Outro dia, num intervalo qualquer, alguém comentou: “tá tudo tão vago ultimamente”. Ninguém respondeu, mas todos pareceram entender. A frase ficou flutuando no ar como fumaça de cigarro em sala fechada — sem forma, sem pressa, incômoda e, ao mesmo tempo, estranhamente familiar.
A
vaguidão virou paisagem.
As
mensagens não dizem nada, mas estão cheias de palavras. Os compromissos não se
sustentam, mas continuam agendados. As certezas andam frágeis, como cadeiras de
plástico ao sol. Vivemos uma época em que o mundo ainda está aqui, mas a
nitidez dele parece ter sido desligada, como quando o óculos embaça ou o farol
do carro apaga num túnel.
Mas
afinal, o que é esse vago que paira sobre tudo?
O
vago como forma de sobrevivência
Viver
com tudo muito claro pode doer. Por isso, o vago pode ser um escudo. Quando
dizemos que “tá tudo meio estranho”, adiamos um enfrentamento. “Meio estranho”
é menos agressivo do que “insuportável”. “Meio cansado” protege da vergonha de
admitir que estamos exaustos de viver assim.
Há
uma política do vago nas relações humanas: diz-se “vamos marcar algo” no lugar
de dizer “não quero mais te ver”. Diz-se “tá em aberto” quando, na verdade, não
se quer decidir nada. Vaguidão vira uma estratégia de convivência social, como
se manter as coisas sem foco evitasse conflitos — e talvez evite mesmo.
Há
quem diga que prefere tudo claro, mas some quando o WhatsApp mostra dois tiques
azuis. Essa é a geração do “vamos conversar” que na prática se resume a “me
deixa em paz, mas me elogia de longe”.
Vaguidão
e excesso
O
mundo contemporâneo está cheio de tudo: de informações, de imagens, de vozes,
de convites, de cobranças. Quando tudo é demais, nada se fixa. A mente se
enche, mas não se nutre. O resultado é esse cansaço flutuante, essa apatia
educada, essa sensação de estarmos sempre por um fio sem saber qual.
A
vaguidão não é ausência. É excesso mal digerido.
Poeticamente
falando, somos folhas ao vento. Ironicamente falando, somos planilhas com
burnout.
Vivemos
entre notificações e devaneios. Queremos férias espirituais, mas o máximo que
conseguimos é ativar o “modo avião” por dez minutos — até bater a culpa de não
responder ao grupo da firma.
Filosofia
do vago: o que nos escapa também é real
O
filósofo francês Maurice Merleau-Ponty falava da “ambiguidade essencial da
experiência”. Para ele, o mundo nunca nos é dado totalmente, e a consciência
está sempre num jogo de revelar e esconder. Nesse sentido, o vago não é erro, é
condição. Ver claramente tudo seria uma ilusão. O que escapa, o que não se
define, o que não se encaixa — isso também faz parte da realidade.
Quando
sentimos que “tá tudo vago”, talvez seja um chamado da alma pedindo por um
tempo mais lento, por menos respostas prontas, por pausas que nos devolvam à
pergunta.
Mas
vai explicar isso para o chefe que quer clareza no e-mail até quando você só
queria dizer: “não sei se quero continuar nesse cargo ou fugir para Minas e
virar ceramista.”
O
risco do vago como vício
Mas
há um risco. Quando o vago vira hábito, perde-se o compromisso com o real.
Começamos a viver como quem assiste a um filme com o brilho do celular ligado —
estamos ali, mas não estamos. Evitamos o incômodo de decidir, de nomear, de
assumir. E aos poucos, vamos deixando de ser protagonistas da própria vida.
O
vago pode proteger, mas também pode anestesiar.
Numa
era de escolhas infinitas, a maior ousadia é escolher algo de fato. É preciso
coragem pra dizer "é isso", quando a moda é dizer "depende"
e passar o dia escolhendo entre delivery japonês, pizza vegana ou um jejum
existencial.
Da
névoa à forma
Nem
tudo precisa ser nítido. Há beleza no indeterminado, no que ainda está por
nascer. Mas talvez seja preciso reaprender a conviver com o vago não como fuga,
e sim como passagem.
Como
quem entra num nevoeiro e, em vez de parar, segue com passos firmes, sabendo
que mesmo sem ver muito, ainda caminha.
E
se a vida parecer muito vã, muito vaga, muito líquida — que ao menos seja um
café bem passado. Porque viver mal já basta, mas viver sem aroma é demais.
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