“Quem é você quando ninguém está olhando?”
Aqui
vamos trabalhar num ensaio sobre o manejo da impressão e os palcos da vida
cotidiana
Você
já parou para pensar que, na vida, somos todos atores? Não do tipo que sobe ao
palco com aplausos — mas daqueles que atuam em reuniões, em jantares de
família, no elevador com o vizinho, até mesmo no grupo do WhatsApp. Às vezes o
papel exige bom humor, outras vezes impaciência contida, e, com frequência, um
certo esforço para parecer que estamos bem, mesmo quando não estamos. Nesse
grande teatro da vida, o sociólogo Erving Goffman (1922-1982) acende as luzes
do palco e revela uma verdade incômoda: não somos um “eu”, somos muitos.
No
livro A Representação do Eu na Vida Cotidiana, Goffman apresenta a ideia
de que o “eu” que mostramos é fruto de uma performance cuidadosamente gerida —
o que ele chama de manejo da impressão. Mas e se formos além? E se esse
manejo não for apenas uma adaptação ao social, mas também um modo de
sobrevivência filosófica em um mundo que exige máscaras como forma de
reconhecimento?
A
sociedade como plateia ansiosa
Cada
encontro social nos pede um papel. Não um papel escrito por nós, mas
roteirizado pelas expectativas alheias. O funcionário precisa parecer produtivo
mesmo nos dias de cansaço; o estudante simula interesse diante de um conteúdo
que não compreende; a mãe que esconde o choro para sorrir ao filho. Não é
mentira. É um acordo tácito: se você performar o suficiente, será aceito.
O
manejo da impressão, nesse sentido, não é apenas controle de imagem — é negociação
simbólica de pertencimento. A sociedade não quer apenas ver o “eu
verdadeiro”; ela deseja ver o que reconhece como normal, funcional e
confortável. Assim, ajustamos os gestos, os silêncios, os emojis.
O
eu como ficção em construção
Se
o mundo é um palco, o “eu” que mostramos é um personagem. Mas seria esse
personagem uma farsa? Talvez não. A filosofia contemporânea já não acredita
tanto em essências fixas. Para pensadores como Judith Butler, o sujeito se
constrói performativamente — ou seja, ele é o que faz repetidamente. E
se Goffman nos mostrou o teatro social, Butler revela que essa atuação não é
uma máscara sobre um rosto verdadeiro, mas o próprio rosto se formando com cada
papel que representamos.
O
eu, então, seria uma espécie de remix constante entre o que sentimos e o que o
outro exige que mostremos. Um mosaico de pequenos “eus” que se ajustam conforme
o palco muda — do metrô à sala de jantar, do encontro romântico ao boletim
médico.
O
bastidor como espaço de reconciliação
Nos
bastidores, longe do público, caem as máscaras — ou pelo menos, trocam-se por
outras. Mas será que ainda existe um “eu autêntico” nesse lugar escondido?
Goffman não responde com clareza, mas nos convida a pensar que mesmo nos
bastidores há performance, ainda que mais relaxada. A solidão, o espelho, o
travesseiro à noite — são também palcos, embora com luzes mais suaves.
Contudo,
é nesse momento íntimo que talvez surja a chance de uma autoescuta. De pensar: “será
que me tornei aquilo que performei por tanto tempo?” A pergunta não é
retórica. A vida tem o poder de nos transformar pelas repetições que aceitamos.
É o risco da performance: virar o papel que foi criado para agradar o outro.
Viver
é atuar — mas com consciência
Não
há como viver fora do teatro social. Somos seres em relação, e isso exige
ajustes, cortes, improvisos. Mas o perigo não está em representar. O risco mora
na inconsciência do papel. Quando esquecemos que estamos atuando,
entregamos o volante da nossa identidade a uma plateia que nem sempre aplaude
com justiça.
Por
isso, o manejo da impressão, mais do que uma técnica social, deve ser também
uma ferramenta filosófica de autoconhecimento. Reconhecer o personagem
que estamos sendo, entender por que o escolhemos, e nos perguntar, vez ou
outra: quem seríamos se o palco estivesse vazio?
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