Quando a lógica escorrega no próprio sapato...
Recordo
que numa aula de lógica, um colega perguntou: "Se tudo o que participa de
uma ideia é semelhante a ela, então por que precisamos de mais uma ideia para
explicar essa semelhança?". A turma parou. O professor coçou a cabeça. E
eu me lembrei de Aristóteles, que já tinha feito essa pergunta dois mil e
tantos anos atrás — com um toque de ironia e muita precisão. Era o famoso
problema do terceiro homem.
E
não, não tem nada a ver com filmes de espionagem nem com identidades secretas.
Tem a ver com lógica pura. Ou melhor, com o limite da lógica quando ela tenta
explicar o mundo com ideias demais.
A
ideia da ideia da ideia...
Vamos
supor que você está tentando entender o que é o conceito de "homem".
Platão diria: existe um mundo das Formas, onde está a Forma perfeita do
Homem. Tudo o que é humano participa dessa Forma. Até aí, beleza.
Mas
Aristóteles levanta uma sobrancelha: “Se Sócrates, Platão e Aristóteles são
todos homens porque participam da Forma 'Homem', e essa Forma também é
semelhante a eles (afinal, é um Homem), então ela também participa de outra
Forma superior. E assim por diante.”
Resultado?
Para explicar o que é um homem, precisaríamos de uma infinita escadaria de
Formas de Homens. Um labirinto lógico. E o conceito de "Homem"
nunca chega a lugar nenhum. A lógica implode em si mesma.
Forma
x Substância: onde mora a realidade?
Aqui
entra a diferença fundamental entre Platão e Aristóteles. Platão acreditava que
a realidade verdadeira estava nas Formas, essas ideias puras, perfeitas,
imutáveis — que vivem num tipo de “céu” metafísico. As coisas que vemos aqui
são apenas sombras imperfeitas dessas ideias eternas.
Já
Aristóteles dava um passo diferente: ele dizia que o que existe de verdade é o
que está aqui, composto de matéria e forma. E que não precisamos de uma
Forma separada para entender o que uma coisa é — a forma está na própria
coisa, como a receita está no próprio bolo, não numa padaria celestial.
Portanto,
para Platão, buscamos a explicação do "Homem" em outra dimensão, no
mundo das ideias. Para Aristóteles, olhamos para o ser humano real e vemos ali
a substância: corpo (matéria) e alma (forma) juntos,
inseparáveis.
A
crítica do Terceiro Homem é, no fundo, uma defesa aristotélica de que as
explicações não devem se afastar demais do mundo que pisamos.
O
Terceiro no cotidiano: quando a explicação vira vício
Essa
ideia pode parecer distante, mas ela aparece o tempo todo no dia a dia. Já viu
alguém que precisa sempre de mais uma justificativa para tudo? Você diz:
"Isso é errado". A pessoa pergunta: "Por quê?" Você
responde: "Porque prejudica os outros". E ela: "E por que isso é
ruim?" — e assim vai, como uma criança que sempre pergunta "por
quê" até a paciência acabar.
A
busca infinita por uma explicação superior pode levar ao mesmo paradoxo do
Terceiro Homem: você nunca chega a uma conclusão sólida, porque está sempre
querendo fundamentar o fundamento.
O
risco de confiar demais em modelos ideais
O
argumento do terceiro homem é uma crítica à obsessão platônica por ideias
perfeitas. Aristóteles está dizendo: cuidado com essa mania de criar Formas
para explicar tudo. Às vezes, a própria realidade, com suas imperfeições,
explica mais do que o ideal.
Na
prática? Esperar por um “amor ideal” pode impedir alguém de enxergar a beleza
de um afeto real. Procurar a “amizade perfeita” pode cegar para companheiros
leais que não cabem na teoria. O terceiro homem é aquele ideal inatingível que
aparece toda vez que recusamos aceitar o mundo como ele é.
As
vezes o segundo basta
O
argumento do terceiro homem mostra que a lógica, se não for bem calibrada,
entra em loop. E que talvez seja melhor ficar com o segundo homem mesmo —
aquele que está aqui, de carne e osso, sem precisar de uma essência metafísica
para existir.
Aristóteles
nos lembra que buscar a essência pode ser nobre, mas que a realidade concreta
tem sua própria dignidade. Às vezes, é mais sábio parar de criar ideias sobre
ideias e simplesmente viver com aquilo que já faz sentido.
Como
diria um velho professor de lógica: o problema do terceiro homem começa
quando a gente tem vergonha do segundo.
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