Entre o Instante e a Medida
Tem
dias em que a gente escolhe calar na hora certa. Ou então diz a palavra exata
que muda o rumo de uma conversa inteira. Ninguém ensina isso. Não vem no manual
da vida adulta, nem no tutorial das redes sociais, nem no Código Civil. É uma
percepção fina — como quando alguém sabe exatamente quando levantar da mesa,
sem ser cedo demais nem tarde demais. Isso é a noção do apropriado: um saber
que flutua entre o instinto e a medida, entre o corpo e o pensamento, entre o
mundo e o instante.
Mas
o que é, afinal, o “apropriado”? Não é o mesmo que o “correto” — que segue
regra fixa, código, cartilha. Nem é o “conveniente”, que serve a um interesse
esperto. O apropriado é mais sutil. Ele se move como um peixe sob a água: não
se vê direito, mas percebe-se pela leveza da resistência. Apropriado é o gesto
que cabe no espaço do instante. Como aquele olhar que diz mais que um discurso
inteiro.
Num
casamento, por exemplo, é apropriado que os noivos sorriam — mas se choram
discretamente de emoção, ninguém acha errado. Pelo contrário: parece mais
verdadeiro. Numa aula, é apropriado perguntar ao professor — mas há momentos em
que é mais sábio calar e pensar sozinho. O apropriado não mora na regra; mora
no ritmo secreto das situações.
Aristóteles
já dizia que a virtude é o meio-termo entre dois excessos. Mas o meio-termo não
é um ponto fixo: ele oscila conforme o vento do instante. É nesse espaço que
brota a noção do apropriado — como um cálculo rápido, quase instintivo, do que
convém àquele recorte de tempo e lugar. Um aluno pergunta demais na aula: é
curioso ou inconveniente? Depende do dia, da paciência do professor, do cansaço
da turma. O apropriado nunca é matemático; é sempre dramático.
O
filósofo japonês Kitarō Nishida escreveu que a verdadeira ação surge da
"intuição do campo puro da experiência". Uma percepção direta, sem
intermediários, daquilo que o momento exige. Talvez a noção do apropriado seja
isso: uma habilidade que se aprende vivendo, errando, escutando o não-dito das
coisas. Não dá para ensinar no papel; ensina-se no olhar trocado, na pausa
inesperada.
Quem
entendeu bem esse jogo foi Confúcio. Na China do século V a.C., ele
dizia que o homem nobre (junzi) é aquele que sabe a hora certa de tudo: do
sorriso, da fala, do gesto. Nem antes, nem depois. Para ele, a ética não era
uma coleção de proibições, mas uma arte da adequação. A virtude estava na
harmonia do momento com a ação. Para Confúcio, até o luto tinha tempo certo:
três anos de tristeza pública eram apropriados para um filho que perde o pai.
Mais do que isso, virava peso para os vivos; menos do que isso, parecia
indiferença. O tempo — veja só — também entra na noção do apropriado.
Já
na filosofia ocidental, Henri Bergson falava da importância do “instante
criador” — um momento em que a consciência escapa das repetições automáticas e
capta o novo que brota do real. O apropriado, talvez, seja isso: uma
interrupção criativa na rotina, um lampejo de adequação viva. Não é obedecer
cegamente uma norma, mas inventar uma solução justa para um problema único.
A
história está cheia de cenas em que o apropriado salvou o dia — ou o perdeu. Alexandre,
o Grande, ao cortar o nó górdio com a espada, desafiou o costume de desatar
pacientemente o nó, como exigiam os ritos locais. Foi apropriado? Para os
gregos, sim: trouxe uma solução genial para o impasse e reforçou sua imagem de
herói invencível. Para os frígios, talvez não — violou um símbolo religioso. O
apropriado, veja bem, também depende do ponto de vista cultural.
Há
também o caso célebre de Sócrates, que se recusou a fugir da prisão
mesmo tendo chance. Para ele, era apropriado aceitar a condenação injusta e
morrer de acordo com suas ideias. Para seus amigos desesperados, seria
apropriado escapar e continuar ensinando. Quem estava certo? Depende de que
tipo de adequação se busca: à cidade ou à consciência?
Na
vida comum, esse dilema aparece quando escolhemos entre dizer a verdade dura a
um amigo ou calar por compaixão. O que é mais apropriado: o real ou o delicado?
Não há resposta fixa. O instante é o juiz.
Mas
o mundo moderno, ansioso e acelerado, parece perder essa medida. Como disse o
filósofo brasileiro Vladimir Safatle, vivemos tempos em que as emoções e
expressões públicas viraram espetáculo — e o apropriado se confunde com o que
“pega bem” na rede social. O resultado? O gesto perde seu frescor, vira pose. A
noção do apropriado — aquela velha dança do instante — se transforma em cálculo
cínico.
Por
outro lado, também há os sem-noção — gente que ignora o apropriado e diz tudo,
faz tudo, sem filtro, como se o mundo fosse uma lousa em branco para seu
espetáculo pessoal. Mas esses não entendem que o apropriado não é limitação: é
arte. A arte de dar forma ao instante.
Talvez
a noção do apropriado seja o que nos salva da brutalidade e da rigidez. Ela é
uma ética silenciosa, que não se escreve nos códigos da lei nem nos manuais de
conduta, mas se manifesta no sorriso justo, no comentário bem medido, no
silêncio necessário. É a sabedoria do instante — mais velha que a filosofia,
mais viva que qualquer doutrina.
No
fundo, é uma dança entre o eu e o mundo. Dança que ninguém ensina, mas que todo
mundo pressente.
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