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quinta-feira, 22 de maio de 2025

O Intrínseco Temporário

Entre Natureza e Metafísica da Pessoa

Existe algo em nós que sentimos como essencial, como parte do que somos. Ainda assim, há experiências, estados e modos de ser que, embora pareçam brotar do mais íntimo de nossa identidade, desaparecem com o tempo. Chamá-los de “temporários” parece simples; o problema filosófico começa quando esses estados parecem não apenas vir de dentro, mas definir quem somos naquele momento. Como, então, reconciliar a permanência do ser com a fugacidade do vivido?

Neste ensaio, vamos pensar o “intrínseco temporário” a partir de dois pensadores distintos, mas surpreendentemente complementares: C. S. Lewis, com sua defesa de uma natureza humana objetiva e uma ordem moral transcendente; e E. J. Lowe, com sua ontologia de quatro categorias e distinção entre essência e identidade pessoal.

Lewis: a essência que clama por permanência

Em A Abolição do Homem, Lewis denuncia o colapso da objetividade moral em nome de um relativismo subjetivista. Ele defende que há algo no humano que deve ser cultivado porque pertence à nossa natureza — o que ele chama de "Tao", a lei moral universal. Para Lewis, o ser humano é uma criatura com um núcleo objetivo, que reconhece a beleza, o bem e a verdade, não por construção cultural, mas por sintonização com a ordem real do universo.

Mas e quando uma experiência passageira — um amor, uma angústia, uma crise — parece tomar o lugar desse núcleo? Lewis não negaria a profundidade das emoções, mas as colocaria sob julgamento da alma racional. O que sentimos pode parecer intrínseco, mas o que é verdadeiramente nosso é aquilo que se alinha com o eterno.

E é aí que entra o problema: se nos sentimos profundamente autênticos em algo passageiro, foi aquilo parte da nossa essência — ou uma ilusão convincente?

Lowe: identidade, essência e persistência no tempo

E. J. Lowe, por sua vez, nos oferece ferramentas mais analíticas. Em sua ontologia, ele propõe quatro categorias: substâncias, atributos, modos e universais. Uma pessoa é uma substância, dotada de atributos (como inteligência), modos (como ser introvertido num certo momento da vida), e relação com universais (como a justiça ou a coragem).

Para Lowe, a identidade pessoal não se confunde com a essência, e tampouco com os atributos passageiros. Um sujeito pode ser, num período da vida, corajoso, mas não ter a coragem como parte de sua essência. Ainda assim, naquele intervalo, a coragem se manifesta como se fosse uma verdade absoluta.

É aqui que encontramos o espaço para o “intrínseco temporário”: aquilo que, por um tempo, participa da essência, sem fazer parte dela. Uma espécie de modo existencial intenso que parece definidor, mas é apenas um episódio profundamente enraizado — como uma tatuagem que desaparece.

Intrínseco, mas não essencial

Ao unir Lewis e Lowe, podemos afirmar: o “intrínseco temporário” é um modo de ser que se aloja profundamente na identidade, mas não a define para sempre. É um estado que vem de dentro, mas não é o centro. Ele revela, mas não fixa. Como se certas experiências tivessem a capacidade de ficar essenciais por um tempo, antes de se dissolverem na continuidade do ser.

Não é que elas não tenham importância — pelo contrário, talvez sejam as que mais nos transformam. Elas atuam como pontes entre o efêmero e o eterno, entre o modo e a substância, entre o sentimento e a vocação. E podem nos preparar para compreender aquilo que, no fundo, deveria ser intrínseco e eterno.

A alma em transição

O conceito de “intrínseco temporário” pode parecer contraditório à primeira vista. Mas talvez ele seja o melhor retrato da condição humana: somos seres em formação, com breves moradas do eterno dentro do transitório.

Lewis nos lembra da necessidade de ancorar nosso ser num bem permanente. Lowe nos ajuda a ver que a identidade é complexa, feita de camadas que se revelam e se esvaem. Entre os dois, emerge a figura da alma em transição — moldada por paixões, marcada por dores, aberta ao que é maior que ela.

