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terça-feira, 13 de maio de 2025

Alternativa a Obediência

Nem sim, nem não — mas outra coisa

Recordo que certo dia, no trabalho, meu chefe me pediu algo que, no fundo, não fazia o menor sentido. Não era absurdo, não era imoral, apenas… vazio. Um protocolo. Uma dessas ordens que vêm por vício, não por necessidade. Aquela coisa que você obedece por inércia ou desobedece por birra.

Eu quase fui pelo sim. E depois, quase fui pelo não.

Mas parei.

Fiquei em silêncio por três segundos — o que, no ritmo da empresa, é uma eternidade — e disse: “Me explica por que isso é importante?”

Ele piscou. Não esperava. Talvez nem ele soubesse por quê. E foi aí que percebi: obedecer seria passar por cima de mim. Desobedecer seria passar por cima dele. Mas perguntar foi passar por dentro da situação.

Existe um caminho entre o “sim, senhor” e o “não vou fazer”.

É o caminho de quem decide com consciência. De quem não se curva nem se rebela, mas se coloca.

A terceira via tem cara de pergunta

Ela não levanta a voz, mas também não abaixa a cabeça.

Ela pergunta, considera, pensa, reavalia. Às vezes chega ao “sim”, outras ao “não”, mas o que importa é como chegou lá.

Na família, por exemplo. Você já foi chamado para um almoço onde não queria ir? Não porque odeia a comida, mas porque a conversa te esgota, o ambiente te aperta, você sente que está lá só para cumprir tabela?

A obediência vai por educação. A desobediência inventa uma desculpa.

A terceira via liga antes e diz: “Queria te ver de verdade, sem pressa. Que tal um café só nós dois na quarta?”

Repare: não é fuga. É criação.

Fazer o que se deve — mas porque se escolhe

O filósofo francês Michel Foucault falava disso quando propunha o “cuidado de si”. Para ele, liberdade não é fazer tudo o que se quer. É cultivar uma escuta interior tão afiada que você se torna capaz de decidir — e não apenas reagir. A obediência age por medo. A desobediência por impulso. A terceira via, por consciência.

Na prática, ela é menos dramática e mais sutil. É aquela resposta que não se espera. Aquela sugestão que muda o rumo da conversa. Aquela decisão que respeita os outros sem se trair.

Um amigo meu, professor, conta que um aluno dele um dia disse: “Não vou fazer a tarefa.”
Ele respirou e disse: “Tudo bem. Mas me conta o que você faria no lugar.”
E o aluno, meio pego de surpresa, acabou propondo outra forma de aprender — melhor, aliás.

Nem obedeceu nem desobedeceu. Criou.

No fim das contas…

…a terceira via é o lugar onde mora a autenticidade.

Nem passiva, nem agressiva. Apenas viva.

Não se trata de dizer sim ou não. Mas de estar presente o bastante para entender o que a situação realmente pede — e o que você está disposto a oferecer.

É mais fácil seguir ordens. É mais fácil romper com tudo. Difícil mesmo é pensar no meio do caminho. Mas é nesse meio que a liberdade amadurece.

Política: entre o gado e o grito

Vivemos uma época em que a política virou torcida. Ou você bate palma pra tudo que seu time faz, ou vira hater profissional do outro lado. Mas e se a gente não quiser ser nem mascote nem hater?

Um conhecido meu, eleitor engajado, me disse: “Se criticar meu candidato, você está ajudando o inimigo.”

Respondi: “E se eu criticar pra ajudar ele a ser melhor?”

Essa é a terceira via política: aquela que critica sem querer destruir, e que elogia sem idolatrar.

Ela não se baseia na fidelidade cega, nem no cancelamento automático.

Ela existe onde o debate ainda respira, onde pensar vale mais que gritar.

Não é centrão. É centro de gravidade.

Religião: entre o dogma e o deboche

Numa cerimônia religiosa, o padre pediu que todos se ajoelhassem. Um senhor idoso ao meu lado não se ajoelhou, mas também não ficou de pé, desafiador. Ele apenas sentou com reverência, olhos fechados, mãos no peito.

Ele não estava desobedecendo. Estava interpretando com o corpo aquilo que fazia sentido pra ele. Nem fanático, nem debochado. Um tipo raro de fé: silenciosa, adaptada, presente.

A terceira via da espiritualidade não é “sou religioso” nem “sou ateu revoltado”.

É: “Estou buscando, estou ouvindo, estou escolhendo o que me transforma com honestidade.”

Ela entra no templo… e sai com perguntas.

Escola: entre copiar e desafiar

Uma aluna de 13 anos se recusou a fazer a lição de matemática. A professora, paciente, perguntou por quê.

“Porque eu já sei fazer. Posso tentar um desafio mais difícil?”

Não era birra. Era vontade de aprender.

A escola tradicional adestra. A rebeldia anárquica rejeita tudo. A terceira via educa para o discernimento.

É ensinar a perguntar: “Por que estou aprendendo isso?”

E, se a resposta fizer sentido, seguir com interesse próprio, não só por obrigação.

Amor: entre ceder e confrontar

Num relacionamento, às vezes surge aquela encruzilhada: ou eu cedo e me anulo, ou eu me imponho e crio guerra.

Mas existe o outro jeito: conversar antes que a crise vire abismo.

É perguntar: “O que em mim você está tentando mudar?”

E também perguntar a si mesmo: “Estou disposto a mudar isso por mim, ou só por medo de perder?”

A terceira via amorosa é vulnerável, mas firme.

Ela não obedece por carência, nem desobedece por orgulho. Ela constrói acordos que respeitam ambos os lados — inclusive o seu.

Entre a cruz e a espada, invente um banquinho

A vida parece nos empurrar para escolhas binárias: isso ou aquilo. Mas a maturidade começa quando você entende que pode não escolher nenhuma das opções prontas — e ainda assim agir com responsabilidade.

A terceira via é a arte de inventar o próprio jeito de estar no mundo.

Nem servil, nem reativo. Mas criador.

E como disse Fernando Pessoa, num de seus momentos mais lúcidos:

“Navegar é preciso; viver não é preciso.”

Ou seja: viver não é seguir rotas. É estar atento à bússola interior — mesmo quando o mapa só mostra o sim e o não.


sexta-feira, 18 de abril de 2025

Metamorfose Humana

Acordei certa manhã com um pressentimento esquisito. O corpo estava o mesmo, mas o mundo ao redor parecia diferente. O café não tinha gosto, os vizinhos evitavam conversa, e o espelho, embora devolvesse meu rosto, me parecia um retrato antigo de alguém que já não sou mais. Não precisei virar um inseto gigante pra sentir que algo tinha virado de ponta-cabeça — bastou a rotina continuar igual enquanto, por dentro, tudo mudava. Kafka, com sua Metamorfose, não escreveu sobre uma barata. Escreveu sobre nós.

O inseto não é Gregor: somos nós.

Gregor Samsa não se transforma, ele revela. O inseto sempre esteve ali, escondido sob a polidez de quem acorda cedo, pega trem lotado, aguenta chefe, traz dinheiro pra casa e nem se pergunta mais se é feliz. O que espanta sua família não é a forma grotesca que ele assume, mas o fato de não poder mais disfarçar. Aquela carapaça é apenas a versão visível do que todos preferem ignorar: o ser humano deformado pela obrigação e pela solidão.

No nosso cotidiano, quantos “Gregor Samsa” conhecemos? Gente que vive para os outros, que se afasta de si em nome de um papel social, que um dia acorda e não se reconhece mais. Pior ainda: que os outros olham e já não sabem como lidar com aquilo. E o mais cruel? Nem tentam.

A metamorfose não começa com o corpo.

A verdadeira metamorfose não é o que acontece com Gregor, mas com os outros. A irmã, que no início o alimenta com piedade, acaba por se cansar. Os pais, antes apenas confusos, passam a desejar que ele suma. Isso é familiar: quando deixamos de corresponder às expectativas, nos tornamos incômodos. Ser diferente é suportável até o momento em que isso exige mudança nos outros.

Quantos “insetos” já vimos largados pelos cantos? Gente que teve um colapso emocional e foi tratada como problema. Gente que saiu da norma — trocou de carreira, de gênero, de religião — e passou a ser vista como inconveniente. Kafka escancara o que a sociedade esconde: a intolerância ao que escapa da função utilitária.

O silêncio como grito

Gregor não fala. E ninguém tenta entender seus sons. Isso lembra aquelas conversas em que a gente se sente transparente, em que até tenta explicar o que sente, mas as palavras voltam como se tivessem batido em vidro. A incomunicabilidade em Kafka é desesperadora porque é familiar. O que é mais cotidiano do que não ser ouvido?

A metamorfose, no fundo, não é o corpo que muda. É a incapacidade de ser traduzido, de continuar aceito num mundo que só entende produtividade, aparência, obediência. Gregor para de trabalhar? É descartável. Ele para de agradar? É um peso morto.

A filosofia por trás da barata

Walter Benjamin via na obra de Kafka o eco de um mundo em colapso espiritual. Para ele, a metáfora da metamorfose revelava uma alienação sem cura. Mas podemos ir além. Talvez a metamorfose seja, também, um chamado. Um rasgo no tecido do costume, uma chance de enxergar que vivemos segundo formas que não escolhemos. Gregor é o herói trágico de uma era sem poesia: nos mostra como a estrutura social pode esmagar o humano.

