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segunda-feira, 16 de junho de 2025

Idiota da Aldeia



Dia destes estava lendo uma postagem no Instagram de uma palestra de Umberto Eco e me ocorreu escrever sobre o tema, vou deixar o link para lerem a publicação:

https://www.instagram.com/explore/tags/aldeia/

Antigamente o idiota da aldeia ficava restrito ao seu círculo de vinte ou trinta conhecidos. Falava besteiras na taberna, confundia datas na praça, contava histórias tortas para as crianças, e todos sabiam que aquilo era parte do folclore local — uma figura inofensiva ou, no máximo, irritante. Mas Umberto Eco, em uma célebre palestra na Universidade de Turim em 2015, ao receber o título de doutor honoris causa, alertou:

“As redes sociais deram o direito de fala a legiões de imbecis que antes só falavam no bar e depois de um copo de vinho, sem prejudicar a coletividade. Eles eram rapidamente calados, enquanto agora têm o mesmo direito à palavra de um Prêmio Nobel.”

O drama moderno, segundo Eco, é que esse idiota ganhou um microfone global — e ninguém mais distingue sua fala da voz da razão. As redes sociais, ironicamente chamadas de “plataformas”, deram a ele um púlpito.

Mas antes de julgá-lo, precisamos reconhecer um segredo incômodo: o idiota da aldeia também existe em nós.

A ideia de "idiota" não é apenas um personagem exterior, grotesco e reconhecível. Ele é também aquela voz interna que opina sem saber, compartilha sem ler, acredita no que deseja e não no que é. Por vezes, é o idiota da aldeia quem responde nos grupos de WhatsApp da família, quem comenta com raiva em fóruns, quem dá conselhos não solicitados no elevador. O empoderamento desse idiota não é um acidente tecnológico; é o sintoma de uma velha condição humana: o amor à própria ignorância.

O que Eco parece sugerir (mas poucos ousam explorar) é que o problema não é a ignorância em si — afinal, somos todos ignorantes em quase tudo — mas a soberania concedida à ignorância opinativa. Antigamente o idiota da aldeia não era ouvido; agora ele acredita ser a própria aldeia.

O Novo Teatro da Verdade

Platão, no século IV a.C., advertia sobre a fragilidade da opinião sem conhecimento, a famosa doxa que se veste de sabedoria, mas é espuma vazia. Mas nem ele previu o Instagram.

Hoje, não é preciso aprender: basta parecer saber. O empoderamento do idiota não é apenas o direito de falar, mas o direito de soar importante, de ter seguidores, de ser citado, de fazer barulho. Mais: é o direito de cancelar quem sabe mais, de ofender sem custo, de confundir sem responsabilidade. O idiota da aldeia virou curador de museu, crítico literário, filósofo instantâneo, cientista do próprio umbigo.

E nós — os supostos lúcidos — não escapamos ilesos. Pois ao combatê-lo, ao zombar dele, ao denunciá-lo sem parar, damos a ele o alimento que deseja: atenção.

Segundo Nelson Rodrigues (1912 – 1980): “Os idiotas vão tomar conta do mundo; não pela capacidade, mas pela quantidade. Eles são muitos.”

O Idiota também é uma Função

Mas há uma ideia mais profunda e desconcertante aqui: o idiota da aldeia é necessário. Ele cumpre uma função social que talvez tenhamos esquecido. Ele é o espelho deformante que nos lembra o que não queremos ser — ou o que já somos sem perceber.

O idiota é o fermento do ceticismo coletivo. Sua fala desvairada obriga a reflexão dos atentos, o cuidado dos mestres, a paciência dos sábios. Sem ele, a inteligência dorme. Como dizia o filósofo Paul Valéry: "A estupidez não se improvisa; é uma obra de arte." O idiota nos obriga à vigilância.

Talvez seja este o paradoxo mais incômodo: o empoderamento do idiota é também o empoderamento da crítica. Ele não cala o pensamento — obriga-o a se justificar.

