Deus e a meritocracia são como dois vizinhos desconfiados que mal se encaram na esquina. A meritocracia diz: “Quem se esforça, merece; quem merece, recebe”. Deus — ao menos no modo como aparece nas Escrituras — parece sorrir e responder: “Nem sempre.” E é justamente aqui que começa o desconcerto.
No
mundo moderno, adoramos a ideia da grande planilha moral: quem estuda mais,
sobe na vida; quem se dedica, colhe frutos; quem dorme no ponto, perde. Parece
justo. Só que a realidade desmente essa lógica todos os dias: o herdeiro
preguiçoso prospera; o gênio pobre nunca é descoberto; o trabalhador honesto
morre na praia. A vida real tem mais a ver com mistério do que com Excel.
Mesmo
a tradição cristã valoriza o esforço humano. Existe o velho conselho popular —
“Ajuda-te que o céu te ajudará” — que ecoa em provérbios bíblicos. Não dá para
esperar milagres deitado na rede. O próprio filho pródigo, antes de ser
perdoado, precisou levantar-se da lama e dar os primeiros passos de volta para
casa. Deus gosta dos que caminham — mesmo trôpegos — mais do que dos que
esperam imóveis.
Mas
o esforço, por si só, não garante recompensa. Aqui Deus e a meritocracia
moderna se separam de vez. E Jesus contou uma parábola desconcertante que
mostra isso: a dos trabalhadores da vinha (Mateus 20:1-16).
Nessa
história estranha, o dono da vinha contrata trabalhadores ao longo do dia: uns
logo cedo, outros ao meio-dia, outros quase no fim da tarde. No final, paga o
mesmo salário a todos. Revolta geral dos que suaram desde o amanhecer:
"Mas nós trabalhamos mais! Merecemos mais!" O patrão responde:
“Amigo, não estou te fazendo injustiça. Não combinamos este valor? Ou você está
com inveja porque eu sou bom?”
Qual
o sentido disso?
Jesus
desmonta a lógica meritocrática humana. No Reino de Deus, o valor não é dado
pela quantidade de horas trabalhadas ou pelo mérito acumulado, mas pela
generosidade do Senhor. O dom de Deus — a graça, a vida, o Reino — não se
calcula como salário. Não é troca, é dádiva.
Santo
Agostinho entendeu isso de modo profundo quando escreveu: “Deus
coroa em nós os seus próprios dons” (Enarrationes in Psalmos). Ou seja: até
aquilo que julgamos mérito nosso, na verdade, é graça d’Ele agindo em nós. Se
eu fui chamado cedo ou tarde, se trabalhei muito ou pouco, tudo já é obra da
misericórdia divina. No fundo, nem mesmo o querer fazer o bem nasce só de nós —
já é um presente.
Tomás
de Aquino foi pelo mesmo caminho: para ele, a graça de Deus “não
destrói a natureza humana, mas a aperfeiçoa” (Suma Teológica I, q.1, a.8).
O esforço humano é importante — mas insuficiente por si mesmo. Deus não elimina
nosso trabalho, mas o ultrapassa, oferecendo algo que nenhuma quantidade de
esforço pode comprar: a participação na própria vida divina.
No
mundo da meritocracia moderna, quem chega por último leva o resto, o prêmio
menor, ou nada. No Reino de Deus, quem chegou no fim do dia recebe o mesmo que
o veterano da fé. Isso ofende nosso cálculo racional — mas revela o mistério da
graça: ela é dom, não pagamento.
"Te
ajuda que Eu te ajudarei" cabe aqui com um novo sentido: não é "faça
por merecer", mas "mexa-se, abra espaço, permita que Eu aja em
ti". Quem ficou parado em casa não foi chamado para a vinha. Mas quem foi
— cedo ou tarde — recebeu do Senhor aquilo que não podia comprar.
Talvez
o sentido mais desconcertante da parábola seja esse: o Reino não é justo no
modo humano de pensar — é melhor do que justo. É gratuito. É escandalosamente
gracioso.
Como
disse Simone Weil: “O que é dado sem mérito é mais belo.”
E Santo Agostinho completaria: mais belo porque vem d'Aquele que dá tudo — até
mesmo o nosso querer.
No
fundo, Deus parece confiar mais no movimento do homem do que no mérito. E o céu
não será povoado pelos que “fizeram por merecer”, mas pelos que acolheram —
mesmo de última hora — o dom que só a bondade infinita pode dar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário