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segunda-feira, 23 de junho de 2025

Deus e Meritocracia

Deus e a meritocracia são como dois vizinhos desconfiados que mal se encaram na esquina. A meritocracia diz: “Quem se esforça, merece; quem merece, recebe”. Deus — ao menos no modo como aparece nas Escrituras — parece sorrir e responder: “Nem sempre.” E é justamente aqui que começa o desconcerto.

No mundo moderno, adoramos a ideia da grande planilha moral: quem estuda mais, sobe na vida; quem se dedica, colhe frutos; quem dorme no ponto, perde. Parece justo. Só que a realidade desmente essa lógica todos os dias: o herdeiro preguiçoso prospera; o gênio pobre nunca é descoberto; o trabalhador honesto morre na praia. A vida real tem mais a ver com mistério do que com Excel.

Mesmo a tradição cristã valoriza o esforço humano. Existe o velho conselho popular — “Ajuda-te que o céu te ajudará” — que ecoa em provérbios bíblicos. Não dá para esperar milagres deitado na rede. O próprio filho pródigo, antes de ser perdoado, precisou levantar-se da lama e dar os primeiros passos de volta para casa. Deus gosta dos que caminham — mesmo trôpegos — mais do que dos que esperam imóveis.

Mas o esforço, por si só, não garante recompensa. Aqui Deus e a meritocracia moderna se separam de vez. E Jesus contou uma parábola desconcertante que mostra isso: a dos trabalhadores da vinha (Mateus 20:1-16).

Nessa história estranha, o dono da vinha contrata trabalhadores ao longo do dia: uns logo cedo, outros ao meio-dia, outros quase no fim da tarde. No final, paga o mesmo salário a todos. Revolta geral dos que suaram desde o amanhecer: "Mas nós trabalhamos mais! Merecemos mais!" O patrão responde: “Amigo, não estou te fazendo injustiça. Não combinamos este valor? Ou você está com inveja porque eu sou bom?”

Qual o sentido disso?

Jesus desmonta a lógica meritocrática humana. No Reino de Deus, o valor não é dado pela quantidade de horas trabalhadas ou pelo mérito acumulado, mas pela generosidade do Senhor. O dom de Deus — a graça, a vida, o Reino — não se calcula como salário. Não é troca, é dádiva.

Santo Agostinho entendeu isso de modo profundo quando escreveu: “Deus coroa em nós os seus próprios dons” (Enarrationes in Psalmos). Ou seja: até aquilo que julgamos mérito nosso, na verdade, é graça d’Ele agindo em nós. Se eu fui chamado cedo ou tarde, se trabalhei muito ou pouco, tudo já é obra da misericórdia divina. No fundo, nem mesmo o querer fazer o bem nasce só de nós — já é um presente.

Tomás de Aquino foi pelo mesmo caminho: para ele, a graça de Deus “não destrói a natureza humana, mas a aperfeiçoa” (Suma Teológica I, q.1, a.8). O esforço humano é importante — mas insuficiente por si mesmo. Deus não elimina nosso trabalho, mas o ultrapassa, oferecendo algo que nenhuma quantidade de esforço pode comprar: a participação na própria vida divina.

No mundo da meritocracia moderna, quem chega por último leva o resto, o prêmio menor, ou nada. No Reino de Deus, quem chegou no fim do dia recebe o mesmo que o veterano da fé. Isso ofende nosso cálculo racional — mas revela o mistério da graça: ela é dom, não pagamento.

"Te ajuda que Eu te ajudarei" cabe aqui com um novo sentido: não é "faça por merecer", mas "mexa-se, abra espaço, permita que Eu aja em ti". Quem ficou parado em casa não foi chamado para a vinha. Mas quem foi — cedo ou tarde — recebeu do Senhor aquilo que não podia comprar.

Talvez o sentido mais desconcertante da parábola seja esse: o Reino não é justo no modo humano de pensar — é melhor do que justo. É gratuito. É escandalosamente gracioso.

Como disse Simone Weil: “O que é dado sem mérito é mais belo.”
E Santo Agostinho completaria: mais belo porque vem d'Aquele que dá tudo — até mesmo o nosso querer.

No fundo, Deus parece confiar mais no movimento do homem do que no mérito. E o céu não será povoado pelos que “fizeram por merecer”, mas pelos que acolheram — mesmo de última hora — o dom que só a bondade infinita pode dar.

quarta-feira, 9 de abril de 2025

Conhecedor das aflições

O amigo que entende sem explicar

Tem gente que não precisa perguntar muito pra entender o que está acontecendo com a gente. Só de olhar, já sabe que alguma coisa dentro está fora do lugar. Não é vidência, nem mágica — é vivência mesmo. Essa pessoa é o que eu chamo de “conhecedor das aflições”.

Não é alguém que leu sobre tristeza num livro, mas que já acordou com o peito afundado sem saber por quê. Que já atravessou noites longas em silêncio, tentando resolver coisas que não se resolvem. Que já teve medo, insegurança, solidão, e que aprendeu a andar junto com esses sentimentos sem deixar que eles mandem em tudo.

No dia a dia, esse tipo de pessoa é ouro. É o amigo que percebe quando a risada sai com atraso. Que respeita o silêncio, sem forçar conversa. Que senta do lado e fica ali, mesmo sem falar nada. Ele não precisa dizer “eu entendo” — porque a presença dele já diz. E isso, no meio do turbilhão, vale mais do que mil conselhos.

Quando a gente é conhecedor das aflições, os vínculos entre amigos mudam. A escuta fica mais generosa. A gente passa a não julgar tanto, porque sabe que todo mundo tem um pedaço da alma arranhado. E aí, em vez de tentar consertar o outro, a gente só segura a mão e diz: “vai passar, mas até lá, eu tô aqui”.

Lembrei que um tempo atrás, uma amiga me contou que um dia chegou esgotada do trabalho, querendo chorar, e que tudo o que o namorado fez foi tirar os sapatos dela, preparar um chá e colocar uma manta nos ombros. Nem perguntou nada. Ela disse: “naquele momento, ele me salvou”. Isso é a delicadeza de quem conhece as aflições por dentro: entender o que a pessoa precisa sem transformar o momento em um palco de discursos.

O mestre budista Thich Nhat Hanh dizia que “o maior presente que você pode dar a alguém é a sua presença verdadeira”. Ele falava de escuta profunda e de compaixão como práticas diárias. Para ele, compreender o sofrimento do outro é uma forma de amor — não um amor que tenta corrigir ou resolver, mas um amor que abraça.

Jesus, de maneira muito parecida, também praticava essa escuta cheia de presença. Quando encontrou a mulher samaritana no poço, por exemplo, não a interrompeu, nem a corrigiu com pressa. Ele ouviu, acolheu, ofereceu água viva — que não era uma solução mágica, mas um convite à renovação interior. Ele era mestre em enxergar por dentro, em perceber dores escondidas por trás de palavras e aparências. E ensinava que a compaixão não julga, apenas acolhe: “vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei”. Essa não é uma promessa de conserto imediato, mas de presença restauradora.

Não é que o conhecedor da dor se torne mais forte que os outros — às vezes ele é até mais sensível. Mas é esse tipo de sensibilidade que cria uma rede de apoio firme e silenciosa. Amizades assim são um tipo raro de refúgio: um lugar onde a gente pode ser quem é, mesmo nos dias em que está meio desmontado.

E talvez o mais bonito disso tudo seja que, depois de passar por nossas tempestades, a gente acaba se tornando abrigo pra alguém. Porque quem já sentiu frio, entende a importância de ser cobertor.