A Aldeia Somos Nós

Há uma solução elegante e trágica para o dilema de Eco: reconhecer que a aldeia digital não tem mais centro nem periferia. O idiota já não é uma exceção; ele é uma probabilidade distribuída entre todos. Não há um "ele" e um "nós". A internet tornou a aldeia um espelho de mil faces, e cada um de nós já foi — ou será — o idiota da vez.

Por isso, o verdadeiro risco não é o idiota que fala demais — é o sábio que se cala por cansaço.

O empoderamento do idiota da aldeia, afinal, não é uma crise da estupidez — é uma crise da escuta. Quem ainda escuta com cuidado? Quem ainda separa o ruído da música? Quem ainda suspeita de si mesmo antes de opinar? Eco nos alertou para o barulho, mas talvez o problema mais grave seja o silêncio dos que poderiam dizer algo real e útil — e se retraem.

Talvez o maior idiota da aldeia seja aquele que desistiu de pensar. Hoje percebemos que ele não estava tão errado assim. Ou estava?


sexta-feira, 28 de março de 2025

Essência e Existência

Sabe aquele momento em que você se olha no espelho e se pergunta: "Eu sou mesmo quem acho que sou?" Ou quando, no meio de uma conversa, surge o pensamento estranho: "E se eu simplesmente não existisse?" Essas perguntas que parecem brotar de uma mente inquieta já atormentavam filósofos há séculos. E um dos que mais se debruçou sobre essa questão foi Avicena (Ibn Sina), o grande pensador persa do século XI.

Avicena estabeleceu uma distinção fundamental entre essência e existência. Para ele, a essência de algo (o que uma coisa é) e sua existência (o fato de que ela é) são separadas. A essência de um cavalo, por exemplo, não implica que ele existe de fato – ele poderia apenas ser uma ideia na mente de alguém. Isso significa que a existência não está automaticamente contida na essência de um ser contingente; para existir, ele precisa receber a existência de algo que já existe por si mesmo.

Aqui entra o conceito de Ser Necessário, uma das contribuições mais marcantes de Avicena. Se tudo no mundo precisa receber a existência de algo anterior, então deve haver um ser cuja existência não dependa de nada – um ser que seja existência pura, sem distinção entre essência e existência. Esse Ser Necessário, para Avicena, é Deus. Sem Ele, nada mais poderia existir, pois tudo o que encontramos no mundo é contingente, ou seja, poderia não existir.

O impacto dessa ideia foi profundo na filosofia ocidental. Tomás de Aquino, por exemplo, absorveu e reelaborou a distinção entre essência e existência em sua própria filosofia, influenciando séculos de pensamento cristão. No entanto, o que torna Avicena tão inovador é a sua abordagem quase matemática do problema: ele raciocina como um lógico rigoroso, deduzindo as implicações metafísicas do ser de maneira metódica.

Agora, voltemos àquela olhada no espelho. Se seguirmos Avicena, a pergunta "quem sou eu?" ganha novos contornos. Não basta apenas saber nossa essência (ser humano, pensante, consciente), mas entender que nossa existência não é garantida por nós mesmos. Em última análise, existimos porque algo nos concedeu essa existência. Somos, de certo modo, dependentes do Ser Necessário – como notas musicais que só ressoam porque há um instrumento para tocá-las.

Esse pensamento nos leva a uma reflexão mais profunda sobre a nossa posição no universo. Se nossa existência é recebida, qual é o propósito dessa concessão? E se a essência não garante a existência, até que ponto podemos afirmar que somos donos de nossa própria realidade?

Em tempos de identidades fluidas e realidades virtuais, a separação entre essência e existência pode ser mais relevante do que nunca. Afinal, será que nossa essência se mantém quando nos projetamos para o mundo digital? Ou será que o simples ato de existir em um espaço virtual altera a essência do que somos? Se Avicena estivesse aqui hoje, talvez se perguntasse: "O avatar de um indivíduo no metaverso tem essência ou apenas existência temporária?" Questões que, mil anos depois, continuam assombrando nossa busca por sentido.