E se metamorfosear fosse o único caminho?

Talvez Kafka tenha escrito um aviso disfarçado. E se precisamos, todos nós, passar pela metamorfose? Não pra virar inseto, mas pra deixar morrer o que já não somos. O incômodo, a rejeição, o isolamento – tudo isso pode ser sinal de que não cabemos mais na velha pele. E isso, por estranho que pareça, pode ser um bom sinal.

Porque, no fundo, metamorfosear-se é parar de fingir que está tudo bem. É um gesto de ruptura. E, embora o mundo talvez não goste, pode ser o início de algo muito mais verdadeiro. Até que um dia, quem sabe, a gente olhe no espelho e diga: agora sim, sou eu. Mesmo que com antenas.


domingo, 19 de janeiro de 2025

Forçada Obediência

A obediência forçada é um tema que atravessa séculos de filosofia, política e ética. Desde a submissão explícita a autoridades até as imposições mais sutis das normas sociais, o ato de obedecer sob coerção é uma experiência universal que revela tensões profundas entre o desejo de liberdade e as exigências de convivência em sociedade.

A Natureza da Obediência

Obedecer é, em essência, um ato de conformidade, uma aceitação da vontade de outro. Entretanto, quando a obediência é forçada, perde-se a liberdade do consentimento, transformando o que poderia ser uma escolha em uma obrigação. Isso levanta questões fundamentais: o que justifica a imposição? Quais são os limites da autoridade?

Hannah Arendt, em Eichmann em Jerusalém, destaca que a obediência cega pode transformar indivíduos comuns em agentes de atrocidades. Para Arendt, a banalidade do mal não surge de intenções perversas, mas da incapacidade de questionar as ordens recebidas. Assim, a obediência forçada não é apenas uma questão de submissão física, mas também de abdicação da autonomia moral.

Obediência e Contrato Social

Para filósofos como Thomas Hobbes, a obediência forçada é um mal necessário para evitar o caos. No estado de natureza, onde cada um luta por sua sobrevivência, surge a necessidade de um Leviatã – uma autoridade suprema que garanta a ordem. Nesse contexto, a coerção é justificada como um preço pela segurança.

Entretanto, Jean-Jacques Rousseau oferece uma crítica contundente a essa perspectiva. Em O Contrato Social, ele argumenta que "o homem nasce livre, mas por toda parte encontra-se acorrentado." Para Rousseau, a obediência legítima só existe quando o indivíduo participa ativamente da formação das leis às quais se submete. Caso contrário, a obediência forçada é um instrumento de opressão.

Cotidiano da Obediência Forçada

No dia a dia, a obediência forçada manifesta-se de forma menos evidente, mas igualmente impactante. Pense em um funcionário que segue ordens irracionais por medo de perder o emprego ou em um estudante que adere a regras rígidas por pressão institucional. Essas situações podem parecer triviais, mas revelam como estruturas hierárquicas moldam comportamentos e sufocam o potencial crítico.

No entanto, é interessante notar que a obediência nem sempre é totalmente forçada. Muitas vezes, ela é imposta por mecanismos psicológicos, como a internalização de normas sociais ou a busca por validação. Michel Foucault, em Vigiar e Punir, mostra como o poder disciplinar funciona de maneira sutil, tornando os indivíduos cúmplices de sua própria submissão. A força não precisa ser explícita; o controle está nos corpos, nos hábitos, nas instituições.

Resistência: Um Ato de Liberdade

A resistência à obediência forçada é um ato de afirmação da liberdade. Seja através de pequenos atos de desobediência civil, como os pregados por Henry David Thoreau, ou de grandes movimentos históricos, como a luta de Martin Luther King Jr., a desobediência pode ser uma forma legítima de questionar estruturas injustas.

Thoreau, em A Desobediência Civil, propõe que a verdadeira moralidade está em recusar-se a obedecer leis injustas, mesmo que isso implique consequências severas. Ele nos convida a refletir: obedecer é sempre a escolha mais ética?

A obediência forçada desafia nossa noção de autonomia e levanta uma questão central: até que ponto devemos nos submeter em nome da ordem e do bem coletivo? E onde traçamos a linha entre o necessário e o abusivo?

No fundo, o dilema da obediência é uma questão sobre o que significa ser humano. Somos seres sociais, mas também aspiramos à liberdade. Encontrar um equilíbrio entre esses impulsos contraditórios é o desafio constante de qualquer sociedade – e de cada indivíduo que nela vive.

Como diria Paulo Freire, "se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda." Talvez a resposta esteja em educar para a liberdade, ensinando a questionar, resistir e, quando necessário, desobedecer.