Coisa difícil olhar sem julgar...
Outro
dia, numa fila de padaria, um senhor comentava com indignação sobre um jovem
tatuado que estava à frente, dizendo algo como: “Esses de hoje em dia não
respeitam nada”. Ninguém respondeu, mas ficou aquele silêncio meio
constrangido. O senhor não sabia nada sobre o rapaz — nem seu nome, nem sua
história, nem se ajudava a mãe doente ou lia poesia russa à noite. Apenas
julgou. E eu fiquei pensando: como a gente tem dificuldade de observar o outro sem
já carregar um julgamento pronto na mochila.
Essa
mania de “colocar adjetivo em tudo” não é só uma questão de educação. É também
um desafio para quem tenta estudar o mundo social com seriedade. Por isso, Max
Weber cunhou um conceito que hoje ainda soa radical para muita gente: neutralidade
axiológica. A ideia de olhar um fenômeno sem misturar os próprios
valores pessoais no meio da análise. Em outras palavras: observar,
registrar, compreender — mas não transformar tudo numa pregação moral.
Weber
não era ingênuo. Sabia que ninguém é uma folha em branco. Todo pesquisador tem
ideais, crenças, paixões políticas. Mas ele dizia: quando estudamos a
sociedade, é preciso tentar separar o que é um fato do que é uma opinião.
Isso não significa virar uma pedra ou fingir que não sentimos nada. Significa
ter o compromisso de não impor nossos valores ao objeto estudado, mas
sim escutá-lo com atenção, mesmo que ele nos incomode.
Um
exemplo bem cotidiano: um sociólogo estudando o tráfico de drogas numa
comunidade não pode chegar já dizendo que todos ali são bandidos. Ele precisa
entender o contexto, as escolhas limitadas, as redes de poder, as relações de
sobrevivência. Se ele já entra com a moral pronta, fecha os olhos para a
complexidade do real. E aí, ao invés de ciência, faz panfleto.
Na
vida cotidiana, esse esforço de neutralidade pode até parecer impossível — e
talvez seja mesmo, no sentido pleno. Mas isso não quer dizer que não valha a
tentativa. Talvez, mais do que uma técnica científica, a neutralidade
axiológica seja um exercício ético: o de dar ao outro o direito de existir
sem ser imediatamente rotulado.
O
filósofo brasileiro José Arthur Giannotti dizia que pensar exige “rigor
e delicadeza”. Rigor para não nos deixarmos levar pelos ventos fáceis da
opinião. Delicadeza para acolher o que é diferente de nós. Neutralidade
axiológica é isso: um gesto de respeito. Um silêncio que escuta antes de falar.
Uma espera que observa antes de bater o martelo.
Talvez,
se aquele senhor da padaria tivesse esse olhar, visse no jovem tatuado não uma
ameaça, mas uma história. Talvez visse nele alguém tão humano quanto ele
próprio. E, quem sabe, se interessasse mais pelo pão quentinho do que pela vida
alheia.
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