Outro dia, passando em frente a uma vitrine, vi meu reflexo e parei por um instante. Não para admirar ou criticar, mas porque a imagem parecia ser de outra pessoa. Algo no jeito que eu estava vestido, na expressão que fazia, não parecia ser exatamente "eu". Já aconteceu com você? Esse pequeno momento de estranhamento me levou a pensar: quanto de quem somos é apenas aparência, uma performance para o mundo, e quanto é a essência que carregamos?
Vivemos em uma era onde o "aparente" se
sobrepõe ao "ser". Redes sociais nos convidam a moldar a identidade
de acordo com o que é mais atraente, mais "curtível", mais aceito. O
perfil online, cuidadosamente editado, é o que muitos enxergam antes mesmo de
nos conhecerem. Mas será que somos apenas máscaras? Ou há algo no fundo que,
mesmo que tente se esconder, sempre escapa para a superfície?
A máscara que usamos
O filósofo francês Jean-Paul Sartre argumentava que
o ser humano está condenado a ser livre, ou seja, a escolher quem é, mesmo
quando isso significa se esconder atrás de uma aparência. Para ele, a
existência precede a essência; primeiro somos, depois escolhemos quem queremos
ser. Mas, nesse processo de escolha, criamos máscaras, muitas vezes por medo do
julgamento ou para atender às expectativas do outro.
Imagine o ambiente de trabalho. Lá, somos
profissionais impecáveis, confiantes, usando termos técnicos e sorrisos de
conveniência. Em casa, talvez sejamos descontraídos, risonhos ou até
vulneráveis. Já na rua, entre desconhecidos, o rosto é neutro, quase
indiferente. Três "eus", três aparências diferentes. Mas qual deles é
o real?
O que transborda do aparente
No entanto, nem sempre conseguimos controlar a
narrativa que construímos. Há momentos em que algo mais profundo escapa. É
aquele olhar de cansaço no meio de uma festa, a pausa longa demais numa
conversa, ou mesmo o silêncio em situações onde se esperava uma palavra. Isso
que transborda do aparente é o que revela a nossa essência, ainda que de forma
fragmentada.
O filósofo alemão Martin Heidegger falava sobre a
autenticidade como uma forma de enfrentar o mundo sem máscaras, encarando a
nossa existência de frente, sem tentar fugir dela. Para ele, viver de forma
autêntica é abandonar a necessidade de parecer algo para os outros e abraçar o
fato de que somos seres em constante construção.
Aparência e essência no cotidiano
Voltemos ao reflexo na vitrine. Quantas vezes já
nos olhamos no espelho e não reconhecemos quem somos? Talvez seja porque, no
fundo, estamos em constante mudança. A roupa que escolhemos hoje, a forma como
penteamos o cabelo, tudo comunica algo, mas é apenas uma camada. É como um
teatro onde somos atores e diretores ao mesmo tempo, ajustando o figurino
conforme a cena.
No entanto, a essência não desaparece. Ela se
manifesta em pequenos gestos: na maneira como tratamos quem não pode nos
oferecer nada em troca, na paciência que mostramos em dias difíceis, no sorriso
que damos mesmo quando ninguém está olhando.
Entre o ser e o parecer
No fim das contas, talvez não haja como separar
completamente o aparente do essencial. Somos, ao mesmo tempo, aquilo que
mostramos e aquilo que escondemos. Como disse Clarice Lispector: “Não se
preocupe em entender. Viver ultrapassa qualquer entendimento.”
Talvez a chave seja reconhecer que, mesmo na
aparência, há vestígios de quem realmente somos. E, às vezes, esses vestígios
podem dizer mais do que qualquer essência escondida. Afinal, não somos apenas
um reflexo na vitrine; somos a história por trás dele.