Ser, afinal, talvez seja isso: viver estados que parecem essenciais, apenas para descobrir, mais tarde, que nos preparavam para o que realmente é.

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Refutar Crenças

A gente vive cheio de crenças, mesmo que nem sempre perceba. Algumas delas são simples, como acreditar que o café vai te dar um ânimo extra pela manhã. Outras são mais profundas, como aquelas que moldam a nossa visão de mundo, do que é certo ou errado, do que nos faz felizes. Mas o que acontece quando tentamos questionar ou, melhor ainda, refutar essas crenças que parecem tão fundamentais? Será que dá pra convencer alguém de que aquilo que sempre acreditou pode estar errado? Ou será que, no fundo, algumas crenças são inabaláveis? Neste ensaio, vamos explorar o que significa refutar uma crença e até onde isso é possível.

Refutar o elemento fundamental das crenças pode parecer uma tarefa complicada, porque crenças, de modo geral, sustentam muito do que chamamos de realidade. Mas antes de adentrar o que significa "refutar" as crenças, é importante definir o que entendemos por "elemento fundamental das crenças". Isso se refere àquilo que serve como alicerce para a estrutura da crença, o ponto de apoio no qual uma ideia se ergue e se torna significativa para quem a sustenta.

O que são crenças?

As crenças são convicções ou suposições que tomamos como verdadeiras, quer sejam sustentadas por evidências racionais, experiências pessoais ou tradições culturais. Elas formam a base da nossa compreensão do mundo e influenciam a maneira como tomamos decisões. No entanto, nem todas as crenças são baseadas em evidências verificáveis; algumas são, na verdade, sustentadas por confiança ou fé.

Tomemos como exemplo crenças religiosas, que frequentemente dependem de uma narrativa de fé, não de evidências científicas. O elemento fundamental aqui é uma confiança no transcendente, naquilo que não pode ser provado empiricamente. Já crenças científicas são geralmente fundamentadas na observação e repetição de resultados, com seu elemento base sendo a experiência e a experimentação verificável.

Refutar: É possível?

A refutação de uma crença só é possível quando sua estrutura permite um exame crítico. Quando falamos de crenças baseadas em evidências, é mais fácil propor refutações, porque existem parâmetros verificáveis. Se alguém acredita que a Terra é plana, por exemplo, isso pode ser testado e, consequentemente, refutado com base em evidências científicas.

Por outro lado, refutar crenças subjetivas ou espirituais é muito mais difícil, porque elas não dependem de parâmetros objetivos que possam ser medidos ou analisados de maneira convencional. Aqui entramos na famosa citação de Wittgenstein: “Onde não se pode falar, deve-se calar”. Ele reflete sobre os limites da linguagem e da lógica ao lidar com coisas como crenças religiosas ou metafísicas, que escapam ao domínio do que pode ser refutado ou verificado.

O problema da "Verdade"

A questão central ao refutar uma crença é que a própria ideia de “verdade” é frequentemente relativa ao ponto de vista do indivíduo. Aquilo que é verdadeiro para um crente pode ser considerado ilusório para outro. O filósofo francês Michel Foucault, por exemplo, argumentava que a verdade não é algo universal, mas sim o produto de relações de poder e discurso dentro de uma sociedade. Refutar uma crença, nesse sentido, é também desafiar o sistema que a sustenta.

Assim, quando tentamos refutar uma crença fundamental, o que estamos fazendo é, na verdade, desafiando o sistema inteiro de valores, práticas e narrativas que a constroem. Isso não é apenas um ato de negação, mas um ato de subversão da realidade percebida. Quando alguém deixa de acreditar em algo, não está apenas mudando de opinião, mas, de certo modo, alterando sua própria realidade.

A Fé e o Inatacável

Algumas crenças se estabelecem de tal maneira que se tornam inatacáveis, pelo menos para quem as professa. Pense em como a fé é vista por aqueles que a têm: ela transcende o campo do questionamento racional. C. S. Lewis, em Mero Cristianismo, fala sobre como a fé não é só acreditar em algo, mas também persistir nessa crença mesmo quando as emoções ou circunstâncias nos impelem a abandoná-la. A fé, portanto, resiste à refutação porque se coloca além da razão.

