Acordei certa manhã com um pressentimento esquisito. O corpo estava o mesmo, mas o mundo ao redor parecia diferente. O café não tinha gosto, os vizinhos evitavam conversa, e o espelho, embora devolvesse meu rosto, me parecia um retrato antigo de alguém que já não sou mais. Não precisei virar um inseto gigante pra sentir que algo tinha virado de ponta-cabeça — bastou a rotina continuar igual enquanto, por dentro, tudo mudava. Kafka, com sua Metamorfose, não escreveu sobre uma barata. Escreveu sobre nós.
O
inseto não é Gregor: somos nós.
Gregor
Samsa não se transforma, ele revela. O inseto sempre esteve ali, escondido sob
a polidez de quem acorda cedo, pega trem lotado, aguenta chefe, traz dinheiro
pra casa e nem se pergunta mais se é feliz. O que espanta sua família não é a
forma grotesca que ele assume, mas o fato de não poder mais disfarçar. Aquela
carapaça é apenas a versão visível do que todos preferem ignorar: o ser humano
deformado pela obrigação e pela solidão.
No
nosso cotidiano, quantos “Gregor Samsa” conhecemos? Gente que vive para os
outros, que se afasta de si em nome de um papel social, que um dia acorda e não
se reconhece mais. Pior ainda: que os outros olham e já não sabem como lidar
com aquilo. E o mais cruel? Nem tentam.
A
metamorfose não começa com o corpo.
A
verdadeira metamorfose não é o que acontece com Gregor, mas com os outros. A
irmã, que no início o alimenta com piedade, acaba por se cansar. Os pais, antes
apenas confusos, passam a desejar que ele suma. Isso é familiar: quando
deixamos de corresponder às expectativas, nos tornamos incômodos. Ser diferente
é suportável até o momento em que isso exige mudança nos outros.
Quantos
“insetos” já vimos largados pelos cantos? Gente que teve um colapso emocional e
foi tratada como problema. Gente que saiu da norma — trocou de carreira, de
gênero, de religião — e passou a ser vista como inconveniente. Kafka escancara
o que a sociedade esconde: a intolerância ao que escapa da função utilitária.
O
silêncio como grito
Gregor
não fala. E ninguém tenta entender seus sons. Isso lembra aquelas conversas em
que a gente se sente transparente, em que até tenta explicar o que sente, mas
as palavras voltam como se tivessem batido em vidro. A incomunicabilidade em
Kafka é desesperadora porque é familiar. O que é mais cotidiano do que não ser
ouvido?
A
metamorfose, no fundo, não é o corpo que muda. É a incapacidade de ser
traduzido, de continuar aceito num mundo que só entende produtividade,
aparência, obediência. Gregor para de trabalhar? É descartável. Ele para de
agradar? É um peso morto.
A
filosofia por trás da barata
Walter
Benjamin via na obra de Kafka o eco de um mundo em colapso espiritual. Para
ele, a metáfora da metamorfose revelava uma alienação sem cura. Mas podemos ir
além. Talvez a metamorfose seja, também, um chamado. Um rasgo no tecido do
costume, uma chance de enxergar que vivemos segundo formas que não escolhemos.
Gregor é o herói trágico de uma era sem poesia: nos mostra como a estrutura
social pode esmagar o humano.
E
se metamorfosear fosse o único caminho?
Talvez
Kafka tenha escrito um aviso disfarçado. E se precisamos, todos nós, passar
pela metamorfose? Não pra virar inseto, mas pra deixar morrer o que já não
somos. O incômodo, a rejeição, o isolamento – tudo isso pode ser sinal de que
não cabemos mais na velha pele. E isso, por estranho que pareça, pode ser um
bom sinal.
Porque,
no fundo, metamorfosear-se é parar de fingir que está tudo bem. É um gesto de
ruptura. E, embora o mundo talvez não goste, pode ser o início de algo muito
mais verdadeiro. Até que um dia, quem sabe, a gente olhe no espelho e diga:
agora sim, sou eu. Mesmo que com antenas.