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sábado, 12 de abril de 2025

Lembrança Incerta

Estava pensando, falando cá com meus botões, e se a nossa memória não fosse confiável? Seria o caso das falhas da lembrança e a construção da realidade?

Outro dia, meu filho contou uma história da infância com riqueza de detalhes: nós dois brincando na sala de casa, uma bronca que levamos por termos derrubado café sobre o tapete. Eu, sinceramente, não lembrava de nada disso. E mais: achava que eu nem estava presente naquela ocasião. Ficamos os dois convencidos de que nossa versão era a correta — e, ironicamente, ambos estávamos certos... e errados.

A questão é que a memória não é um espelho do passado, e sim uma reconstrução narrativa, como já sugeria o filósofo francês Henri Bergson. Em sua obra Matéria e Memória (1896), ele argumenta que lembrar não é simplesmente armazenar e recuperar dados, mas sim reinterpretar o passado à luz do presente. Cada lembrança, portanto, não é uma cópia, mas uma reinvenção.

Essa ideia foi posteriormente reforçada pelas ciências cognitivas. Elizabeth Loftus, psicóloga cognitiva e pesquisadora da Universidade da Califórnia, demonstrou com inúmeros experimentos que memórias falsas podem ser implantadas com facilidade. Em um de seus estudos clássicos, participantes foram convencidos de que haviam se perdido em um shopping quando crianças — e muitos não apenas acreditaram, como acrescentaram detalhes fictícios à lembrança. Isso colocou em xeque a validade dos testemunhos oculares e mostrou como somos mais vulneráveis à manipulação do que gostaríamos de admitir.

E não é só sobre manipulação externa. O próprio cérebro preenche lacunas quando precisa. Como observou Oliver Sacks, neurologista e escritor, em O Homem que Confundiu Sua Mulher com um Chapéu, pessoas com lesões neurológicas criam versões alternativas da realidade com base em memórias fragmentadas. Essas versões são, para elas, tão reais quanto qualquer outra.

Nosso cotidiano está repleto de exemplos mais sutis. Um casal que discorda sobre o tom de uma conversa; irmãos que lembram diferentes versões da mesma viagem; o funcionário que acha ter sido injustiçado por um chefe que sequer se recorda do episódio. A memória, muitas vezes, não guarda fatos — ela guarda emoções associadas a fatos. E isso muda tudo.

O filósofo britânico Bertrand Russell advertia que “a lembrança é sempre, em certa medida, um ato de criação.” Já Friedrich Nietzsche foi além: em A Genealogia da Moral, ele sugere que a memória é moldada pela necessidade social — aprendemos a lembrar da dor para obedecer, lembrar da culpa para sermos domesticados. Ou seja, nem sempre lembramos por vontade própria: muitas vezes lembramos porque fomos ensinados a lembrar de certos eventos e não de outros.

Do ponto de vista neurocientífico, sabe-se hoje que cada vez que acessamos uma lembrança, ela é regravada no cérebro — um processo chamado reconsolidação. Isso significa que lembrar é também alterar. Como uma foto que vai perdendo qualidade a cada cópia, a memória se degrada e se adapta. Nossos neurônios, longe de serem arquivos estáticos, são mais como um sistema de edição contínua.

Isso nos leva a um dilema curioso: se a nossa memória é fluida, o que isso diz sobre a nossa identidade? Somos, em parte, o que lembramos — nossas escolhas, arrependimentos, alegrias e medos. Mas se nossas lembranças mudam, quem somos nós realmente?

Talvez a resposta esteja na aceitação da memória como narrativa. Como uma história contada por alguém que se reconstrói com o tempo. E isso não precisa ser visto como um problema. A memória criativa é também uma memória que cura, que reinterpreta o sofrimento, que permite recontar a própria vida com um novo significado.

No fundo, a memória não busca a verdade literal — ela busca sentido. E, como escreveu Clarice Lispector: “o que me salva é o saber que, mesmo quando erro, estou tentando acertar o caminho do que me importa”. Lembrar é, muitas vezes, isso: tentar acertar o caminho do que importa.


sábado, 8 de fevereiro de 2025

Mágoas da Criação

Lembro quando estávamos almoçando num dia normal do trabalho quando minha amiga desabafou:

 

— Sabe, às vezes acho que minha mãe não me amava. Quer dizer, ela cuidava de mim, me educou, mas nunca houve carinho, nunca um abraço espontâneo, uma palavra de afeto. Só exigência, cobrança. Hoje, adulta, me pego sem saber como demonstrar afeto, como se isso fosse uma língua estrangeira.

 

Fiquei em silêncio por um instante, lembrei que ela não foi a primeira pessoa a desabafar sobre esta mesma mágoa. Esse tipo de confissão não pede respostas prontas. O que dizer? Que ela deveria superar? Que sua mãe fez o melhor que podia? Que o amor pode estar presente mesmo sem demonstração? Tudo isso pode ser verdade, mas nenhuma dessas frases apaga a ferida de uma infância sem afeto.

 

O Peso da Ausência

A filosofia há tempos se debruça sobre a influência da criação na formação do indivíduo. Freud já apontava que as relações primárias moldam nosso inconsciente de maneiras profundas. Simone de Beauvoir, por outro lado, questionava a construção social do papel materno e como certas mulheres viam a maternidade mais como um dever do que como uma experiência afetiva.