Refutando crenças cotidianas

Em contextos mais mundanos, crenças sobre o funcionamento do mundo também podem ser desafiadas. Por exemplo, alguém pode ter a crença de que a felicidade só vem com o sucesso material. Essa crença pode ser refutada a partir de exemplos da vida cotidiana, mostrando que muitas pessoas encontram satisfação em outros aspectos da vida, como em relações pessoais ou na autorrealização.

Aqui, o que estamos refutando é a ideia de que há uma conexão necessária entre riqueza e felicidade. No entanto, para quem sustenta essa crença, pode não ser uma refutação simples, pois toda a sua visão de mundo e suas ações estão ancoradas nessa premissa.

Refutar o elemento fundamental das crenças exige um desafio direto ao sistema que sustenta essas crenças. No caso de crenças baseadas em evidências, esse processo pode ser mais claro e direto. Já no caso de crenças subjetivas, espirituais ou ligadas à fé, a tarefa é muito mais complexa e, talvez, até impossível. O ato de refutar, nesse sentido, não é só um exercício de lógica, mas um enfrentamento da própria realidade que as pessoas constroem para si. E, como tal, a refutação não é um ato de destruição simples, mas sim de questionamento profundo, que mexe com a própria percepção do que é real e do que vale a pena acreditar. 

segunda-feira, 8 de julho de 2024

Abolição do Homem

Quando pensamos em grandes obras que desafiam nossa perspectiva sobre a humanidade e o mundo ao nosso redor, "A Abolição do Homem" de C. S. Lewis certamente se destaca. Publicado em 1943, este livro não é apenas uma crítica contundente ao positivismo e ao relativismo moral, mas também uma chamada urgente para preservar o que é essencialmente humano em face das tecnologias e ideologias que podem nos desumanizar.

C. S. Lewis, conhecido por suas obras de ficção e não ficção que exploram temas filosóficos e teológicos, neste livro nos alerta sobre os perigos de uma sociedade que busca controlar a natureza e a própria humanidade sem levar em conta os valores éticos e morais fundamentais. Em um mundo cada vez mais dominado pela tecnologia e pela ciência, suas palavras ressoam profundamente hoje, mais do que nunca.

Lewis argumenta que não podemos separar nossas emoções, intuições morais e busca por verdades universais da nossa existência humana. Esses elementos são essenciais para nossa compreensão do que é ser humano e para a manutenção de uma sociedade justa e moralmente fundamentada. Quando tentamos manipular ou ignorar esses aspectos, corremos o risco de nos desumanizar, perdendo de vista a verdadeira dignidade e o propósito da nossa existência.

No contexto contemporâneo, onde debates sobre ética, moralidade e avanços tecnológicos estão em constante evolução, "A Abolição do Homem" nos lembra da importância de uma reflexão crítica sobre as consequências de nossas ações. Em nossas decisões diárias, seja na política, na ciência, na educação ou na tecnologia, precisamos considerar como nossas escolhas afetam não apenas o presente, mas também o futuro da humanidade.

Além disso, o livro de Lewis nos convida a questionar as narrativas dominantes que podem tentar moldar nossas visões de mundo sem considerar os princípios éticos que deveriam guiar nossas vidas. Ele nos encoraja a defender os valores que realmente importam, mesmo que isso signifique ir contra a corrente do pensamento popular ou das convenções sociais.

Em suma, "A Abolição do Homem" é mais do que uma crítica filosófica; é um lembrete vívido e pertinente sobre a necessidade urgente de preservar nossa humanidade em um mundo que muitas vezes parece determinado a reduzi-la a números e fatos. É um chamado para a ação moral e ética em um tempo em que tais princípios podem parecer cada vez mais raros. Portanto, ao refletir sobre as palavras profundas de C. S. Lewis, podemos encontrar orientação valiosa para navegar nos desafios éticos e morais do nosso próprio tempo.