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sexta-feira, 6 de junho de 2025

Pecado Original

O que fizemos de errado antes mesmo de nascer?

Parece injusto carregar uma culpa que não foi escolhida. Como se nascêssemos devendo algo. Como se a vida, em seu primeiro fôlego, já nos colocasse sob suspeita. Estamos falando do chamado pecado original — esse conceito antigo, estranho, e ainda hoje ressoante, que diz que herdamos de Adão e Eva, lá no Éden, uma falha moral de fábrica. Mas e se olhássemos para isso de outro jeito? E se essa culpa não fosse um castigo, mas um modo simbólico de nos contar algo profundo sobre a condição humana?

Herança sem testamento

Na tradição cristã, o pecado original nasce com a desobediência: comer o fruto proibido, desafiar a ordem divina. Mas o problema não é só o ato, é o que ele revela: o desejo de conhecer, escolher, experimentar. Não é estranho que o primeiro erro tenha sido querer saber mais? O pecado, então, não seria um acidente, mas uma revelação: o humano é, por natureza, um ser inquieto. E talvez o pecado original seja isso — não um erro cometido, mas uma vocação inevitável para o excesso, o risco, o desvio.

Não escolhemos ser assim, apenas somos. Como dizia Agostinho, “em Adão todos pecaram” — o que soa como uma condenação universal, mas também como um retrato da fragilidade que nos une. Não é apenas um castigo: é a lembrança de que somos falhos, e talvez por isso tão humanos.

Um mito sobre a liberdade

Se tirarmos a linguagem religiosa e ficarmos com a estrutura simbólica, o pecado original pode ser lido como o nascimento da liberdade. Adão e Eva não erram porque são maus, mas porque são livres. A serpente, o fruto, o ato de comer — tudo isso compõe uma cena inaugural de escolha. Um universo sem pecado original seria um mundo de bonecos obedientes, de seres sem conflito. Seria, talvez, um jardim sem humanidade.

A expulsão do paraíso é, então, a entrada na realidade. O Éden é infância, segurança, ilusão de harmonia. Fora dele, encontramos a vida: o trabalho, o sofrimento, o tempo, a morte — e também o amor, a ética, a construção de sentido. Ser lançado no mundo, como diria Heidegger, é existir em angústia, mas também em possibilidade.

A culpa como condição

O psicanalista Jacques Lacan observava que a culpa não nasce apenas do que fazemos, mas do próprio fato de desejar. Desejar é se comprometer com a falta, com aquilo que não temos e que nos move. Nesse sentido, o pecado original seria o símbolo do desejo que funda o sujeito. Não desejamos por sermos culpados. Somos culpados porque desejamos. A culpa original é a sombra da liberdade: aparece assim que escolhemos ser alguém.

E se não for culpa, mas ponto de partida?

Talvez devêssemos deixar de ver o pecado original como uma dívida e passar a vê-lo como um reconhecimento: de que ninguém começa do zero, de que a existência já vem atravessada por histórias que não escolhemos, de que o mundo nos molda antes mesmo de sabermos quem somos. É injusto? Sim. Mas é também uma chance de compreender que crescer é lidar com o que herdamos — não apenas genes, mas dores, pesos, narrativas.

O filósofo brasileiro Rubem Alves dizia que “o paraíso não é lugar onde não há dor, mas onde a dor faz sentido”. Talvez o pecado original, longe de ser um erro isolado no passado, seja uma metáfora para nossa condição atual: a de quem vive entre a queda e o salto, entre o erro e a reconstrução.

O pecado original pode não ser literal. Mas é real no sentido em que todos nós, de algum modo, nascemos num mundo que já nos antecede, com suas regras, seus limites, suas faltas. A questão nunca foi evitar o pecado, mas descobrir o que fazemos com ele. Afinal, se não podemos apagar a mancha, talvez possamos transformá-la em arte.


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