Agora vamos fazer uma jornada de reflexão, vamos falar o sobre o esvaziamento do comportamento humano...
Há
dias em que as coisas não parecem erradas, mas… tortas. Não é um crime, mas
algo parece fora do eixo. Um bom dia que soa automático, um abraço dado sem
corpo, uma indignação que parece moda e não sentimento. A gente sente que algo
mudou. E mudou mesmo. Não só os hábitos, mas o modo como sentimos e
interpretamos esses hábitos. Como se os gestos humanos tivessem sido
corrompidos não por maldade, mas por um certo esvaziamento interior. Estamos,
aos poucos, sendo corrompidos de sentido.
A
corrupção de sentido é mais sutil que a mentira. Ela não grita, não se impõe.
Ela vai acontecendo pelas bordas, no excesso de repetição, na transformação do
necessário em performance. O comportamento humano, nesse cenário, passa a
simular o que antes nascia do íntimo: empatia, cuidado, respeito, verdade.
O
filósofo sul-coreano Byung-Chul Han observa, em obras como A
sociedade do cansaço e A expulsão do outro, que vivemos numa era em
que o excesso de positividade e a busca constante por desempenho destroem os
vínculos mais humanos. Não há mais espaço para o outro real, com sua lentidão,
suas contradições. No lugar disso, surgem comportamentos estéticos, calculados,
que imitam a empatia sem senti-la. Sorrir virou protocolo. Escutar virou tempo
perdido. Cuidar do outro virou conteúdo para postagem.
A
tecnologia, por sua vez, surgiu como extensão da inteligência e da criatividade
humana — um instrumento para aliviar tarefas, expandir possibilidades e
conectar pessoas. No entanto, quando utilizada sem sabedoria, ela deixa de ser
ferramenta e passa a ser modelo. Em vez de servir ao humano, o humano começa a
imitá-la. Tornamo-nos eficientes como algoritmos, previsíveis como linhas de
código, otimizados como máquinas — e, nesse processo, nossos comportamentos
também se automatizam. O gesto perde intenção, o olhar perde pausa, a fala
perde silêncio. Como alertou o filósofo Günther Anders, ao refletir
sobre a obsolescência do homem, há um risco real de sermos substituídos não
pelas máquinas em si, mas pela forma como passamos a viver como elas. A
tecnologia não corrompe por si só — mas, quando usada como substituto da
relação, da reflexão e da presença, ela acelera a corrosão do sentido humano.
Nietzsche,
já no século XIX, alertava sobre o perigo de viver entre máscaras. No Crepúsculo
dos Ídolos, ele dizia que "todo hábito torna a mão mais espirituosa, e
o espírito mais preguiçoso". Aplicando isso ao comportamento, podemos
dizer que repetir gestos sem consciência nos afasta do sentido real das coisas.
Tornamo-nos habilidosos em parecer humanos, sem saber mais o que isso
significa.
Mas
não é só crítica. Também é diagnóstico. Estamos, talvez, num momento de
reinvenção do comportamento. Um cansaço profundo das simulações parece se
anunciar em vozes novas. A filósofa brasileira Viviane Mosé aponta para
a urgência de uma ética sensível, em que o corpo, o afeto e a escuta sejam
reconectados à linguagem. Para ela, a palavra só tem força quando está ligada à
experiência real. Senão, é ruído.
O
desafio, então, não é só individual, mas coletivo. Não basta buscarmos o
"ser verdadeiro" como um ideal pessoal — é preciso cultivar espaços
onde a verdade possa sobreviver. Onde o abraço não precise ser filmado, onde o
silêncio não seja constrangimento, onde o cuidado não precise de like. Onde o
comportamento humano recupere, devagar, o seu conteúdo.
Ser
corrompido de sentido não é um destino. É uma condição. E condições podem ser
enfrentadas.
Talvez
o caminho seja pequeno: reaprender o gesto. Reencantar a palavra. Refazer o
contato. Não com pressa, mas com presença.
Porque
o que está corrompido ainda pode ser restaurado — não com verniz, mas com alma.
Nenhum comentário:
Postar um comentário