O amor não pede licença!
Este
ensaio tem como base a obra O Banquete de Platão, escrita no século IV a.C., na
qual diversos personagens — entre eles Sócrates, Aristófanes e Agatão — se
reúnem para discursar sobre a natureza do amor (Eros). O texto, estruturado
como um diálogo filosófico e literário, explora diferentes concepções de amor,
desde o desejo físico até a contemplação do Belo absoluto, sendo uma das mais
influentes reflexões da tradição ocidental sobre o tema.
Tem
gente que acha que falar de amor é coisa de poeta meloso ou de livro de
autoajuda de aeroporto. Mas basta um encontro casual no metrô, uma mensagem não
respondida, ou aquele silêncio constrangedor no jantar para percebermos: o amor
é uma força estranha que atravessa tudo — inclusive quem não quer papo com ele.
E é justamente por essa força indomável que O Banquete, de Platão,
continua a ser um texto desconcertante. Lá estão Sócrates, Aristófanes, Fedro,
Agatão e companhia, cada um tentando definir o tal Eros como quem tenta agarrar
vento com as mãos.
Mas
talvez o maior erro de leitura seja encarar O Banquete como um tratado
sobre o amor apenas entre corpos ou entre almas. O texto é também sobre outra
coisa: o impulso que nos arranca do lugar em que estamos e nos faz querer o que
não temos. Não importa o objeto — beleza, sabedoria, eternidade ou poder —, amar
é sempre uma falta. Um furo no tecido do real. Um buraco que nem mesmo os
deuses escapam de sentir.
Aristófanes,
com seu mito dos andróginos partidos, aposta numa visão engraçada e
melancólica: éramos inteiros, fomos divididos, e agora vagamos incompletos
atrás de nossa outra metade. Uma visão romântica que ainda alimenta aplicativos
de namoro, filmes da Sessão da Tarde e promessas de “alma gêmea”. Mas há algo
de trágico nisso: quem garante que vamos mesmo encontrar esse pedaço perdido? E
se formos condenados a desejar para sempre?
Aí
entra Sócrates, com sua cara de quem sabe algo que não diz. Ele fala de uma
outra forma de amor, passada para ele por Diotima: o Eros que começa no corpo,
mas não para nele; que escala degrau por degrau até o amor das ideias puras, da
Beleza em si. Uma pirâmide de desejo que, no topo, esquece o cheiro da pele, o
calor do toque, o suor do abraço. Um amor que deixa o humano para se dissolver
no divino. Bonito? Sim. Satisfatório? Nem tanto.
Aqui
um em tempo para falar de Diotima: Diotima de Mantineia foi
uma sacerdotisa e filósofa grega antiga, conhecida por sua influência no
pensamento de Sócrates, especialmente em relação ao amor. Ela é
apresentada no diálogo "Banquete" de Platão, onde Sócrates a descreve
como sua mentora e ensinadora sobre o amor (Eros).
Prosseguindo.
E se O Banquete for, no fundo, uma confissão de que amar é impossível de
resolver? De que não há saída justa entre o corpo e o espírito, entre o desejo
que quer possuir e o ideal que quer contemplar? Talvez por isso o texto termine
como termina: com Alcibíades bêbado invadindo a festa e bagunçando o jogo
filosófico com sua paixão descontrolada por Sócrates. Um lembrete incômodo: a
carne não deixa ninguém subir a escada de Diotima sem antes puxar pelos
calcanhares.
O
amor, no fundo, é uma contradição ambulante. É impulso vital e desordem. É
aspiração à imortalidade e consciência dolorida da nossa finitude. Quer
eternizar, mas não dura. Quer possuir, mas foge. É por isso que O Banquete
segue vivo: porque não entrega uma resposta, e sim um campo de tensão onde cada
leitor — como cada amante — precisa se virar.
Talvez
o verdadeiro banquete do amor seja isso: um prato que nunca se esvazia, mas
também nunca se saboreia por inteiro. E quem tenta dar conta dele, como Platão,
Sócrates ou a gente aqui, acaba sempre saindo da mesa com fome.
O
amor em tempos de scroll: Platão no século XXI
Se
Platão ressuscitasse hoje e pegasse um celular na mão, talvez levasse um susto.
Nunca houve tanta gente tentando amar ao mesmo tempo: Tinder, Hinge, Bumble,
Instagram. E mesmo assim, nunca se falou tanto de solidão. O paradoxo platônico
continua: o desejo aproxima, mas nunca sacia. Seguimos os mesmos andróginos
partidos de Aristófanes, só que agora deslizando perfis com o polegar em vez de
vagar pelas praças de Atenas.
O
amor no trabalho? Também ali mora um Eros disfarçado. O
desejo por reconhecimento, promoção, sentido. Não é à toa que tanta gente se
diz "apaixonada pelo que faz" ou "casada com a carreira".
Mas essa paixão também carrega o risco platônico: quanto mais desejamos esse
ideal — sucesso, realização —, mais percebemos o abismo entre o real e o
imaginado. A escada de Diotima existe aqui também: começamos com o salário,
depois o cargo, depois o status... até que vem a dúvida: para onde tudo isso
leva? Qual o Belo por trás dessa luta diária?
E
a amizade? No Banquete, Fedro sugere que o
amor inspira coragem nos guerreiros — talvez hoje ele diria: nas amizades
reais, longe do like fácil. Porque amigo de verdade não é quem só confirma o
que você posta; é quem te lembra de quem você é quando você mesmo esquece. Amar
um amigo é um Eros lateral, discreto, mas essencial. Como um fio que segura a
alma em dias de tempestade.
Mas
o ponto mais inquietante é este: Platão talvez
suspeitasse que, no fundo, o amor é um jogo que nos engana para nos manter
vivos. Diotima diz: Eros não é deus, é demônio — intermediário entre o mortal e
o imortal. Ou seja: o amor é ponte, não destino. Nunca paramos nele, sempre
passamos por ele querendo outra coisa. Isso serve para o romance, para a arte,
para o trabalho, para a política. Tudo é desejo de algo que nunca se alcança
por completo.
Talvez
seja essa a lição escondida no Banquete: aceitar o amor como falta, como
impulso criativo que nos obriga a inventar sentido onde ele não existe pronto.
Um convite à imaginação, não à satisfação.
Por
isso, quem ama demais uma resposta (seja um par perfeito, um cargo ideal ou uma
amizade sem falhas) corre o risco de perder o melhor da festa: o próprio
banquete da procura.
E
assim Platão — sem saber — já falava de nós: esses seres inquietos de 2025, com
o coração cheio de abas abertas, sonhando com completude entre uma notificação
e outra.
Último
gole: Platão encontra Byung-Chul Han
O
filósofo sul-coreano Byung-Chul Han diria que vivemos hoje não a era do amor
platônico, mas a do desempenho: um tempo em que até amar virou tarefa de alta
performance. Vender-se bem nos aplicativos, performar felicidade no Instagram,
ser desejável, interessante, produtivo — até no campo afetivo. Eros virou um
coach cansativo.
Mas
o amor verdadeiro, lembra Han em A Agonia do Eros, é encontro com o
Outro real, não com o espelho do mesmo. Algo que rasga a bolha da autoimagem e
nos põe em risco. Como Alcibíades invadindo a festa de Sócrates: bagunçando o
roteiro perfeito, derrubando a taça, fazendo a filosofia tropeçar.
Talvez
seja este o aviso escondido em O Banquete, atravessando os séculos: amar
é perder o controle. E, quem sabe, é aí — nesse tropeço, nessa falta, nesse
inacabamento — que a vida se faz de verdade.