Entre Natureza e Metafísica da Pessoa
Existe
algo em nós que sentimos como essencial, como parte do que somos. Ainda
assim, há experiências, estados e modos de ser que, embora pareçam brotar do
mais íntimo de nossa identidade, desaparecem com o tempo. Chamá-los de
“temporários” parece simples; o problema filosófico começa quando esses estados
parecem não apenas vir de dentro, mas definir quem somos naquele
momento. Como, então, reconciliar a permanência do ser com a fugacidade do
vivido?
Neste
ensaio, vamos pensar o “intrínseco temporário” a partir de dois pensadores
distintos, mas surpreendentemente complementares: C. S. Lewis, com sua
defesa de uma natureza humana objetiva e uma ordem moral transcendente; e E.
J. Lowe, com sua ontologia de quatro categorias e distinção entre essência
e identidade pessoal.
Lewis:
a essência que clama por permanência
Em
A Abolição do Homem, Lewis denuncia o colapso da objetividade moral em
nome de um relativismo subjetivista. Ele defende que há algo no humano que deve
ser cultivado porque pertence à nossa natureza — o que ele chama de
"Tao", a lei moral universal. Para Lewis, o ser humano é uma criatura
com um núcleo objetivo, que reconhece a beleza, o bem e a verdade, não por
construção cultural, mas por sintonização com a ordem real do universo.
Mas
e quando uma experiência passageira — um amor, uma angústia, uma crise — parece
tomar o lugar desse núcleo? Lewis não negaria a profundidade das emoções, mas
as colocaria sob julgamento da alma racional. O que sentimos pode parecer
intrínseco, mas o que é verdadeiramente nosso é aquilo que se alinha com o
eterno.
E
é aí que entra o problema: se nos sentimos profundamente autênticos em algo
passageiro, foi aquilo parte da nossa essência — ou uma ilusão convincente?
Lowe:
identidade, essência e persistência no tempo
E.
J. Lowe, por sua vez, nos oferece ferramentas mais analíticas. Em sua
ontologia, ele propõe quatro categorias: substâncias, atributos, modos e
universais. Uma pessoa é uma substância, dotada de atributos (como
inteligência), modos (como ser introvertido num certo momento da vida), e
relação com universais (como a justiça ou a coragem).
Para
Lowe, a identidade pessoal não se confunde com a essência, e tampouco
com os atributos passageiros. Um sujeito pode ser, num período da vida,
corajoso, mas não ter a coragem como parte de sua essência. Ainda assim,
naquele intervalo, a coragem se manifesta como se fosse uma verdade absoluta.
É
aqui que encontramos o espaço para o “intrínseco temporário”: aquilo que, por
um tempo, participa da essência, sem fazer parte dela. Uma espécie de modo
existencial intenso que parece definidor, mas é apenas um episódio
profundamente enraizado — como uma tatuagem que desaparece.
Intrínseco,
mas não essencial
Ao
unir Lewis e Lowe, podemos afirmar: o “intrínseco temporário” é um modo de
ser que se aloja profundamente na identidade, mas não a define para sempre.
É um estado que vem de dentro, mas não é o centro. Ele revela, mas não fixa.
Como se certas experiências tivessem a capacidade de ficar essenciais
por um tempo, antes de se dissolverem na continuidade do ser.
Não
é que elas não tenham importância — pelo contrário, talvez sejam as que mais
nos transformam. Elas atuam como pontes entre o efêmero e o eterno,
entre o modo e a substância, entre o sentimento e a vocação. E podem nos
preparar para compreender aquilo que, no fundo, deveria ser intrínseco e
eterno.
A
alma em transição
O
conceito de “intrínseco temporário” pode parecer contraditório à primeira
vista. Mas talvez ele seja o melhor retrato da condição humana: somos seres
em formação, com breves moradas do eterno dentro do transitório.
Lewis
nos lembra da necessidade de ancorar nosso ser num bem permanente. Lowe nos
ajuda a ver que a identidade é complexa, feita de camadas que se revelam e se
esvaem. Entre os dois, emerge a figura da alma em transição — moldada por
paixões, marcada por dores, aberta ao que é maior que ela.
Ser,
afinal, talvez seja isso: viver estados que parecem essenciais, apenas para
descobrir, mais tarde, que nos preparavam para o que realmente é.
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