O que fizemos de errado antes mesmo de nascer?
Parece
injusto carregar uma culpa que não foi escolhida. Como se nascêssemos devendo
algo. Como se a vida, em seu primeiro fôlego, já nos colocasse sob suspeita.
Estamos falando do chamado pecado original — esse conceito antigo,
estranho, e ainda hoje ressoante, que diz que herdamos de Adão e Eva, lá no
Éden, uma falha moral de fábrica. Mas e se olhássemos para isso de outro jeito?
E se essa culpa não fosse um castigo, mas um modo simbólico de nos contar algo
profundo sobre a condição humana?
Herança
sem testamento
Na
tradição cristã, o pecado original nasce com a desobediência: comer o fruto
proibido, desafiar a ordem divina. Mas o problema não é só o ato, é o que ele
revela: o desejo de conhecer, escolher, experimentar. Não é estranho que o
primeiro erro tenha sido querer saber mais? O pecado, então, não seria um
acidente, mas uma revelação: o humano é, por natureza, um ser inquieto. E
talvez o pecado original seja isso — não um erro cometido, mas uma vocação
inevitável para o excesso, o risco, o desvio.
Não
escolhemos ser assim, apenas somos. Como dizia Agostinho, “em Adão todos
pecaram” — o que soa como uma condenação universal, mas também como um retrato
da fragilidade que nos une. Não é apenas um castigo: é a lembrança de que somos
falhos, e talvez por isso tão humanos.
Um
mito sobre a liberdade
Se
tirarmos a linguagem religiosa e ficarmos com a estrutura simbólica, o pecado
original pode ser lido como o nascimento da liberdade. Adão e Eva não erram
porque são maus, mas porque são livres. A serpente, o fruto, o ato de comer —
tudo isso compõe uma cena inaugural de escolha. Um universo sem pecado original
seria um mundo de bonecos obedientes, de seres sem conflito. Seria, talvez, um
jardim sem humanidade.
A
expulsão do paraíso é, então, a entrada na realidade. O Éden é infância,
segurança, ilusão de harmonia. Fora dele, encontramos a vida: o trabalho, o
sofrimento, o tempo, a morte — e também o amor, a ética, a construção de
sentido. Ser lançado no mundo, como diria Heidegger, é existir em angústia, mas
também em possibilidade.
A
culpa como condição
O
psicanalista Jacques Lacan observava que a culpa não nasce apenas do que
fazemos, mas do próprio fato de desejar. Desejar é se comprometer com a falta,
com aquilo que não temos e que nos move. Nesse sentido, o pecado original seria
o símbolo do desejo que funda o sujeito. Não desejamos por sermos culpados.
Somos culpados porque desejamos. A culpa original é a sombra da liberdade:
aparece assim que escolhemos ser alguém.
E
se não for culpa, mas ponto de partida?
Talvez
devêssemos deixar de ver o pecado original como uma dívida e passar a vê-lo
como um reconhecimento: de que ninguém começa do zero, de que a
existência já vem atravessada por histórias que não escolhemos, de que o mundo
nos molda antes mesmo de sabermos quem somos. É injusto? Sim. Mas é também uma
chance de compreender que crescer é lidar com o que herdamos — não apenas
genes, mas dores, pesos, narrativas.
O
filósofo brasileiro Rubem Alves dizia que “o paraíso não é lugar onde
não há dor, mas onde a dor faz sentido”. Talvez o pecado original, longe de ser
um erro isolado no passado, seja uma metáfora para nossa condição atual: a de
quem vive entre a queda e o salto, entre o erro e a reconstrução.
O
pecado original pode não ser literal. Mas é real no sentido em que todos nós,
de algum modo, nascemos num mundo que já nos antecede, com suas regras, seus
limites, suas faltas. A questão nunca foi evitar o pecado, mas descobrir o que
fazemos com ele. Afinal, se não podemos apagar a mancha, talvez possamos
transformá-la em arte.
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