Antes de tudo: o que acontece nesse livro?
O
livro que falarei é nada menos que o fantástico “A Montanha Mágica” de Thomas
Mann, o autor nos leva a reflexões fundamentais, então vamos lá sem mais
delongas.
Em
resumo: Hans Castorp é um jovem engenheiro alemão que sobe uma montanha nos
Alpes suíços para visitar o primo internado num sanatório para tuberculosos. A
ideia era passar três semanas. Ele acaba ficando sete anos.
Nesse tempo, convive com personagens que representam ideologias e visões de
mundo muito distintas — do racionalismo humanista ao misticismo religioso,
passando pelo hedonismo vitalista. A montanha, isolada do mundo, vira palco de
reflexões profundas sobre o tempo, a doença, a vida, a morte e o próprio
sentido da existência.
No
topo do mundo, o tempo para
Às
vezes, tudo que a gente precisa é de um pretexto para parar. Uma gripe, um pneu
furado, uma viagem cancelada. São nesses pequenos intervalos forçados que a
vida parece abrir uma fresta. Agora imagine que esse intervalo não dure uma
tarde, mas sete anos. E que, em vez de voltar à rotina, você permaneça num
lugar onde o tempo se dilui, as palavras pesam e cada tosse carrega uma
metáfora. Isso é A Montanha Mágica. Um livro que parece mais uma febre
do pensamento do que uma narrativa. Um sanatório que não cura, mas revela.
No
alto daquela montanha, Thomas Mann faz mais do que isolar seu protagonista do
mundo: ele suspende a própria gravidade do tempo. Hans Castorp sobe para
visitar um primo e acaba, sem perceber, mergulhando num laboratório existencial
onde o que está em jogo não é a cura, mas o sentido da vida — e da morte. A
montanha não é um retiro; é um espelho.
Tempo:
o delírio da cronologia
A
primeira provocação filosófica da obra é o tempo. Mann escancara o quanto somos
reféns do relógio como uma ficção coletiva. Ao esticar os dias de Hans até que
se tornem anos quase imperceptíveis, ele sugere algo radical: o tempo
psicológico molda mais a experiência do que o tempo cronológico. O tédio, a
repetição, o convívio constante com a doença transformam minutos em eternidades
e meses em um breve bocejo.
A
montanha é mágica porque dissolve a contagem do tempo em vivência. Ali, a
percepção se alonga e contrai como um pulmão em crise. A doença não paralisa
apenas o corpo; ela relativiza a ideia de progresso. Ao sair da montanha, Hans
já não é mais o mesmo — não porque se curou, mas porque deixou de crer na
linearidade da vida.
A
doença como método
Neste
sanatório elegante, a tuberculose funciona como um catalisador filosófico. Não
é a morte iminente que assombra, mas a possibilidade de enxergar, no limite do
corpo, o que estava adormecido na alma. Cada personagem representa um sistema
de ideias: Settembrini, o humanismo iluminista; Naphta, o fanatismo místico;
Peeperkorn, a embriaguez vital. E Hans, o espectador curioso que vai se
deformando por dentro até se tornar outro.
É
aqui que Mann insinua um pensamento ousado: talvez a doença seja um instrumento
de formação. Não no sentido romântico de que "o sofrimento ensina",
mas como deslocamento radical do sujeito para fora das zonas onde o pensamento
é confortável. Na montanha, o pensamento adoece para se reinventar.
A
montanha como antipedagogia
Se
A Montanha Mágica é um romance de formação, é um Bildungsroman às
avessas. Em vez de sair da ignorância rumo à maturidade, Hans afunda nas
contradições, nos discursos e nas ambiguidades. A montanha não ensina — ela
desafia. Não oferece respostas — apenas vozes divergentes. E é justamente nesse
ruído que o personagem vai sendo formado, como se a verdade estivesse sempre
nas entrelinhas das ideologias.
É
uma antipedagogia do abismo. A experiência de Hans Castorp nos lembra que
amadurecer pode significar perder certezas em vez de acumulá-las. É uma
formação pela desintegração.
Filosofia
da suspensão
Podemos
ler o livro como um manifesto a favor da suspensão do ritmo. Em um mundo que
valoriza a produtividade, a pressa e o fazer, Mann propõe o contrário: parar,
observar, tossir, ouvir. Ele antecipa, sem o saber, o espírito de algo como uma
"slow philosophy", uma ética da pausa.
Estar
doente na montanha é uma metáfora radical para o que a filosofia sempre foi: um
estado de exceção em que a vida se interroga a si mesma. E talvez por isso o
retorno de Hans à planície — ao “mundo real” — nos pareça tão abrupto quanto um
despertar depois de um sonho que não terminou.
E
aí, descer ou permanecer?
A
pergunta que fica ao fim da leitura é: será que podemos descer da montanha? E,
se descermos, quem seremos?
Thomas
Mann não responde, e isso é o mais interessante. Porque talvez a montanha
mágica não seja um lugar, mas um estado da consciência. E mesmo em meio à
correria dos dias, há momentos em que a doença, o tédio, a dúvida — ou mesmo um
bom livro — nos levam de volta àquele lugar suspenso, onde o tempo escorre
devagar e o pensamento respira com dificuldade.
E
então, mesmo sem febre, tossimos uma pergunta: em que mundo eu realmente habito
— na planície da ação ou no cume da reflexão?
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