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sexta-feira, 18 de abril de 2025

Metamorfose Humana

Acordei certa manhã com um pressentimento esquisito. O corpo estava o mesmo, mas o mundo ao redor parecia diferente. O café não tinha gosto, os vizinhos evitavam conversa, e o espelho, embora devolvesse meu rosto, me parecia um retrato antigo de alguém que já não sou mais. Não precisei virar um inseto gigante pra sentir que algo tinha virado de ponta-cabeça — bastou a rotina continuar igual enquanto, por dentro, tudo mudava. Kafka, com sua Metamorfose, não escreveu sobre uma barata. Escreveu sobre nós.

O inseto não é Gregor: somos nós.

Gregor Samsa não se transforma, ele revela. O inseto sempre esteve ali, escondido sob a polidez de quem acorda cedo, pega trem lotado, aguenta chefe, traz dinheiro pra casa e nem se pergunta mais se é feliz. O que espanta sua família não é a forma grotesca que ele assume, mas o fato de não poder mais disfarçar. Aquela carapaça é apenas a versão visível do que todos preferem ignorar: o ser humano deformado pela obrigação e pela solidão.

No nosso cotidiano, quantos “Gregor Samsa” conhecemos? Gente que vive para os outros, que se afasta de si em nome de um papel social, que um dia acorda e não se reconhece mais. Pior ainda: que os outros olham e já não sabem como lidar com aquilo. E o mais cruel? Nem tentam.

A metamorfose não começa com o corpo.

A verdadeira metamorfose não é o que acontece com Gregor, mas com os outros. A irmã, que no início o alimenta com piedade, acaba por se cansar. Os pais, antes apenas confusos, passam a desejar que ele suma. Isso é familiar: quando deixamos de corresponder às expectativas, nos tornamos incômodos. Ser diferente é suportável até o momento em que isso exige mudança nos outros.

Quantos “insetos” já vimos largados pelos cantos? Gente que teve um colapso emocional e foi tratada como problema. Gente que saiu da norma — trocou de carreira, de gênero, de religião — e passou a ser vista como inconveniente. Kafka escancara o que a sociedade esconde: a intolerância ao que escapa da função utilitária.

O silêncio como grito

Gregor não fala. E ninguém tenta entender seus sons. Isso lembra aquelas conversas em que a gente se sente transparente, em que até tenta explicar o que sente, mas as palavras voltam como se tivessem batido em vidro. A incomunicabilidade em Kafka é desesperadora porque é familiar. O que é mais cotidiano do que não ser ouvido?

A metamorfose, no fundo, não é o corpo que muda. É a incapacidade de ser traduzido, de continuar aceito num mundo que só entende produtividade, aparência, obediência. Gregor para de trabalhar? É descartável. Ele para de agradar? É um peso morto.

A filosofia por trás da barata

Walter Benjamin via na obra de Kafka o eco de um mundo em colapso espiritual. Para ele, a metáfora da metamorfose revelava uma alienação sem cura. Mas podemos ir além. Talvez a metamorfose seja, também, um chamado. Um rasgo no tecido do costume, uma chance de enxergar que vivemos segundo formas que não escolhemos. Gregor é o herói trágico de uma era sem poesia: nos mostra como a estrutura social pode esmagar o humano.

E se metamorfosear fosse o único caminho?

Talvez Kafka tenha escrito um aviso disfarçado. E se precisamos, todos nós, passar pela metamorfose? Não pra virar inseto, mas pra deixar morrer o que já não somos. O incômodo, a rejeição, o isolamento – tudo isso pode ser sinal de que não cabemos mais na velha pele. E isso, por estranho que pareça, pode ser um bom sinal.

Porque, no fundo, metamorfosear-se é parar de fingir que está tudo bem. É um gesto de ruptura. E, embora o mundo talvez não goste, pode ser o início de algo muito mais verdadeiro. Até que um dia, quem sabe, a gente olhe no espelho e diga: agora sim, sou eu. Mesmo que com antenas.


domingo, 4 de agosto de 2024

Pensar kafkiano

Pensar "kafkiano", quem é que não entrou neste labirinto? pensar “Kafkiano “é entrar em um labirinto de absurdos e burocracias sufocantes, onde o cotidiano se transforma em uma trama de perplexidades. Franz Kafka, com suas histórias que beiram o surreal, nos convida a refletir sobre a angústia existencial e a impotência diante de um sistema imperscrutável e opressor.

Imagine-se num dia comum, indo ao trabalho. Você entra no escritório, cumprimenta os colegas, e então recebe uma convocação para uma reunião urgente. Nada fora do comum, exceto pelo fato de que ninguém sabe quem a convocou, qual o motivo, ou mesmo onde será realizada. Todos parecem estar apenas seguindo ordens invisíveis, num ritmo automático, sem questionamentos.

Kafka descreve esse sentimento em obras como "O Processo" e "A Metamorfose". Em "O Processo", Josef K. é preso sem saber o motivo, e ao longo da narrativa, sua busca por respostas o leva a um labirinto de salas de tribunais, arquivos e figuras de autoridade que nunca lhe dão uma resposta clara. É uma crítica mordaz à burocracia e ao sentimento de desamparo que ela pode causar.

Agora, traga isso para sua vida. Você já sentiu que estava lutando contra algo invisível? Talvez seja a burocracia do serviço público, onde cada passo parece levar a outro beco sem saída, ou talvez seja aquela sensação de que suas ações não têm impacto real, como se estivesse preso em uma teia de regras que ninguém entende completamente.

O filósofo Albert Camus, em seu ensaio "O Mito de Sísifo", toca em pontos similares. Ele descreve a vida como um ato repetitivo e aparentemente sem sentido, comparando-a ao mito de Sísifo, que foi condenado a rolar uma pedra morro acima apenas para vê-la rolar de volta ao ponto de partida. Camus, no entanto, sugere que devemos imaginar Sísifo feliz, encontrando significado na própria luta.

Pensar kafkiano nos força a confrontar a realidade absurda e, ao fazê-lo, nos desafia a encontrar algum sentido ou revolta pessoal contra o sistema opressivo. Talvez seja essa a mensagem oculta nas histórias de Kafka: embora possamos nos sentir como peões em um jogo incompreensível, temos a capacidade de resistir, de buscar compreensão e, finalmente, de afirmar nossa própria existência contra as forças que tentam nos diminuir.

Então, quando você se encontrar em um labirinto burocrático ou sentindo-se esmagado pela absurda complexidade do cotidiano, lembre-se de Kafka e Camus. Permita-se questionar, resistir e, acima de tudo, encontrar significado na sua jornada, mesmo que o caminho pareça kafkiano demais para ser real.