Vamos refletir sobre consciência e invenção de si
A
gente costuma pensar que primeiro se pensa, depois se fala. Como se as palavras
fossem meros mensageiros de um conteúdo pronto, esperando pacientemente para
ser dito. Mas, e se for o contrário? E se a fala for, ela mesma, o que nos
permite pensar? Aquela conversa no banho, o desabafo com um amigo, até mesmo o
murmúrio no trânsito – seriam momentos em que a linguagem constrói a
consciência, e não o contrário?
Essa
ideia, embora pareça surpreendente, já vinha sendo intuída por alguns
pensadores e hoje é retomada por estudos contemporâneos de neurociência e
linguística. Neste ensaio, vamos explorar essa inversão provocadora: o sujeito
pensa porque fala. A fala não apenas expressa o pensamento – ela o inventa, o
organiza, o edita. E mais: ao falar, criamos a nós mesmos.
O
pensamento nu não existe
Imagine
um bebê que ainda não fala. Seus gestos e emoções são vivos, intensos, mas sua
capacidade de pensar sobre o que sente é limitada. É só quando ele começa a
adquirir palavras que consegue distinguir o medo da fome, o desejo da dor. O
filósofo Vygotsky já dizia que o pensamento e a linguagem se desenvolvem em um
entrelaçamento mútuo. O pensamento é uma névoa até que a palavra o condense.
A
neurociência contemporânea reforça essa visão: regiões do cérebro relacionadas
à linguagem (como a área de Broca e de Wernicke) estão intimamente conectadas
com redes de atenção, memória e planejamento. Falar é como esculpir o que
estava apenas esboçado em sensação. Pensamos melhor quando escrevemos, quando
conversamos, quando argumentamos. O silêncio pode ser fértil, mas é quase
sempre a palavra que transforma intuição em ideia.
Falar
como forma de se tornar
Cada
vez que contamos algo de nós mesmos a alguém, organizamos a narrativa da nossa
identidade. Não se trata apenas de informar. Estamos, ali, construindo sentido.
“Naquela época eu era muito impulsivo” – ao dizer isso, estamos não só
refletindo sobre o passado, mas nos diferenciando dele, assumindo um novo lugar
no tempo. A linguagem verbaliza a mudança interior.
A
filósofa Hannah Arendt dizia que a ação só se torna política quando é
acompanhada da fala. O ser humano se revela ao mundo pelo que diz, mais do que
pelo que pensa. Assim, o dizer é um ato de criação subjetiva. Falando, nos
tornamos visíveis – e, ao nos ouvirmos falar, também nos vemos.
Linguagem
como ferramenta inventiva
A
estrutura da linguagem molda a estrutura do pensamento. Idiomas diferentes
oferecem visões de mundo distintas. Para os esquimós, existem muitas palavras
para “neve”. Para alguns povos indígenas da Amazônia, o tempo não é dividido em
passado, presente e futuro. A forma como se fala determina o que se pode
pensar.
No
cotidiano, isso aparece quando buscamos uma palavra exata para nomear o que
sentimos – e, só quando a encontramos, conseguimos agir. O mal-estar vira
“ciúme”, ou “angústia”, ou “pressentimento”. Dar nome é mapear o território
interno. Wittgenstein já dizia: “os limites da minha linguagem são os limites
do meu mundo.”
Pensar
com a boca
Existe
uma sabedoria na fala espontânea. Às vezes, a gente só entende o que pensa
quando começa a explicar. Isso é comum em sessões de terapia, aulas, ou mesmo
numa conversa de bar. O pensamento se desdobra conforme a fala se articula.
Como se a mente esperasse a boca para ter coragem de se revelar.
Numa
perspectiva neurolinguística, esse processo envolve uma retroalimentação entre
as zonas cerebrais responsáveis pela formulação verbal e aquelas que coordenam
emoções, memória e juízo. O que dizemos influencia o que sentimos, e o que
sentimos influencia o que conseguimos dizer. Um circuito vivo.
A
fala é o útero do pensamento
Ao
contrário do que se pensa, a fala não é filha do pensamento – é sua mãe. Sem
linguagem, o pensamento se esvai em intuições fugidias. Com a linguagem, ele
ganha corpo, história, direção. Pensamos porque falamos, e falamos para nos
tornar.
Talvez
por isso conversar seja tão essencial à saúde mental. Ou por isso, quando
estamos confusos, dizemos: “preciso botar pra fora.” Ao falar, damos forma ao
informe. Ao ouvir a nós mesmos, nos compreendemos melhor. A linguagem é, no
fundo, um espelho falante – e talvez seja nela que finalmente nos encontramos.
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