Dia
destes estava lendo uma postagem no Instagram de uma palestra de Umberto Eco e me ocorreu escrever sobre o
tema, vou deixar o link para lerem a publicação:
https://www.instagram.com/explore/tags/aldeia/
Antigamente
o idiota da aldeia ficava restrito ao seu círculo de vinte ou trinta
conhecidos. Falava besteiras na taberna, confundia datas na praça, contava
histórias tortas para as crianças, e todos sabiam que aquilo era parte do
folclore local — uma figura inofensiva ou, no máximo, irritante. Mas Umberto
Eco, em uma célebre palestra na Universidade de Turim em 2015, ao receber o
título de doutor honoris causa, alertou:
“As
redes sociais deram o direito de fala a legiões de imbecis que antes só falavam
no bar e depois de um copo de vinho, sem prejudicar a coletividade. Eles eram
rapidamente calados, enquanto agora têm o mesmo direito à palavra de um Prêmio
Nobel.”
O
drama moderno, segundo Eco, é que esse idiota ganhou um microfone global — e
ninguém mais distingue sua fala da voz da razão. As redes sociais, ironicamente
chamadas de “plataformas”, deram a ele um púlpito.
Mas
antes de julgá-lo, precisamos reconhecer um segredo incômodo: o idiota da
aldeia também existe em nós.
A
ideia de "idiota" não é apenas um personagem exterior, grotesco e
reconhecível. Ele é também aquela voz interna que opina sem saber, compartilha
sem ler, acredita no que deseja e não no que é. Por vezes, é o idiota da aldeia
quem responde nos grupos de WhatsApp da família, quem comenta com raiva em
fóruns, quem dá conselhos não solicitados no elevador. O empoderamento desse
idiota não é um acidente tecnológico; é o sintoma de uma velha condição humana:
o amor à própria ignorância.
O
que Eco parece sugerir (mas poucos ousam explorar) é que o problema não é a
ignorância em si — afinal, somos todos ignorantes em quase tudo — mas a
soberania concedida à ignorância opinativa. Antigamente o idiota da aldeia não
era ouvido; agora ele acredita ser a própria aldeia.
O
Novo Teatro da Verdade
Platão,
no século IV a.C., advertia sobre a fragilidade da opinião sem conhecimento, a
famosa doxa que se veste de sabedoria, mas é espuma vazia. Mas nem ele
previu o Instagram.
Hoje,
não é preciso aprender: basta parecer saber. O empoderamento do idiota não é
apenas o direito de falar, mas o direito de soar importante, de ter seguidores,
de ser citado, de fazer barulho. Mais: é o direito de cancelar quem sabe mais,
de ofender sem custo, de confundir sem responsabilidade. O idiota da aldeia
virou curador de museu, crítico literário, filósofo instantâneo, cientista do
próprio umbigo.
E
nós — os supostos lúcidos — não escapamos ilesos. Pois ao combatê-lo, ao zombar
dele, ao denunciá-lo sem parar, damos a ele o alimento que deseja: atenção.
Segundo
Nelson Rodrigues (1912 – 1980): “Os idiotas vão tomar conta do mundo; não
pela capacidade, mas pela quantidade. Eles são muitos.”
O
Idiota também é uma Função
Mas
há uma ideia mais profunda e desconcertante aqui: o idiota da aldeia é
necessário. Ele cumpre uma função social que talvez tenhamos esquecido. Ele é o
espelho deformante que nos lembra o que não queremos ser — ou o que já somos
sem perceber.
O
idiota é o fermento do ceticismo coletivo. Sua fala desvairada obriga a
reflexão dos atentos, o cuidado dos mestres, a paciência dos sábios. Sem ele, a
inteligência dorme. Como dizia o filósofo Paul Valéry: "A estupidez
não se improvisa; é uma obra de arte." O idiota nos obriga à vigilância.
Talvez
seja este o paradoxo mais incômodo: o empoderamento do idiota é também o
empoderamento da crítica. Ele não cala o pensamento — obriga-o a se justificar.
A
Aldeia Somos Nós
Há
uma solução elegante e trágica para o dilema de Eco: reconhecer que a aldeia
digital não tem mais centro nem periferia. O idiota já não é uma exceção; ele é
uma probabilidade distribuída entre todos. Não há um "ele" e um
"nós". A internet tornou a aldeia um espelho de mil faces, e cada um
de nós já foi — ou será — o idiota da vez.
Por
isso, o verdadeiro risco não é o idiota que fala demais — é o sábio que se cala
por cansaço.
O
empoderamento do idiota da aldeia, afinal, não é uma crise da estupidez — é uma
crise da escuta. Quem ainda escuta com cuidado? Quem ainda separa o ruído da
música? Quem ainda suspeita de si mesmo antes de opinar? Eco nos alertou para o
barulho, mas talvez o problema mais grave seja o silêncio dos que poderiam
dizer algo real e útil — e se retraem.
Talvez
o maior idiota da aldeia seja aquele que desistiu de pensar. Hoje percebemos
que ele não estava tão errado assim. Ou estava?