A palavra “hipocrisia” costuma vir carregada de desprezo. É o que se diz quando alguém prega uma coisa e faz outra, quando aparenta virtude mas age por interesse, quando encena uma moral que não pratica. E, de fato, a hipocrisia pode ser um modo sorrateiro de manipular. Mas e se, por um instante, a gente a olhasse por outro ângulo? Existe uma ética — ainda que incômoda — na hipocrisia?
Na
vida em sociedade, todos interpretamos papéis. Cumprimentamos pessoas que não
gostamos, fingimos paciência onde há irritação, sorrimos em situações que nos
desagradam. Não se trata apenas de falsidade, mas de convivência. A hipocrisia,
nesse nível mínimo, funciona quase como um lubrificante social. Evita atritos
constantes, preserva aparências que facilitam o diálogo e permitem a
coexistência.
É
claro que existe a hipocrisia cruel — aquela que prega virtude para oprimir,
que se reveste de ética para esconder o abuso. Mas também existe uma hipocrisia
que é, paradoxalmente, civilizatória: aquela que mascara os instintos mais
egoístas em nome de um convívio menos selvagem. Como dizia La Rochefoucauld,
“a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude.” Ou seja, até quem
não é virtuoso precisa fingir que é — o que, por si só, revela um ideal ainda
em vigor.
Pensemos
na escola: o professor exige respeito, mesmo que não goste de todos os alunos.
O aluno finge atenção, mesmo que esteja entediado. Mas esse jogo mantém a sala
funcionando. Ou nas relações profissionais: ninguém gosta de uma reunião, mas
todos comparecem, fazem comentários positivos, elogiam os esforços. Hipocrisia?
Sim. Mas também um modo de manter a paz, de evitar o caos.
O
filósofo esloveno Slavoj Žižek comenta que a hipocrisia, ao menos,
reconhece uma norma. O verdadeiro perigo, diz ele, é o cinismo total, quando já
não se finge sequer um ideal — quando se age com crueldade ou desrespeito,
dizendo: “é isso mesmo, e daí?” Nesse caso, a hipocrisia desaparece, mas o
vínculo ético também.
Portanto,
a ética da hipocrisia está em sua função de mediação. Ela é feia,
desconfortável, mas talvez inevitável. O problema começa quando a hipocrisia se
torna tão refinada que esquece sua função inicial — aí, sim, vira disfarce para
o abuso, escudo para a injustiça.
O
desafio está em reconhecer quando ela nos protege do conflito... e quando nos
afasta da verdade.
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