 

O problema é que, para a criança, o afeto é a primeira forma de reconhecimento. Sem ele, o mundo pode parecer hostil, frio, mecânico. A criança aprende a se proteger, mas, ao fazer isso, constrói muros internos que podem durar uma vida inteira. Crescer sob um olhar que apenas julga, mas não acolhe, forma um adulto que pode passar anos tentando provar seu valor—às vezes, sem saber exatamente para quem.

 

O Ciclo da Carência

É curioso como esse tipo de criação dura pode gerar duas respostas opostas. Alguns replicam o mesmo padrão, tornando-se pais rígidos e distantes, pois foi assim que aprenderam a amar. Outros, ao contrário, se tornam exageradamente afetuosos, como se quisessem compensar o que não tiveram. E há aqueles que ficam no meio do caminho, sempre inseguros sobre como se conectar emocionalmente.

 

O filósofo brasileiro Luiz Felipe Pondé fala sobre como as relações humanas são marcadas pela falta. Ele sugere que o amor materno é muitas vezes idealizado, mas, na realidade, está cheio de falhas, limitações e até ressentimentos. Isso significa que, talvez, nossa sociedade precise aceitar que nem toda mãe consegue amar da forma esperada, seja por suas próprias dores, por sua história, ou simplesmente por ser humana demais.

 

O Que Fazer com Essa Mágoa?

Minha amiga perguntou, depois de um tempo:

 

— E agora? Como eu curo isso?

 

Acho que ninguém tem uma resposta definitiva. Algumas pessoas buscam terapia, outras tentam encontrar figuras maternas substitutas, e há quem aprenda a se dar o carinho que nunca recebeu. O importante talvez seja reconhecer que a falta de afeto não define o nosso valor.

 

No fim, olhar para trás sem rancor pode ser o maior ato de liberdade. E, quem sabe, aprender a demonstrar afeto, ainda que aos poucos, seja a maior revolução para quem cresceu sem ele.


sábado, 30 de novembro de 2024

Destruição e Criação

No fascinante e imprevisível palco da vida, um ato de destruição pode muito bem preceder um ato de criação. Isso pode soar contraditório à primeira vista, mas muitas vezes é necessário desconstruir o antigo para abrir espaço para o novo. Vamos pensar nessa dinâmica através de exemplos cotidianos e refletir sobre como a destruição pode ser um prelúdio para a criação.

Renovação Profissional

Imagine que você está insatisfeito com sua carreira. O trabalho que antes parecia promissor agora se tornou uma fonte de estresse e desmotivação. Decidir sair desse emprego pode parecer um ato de destruição – afinal, você está rompendo com a segurança e estabilidade. No entanto, essa decisão pode abrir caminho para uma nova oportunidade que esteja mais alinhada com suas paixões e habilidades.

Transformação Pessoal

A transformação pessoal muitas vezes exige que abandonemos antigos hábitos e padrões de pensamento. Suponha que você tenha um estilo de vida sedentário e decida começar a se exercitar regularmente. O primeiro passo pode ser "destruir" a rotina confortável de assistir televisão todas as noites. Essa destruição, embora inicialmente desconfortável, permite a criação de uma nova rotina que promove a saúde e o bem-estar.

Relacionamentos

Nos relacionamentos, a destruição pode ocorrer na forma de término ou afastamento. Romper um relacionamento tóxico ou insatisfatório pode ser doloroso e difícil, mas é um passo necessário para criar espaço para conexões mais saudáveis e gratificantes. Esse processo de destruição pode ser uma forma de autocuidado e crescimento pessoal.

Inovações e Tecnologia

No mundo da tecnologia e inovação, a destruição é frequentemente uma parte essencial do progresso. Considere o desenvolvimento de novos produtos ou soluções. Muitas vezes, é necessário abandonar ou "destruir" ideias e projetos antigos que não funcionam mais para desenvolver algo inovador e eficiente. As empresas que prosperam são aquelas que não têm medo de deixar o passado para trás e investir no novo.

Desenvolvimento Urbano

Nas cidades, a destruição física de edifícios antigos é comum para dar lugar a novas construções que atendam melhor às necessidades atuais da população. Embora a demolição possa parecer uma perda, ela possibilita a criação de espaços modernos e funcionais que melhoram a qualidade de vida dos residentes.

Crescimento Ambiental

No contexto ambiental, um exemplo interessante é o ciclo natural de incêndios florestais. Embora os incêndios possam causar destruição significativa, eles também desempenham um papel crucial na regeneração dos ecossistemas. Muitos tipos de plantas dependem do fogo para abrir suas sementes e promover o crescimento de novas gerações de vegetação.

A destruição, quando vista sob uma nova perspectiva, pode ser um catalisador poderoso para a criação e o crescimento. Ela nos desafia a abandonar o familiar e abraçar o desconhecido, nos forçando a inovar e evoluir. Em vez de temer a destruição, podemos reconhecê-la como uma oportunidade de renascimento e transformação.

No ciclo contínuo da vida, a destruição e a criação são duas faces da mesma moeda. Juntas, elas moldam nossas experiências e nos impulsionam a buscar constantemente novas possibilidades e realizações.