal de que estamos vivos, conscientes, despertos
diante do peso da existência.
Kierkegaard
não oferece fuga — oferece profundidade. Suportar a angústia, para ele, é parte
do caminho para nos tornarmos autênticos. É ali, no silêncio do insuportável,
que o eu se forma. E talvez seja nesse mesmo silêncio que reconhecemos que não
estamos sós: os que amamos permanecem, de algum modo, dentro de nós. O
insuportável, por mais que doa, pode nos aproximar de quem verdadeiramente
somos.
Voltando
à vida comum: a vizinha que parece insuportável pode estar apenas descontando
no mundo a dor de uma perda que não contou pra ninguém. A criança birrenta no
mercado talvez só precise dormir. E a gente, quando acha que chegou ao limite,
ainda respira. Porque a verdade é que quase tudo que parece insuportável se
revela, com o tempo, apenas... difícil.
Difícil
não é o mesmo que impossível.
O
“aparentemente” da expressão é nossa salvação. Ele sugere que talvez, por trás
da aparência, haja uma possibilidade escondida. Uma brecha. Um futuro. Algo que
agora parece sufocar, mas amanhã pode até virar lembrança. E até — quem sabe —
sabedoria.
Talvez
o maior ato de coragem da vida não seja vencer o insuportável, mas simplesmente
suportar. Ficar. Respirar. Continuar. E lembrar — com todo o coração — que nada
nos tira o que foi vivido. E que a angústia, embora pesada, é sinal de que
ainda há caminho.
Nenhum comentário:
Postar um comentário