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quinta-feira, 12 de junho de 2025

O Banquete

O amor não pede licença!

Este ensaio tem como base a obra O Banquete de Platão, escrita no século IV a.C., na qual diversos personagens — entre eles Sócrates, Aristófanes e Agatão — se reúnem para discursar sobre a natureza do amor (Eros). O texto, estruturado como um diálogo filosófico e literário, explora diferentes concepções de amor, desde o desejo físico até a contemplação do Belo absoluto, sendo uma das mais influentes reflexões da tradição ocidental sobre o tema.

Tem gente que acha que falar de amor é coisa de poeta meloso ou de livro de autoajuda de aeroporto. Mas basta um encontro casual no metrô, uma mensagem não respondida, ou aquele silêncio constrangedor no jantar para percebermos: o amor é uma força estranha que atravessa tudo — inclusive quem não quer papo com ele. E é justamente por essa força indomável que O Banquete, de Platão, continua a ser um texto desconcertante. Lá estão Sócrates, Aristófanes, Fedro, Agatão e companhia, cada um tentando definir o tal Eros como quem tenta agarrar vento com as mãos.

Mas talvez o maior erro de leitura seja encarar O Banquete como um tratado sobre o amor apenas entre corpos ou entre almas. O texto é também sobre outra coisa: o impulso que nos arranca do lugar em que estamos e nos faz querer o que não temos. Não importa o objeto — beleza, sabedoria, eternidade ou poder —, amar é sempre uma falta. Um furo no tecido do real. Um buraco que nem mesmo os deuses escapam de sentir.

Aristófanes, com seu mito dos andróginos partidos, aposta numa visão engraçada e melancólica: éramos inteiros, fomos divididos, e agora vagamos incompletos atrás de nossa outra metade. Uma visão romântica que ainda alimenta aplicativos de namoro, filmes da Sessão da Tarde e promessas de “alma gêmea”. Mas há algo de trágico nisso: quem garante que vamos mesmo encontrar esse pedaço perdido? E se formos condenados a desejar para sempre?

Aí entra Sócrates, com sua cara de quem sabe algo que não diz. Ele fala de uma outra forma de amor, passada para ele por Diotima: o Eros que começa no corpo, mas não para nele; que escala degrau por degrau até o amor das ideias puras, da Beleza em si. Uma pirâmide de desejo que, no topo, esquece o cheiro da pele, o calor do toque, o suor do abraço. Um amor que deixa o humano para se dissolver no divino. Bonito? Sim. Satisfatório? Nem tanto.

Aqui um em tempo para falar de Diotima: Diotima de Mantineia foi uma sacerdotisa e filósofa grega antiga, conhecida por sua influência no pensamento de Sócrates, especialmente em relação ao amor. Ela é apresentada no diálogo "Banquete" de Platão, onde Sócrates a descreve como sua mentora e ensinadora sobre o amor (Eros). 

Prosseguindo. E se O Banquete for, no fundo, uma confissão de que amar é impossível de resolver? De que não há saída justa entre o corpo e o espírito, entre o desejo que quer possuir e o ideal que quer contemplar? Talvez por isso o texto termine como termina: com Alcibíades bêbado invadindo a festa e bagunçando o jogo filosófico com sua paixão descontrolada por Sócrates. Um lembrete incômodo: a carne não deixa ninguém subir a escada de Diotima sem antes puxar pelos calcanhares.

O amor, no fundo, é uma contradição ambulante. É impulso vital e desordem. É aspiração à imortalidade e consciência dolorida da nossa finitude. Quer eternizar, mas não dura. Quer possuir, mas foge. É por isso que O Banquete segue vivo: porque não entrega uma resposta, e sim um campo de tensão onde cada leitor — como cada amante — precisa se virar.

Talvez o verdadeiro banquete do amor seja isso: um prato que nunca se esvazia, mas também nunca se saboreia por inteiro. E quem tenta dar conta dele, como Platão, Sócrates ou a gente aqui, acaba sempre saindo da mesa com fome.

O amor em tempos de scroll: Platão no século XXI

Se Platão ressuscitasse hoje e pegasse um celular na mão, talvez levasse um susto. Nunca houve tanta gente tentando amar ao mesmo tempo: Tinder, Hinge, Bumble, Instagram. E mesmo assim, nunca se falou tanto de solidão. O paradoxo platônico continua: o desejo aproxima, mas nunca sacia. Seguimos os mesmos andróginos partidos de Aristófanes, só que agora deslizando perfis com o polegar em vez de vagar pelas praças de Atenas.

O amor no trabalho? Também ali mora um Eros disfarçado. O desejo por reconhecimento, promoção, sentido. Não é à toa que tanta gente se diz "apaixonada pelo que faz" ou "casada com a carreira". Mas essa paixão também carrega o risco platônico: quanto mais desejamos esse ideal — sucesso, realização —, mais percebemos o abismo entre o real e o imaginado. A escada de Diotima existe aqui também: começamos com o salário, depois o cargo, depois o status... até que vem a dúvida: para onde tudo isso leva? Qual o Belo por trás dessa luta diária?

E a amizade? No Banquete, Fedro sugere que o amor inspira coragem nos guerreiros — talvez hoje ele diria: nas amizades reais, longe do like fácil. Porque amigo de verdade não é quem só confirma o que você posta; é quem te lembra de quem você é quando você mesmo esquece. Amar um amigo é um Eros lateral, discreto, mas essencial. Como um fio que segura a alma em dias de tempestade.

Mas o ponto mais inquietante é este: Platão talvez suspeitasse que, no fundo, o amor é um jogo que nos engana para nos manter vivos. Diotima diz: Eros não é deus, é demônio — intermediário entre o mortal e o imortal. Ou seja: o amor é ponte, não destino. Nunca paramos nele, sempre passamos por ele querendo outra coisa. Isso serve para o romance, para a arte, para o trabalho, para a política. Tudo é desejo de algo que nunca se alcança por completo.

Talvez seja essa a lição escondida no Banquete: aceitar o amor como falta, como impulso criativo que nos obriga a inventar sentido onde ele não existe pronto. Um convite à imaginação, não à satisfação.

Por isso, quem ama demais uma resposta (seja um par perfeito, um cargo ideal ou uma amizade sem falhas) corre o risco de perder o melhor da festa: o próprio banquete da procura.

E assim Platão — sem saber — já falava de nós: esses seres inquietos de 2025, com o coração cheio de abas abertas, sonhando com completude entre uma notificação e outra.

Último gole: Platão encontra Byung-Chul Han

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han diria que vivemos hoje não a era do amor platônico, mas a do desempenho: um tempo em que até amar virou tarefa de alta performance. Vender-se bem nos aplicativos, performar felicidade no Instagram, ser desejável, interessante, produtivo — até no campo afetivo. Eros virou um coach cansativo.

Mas o amor verdadeiro, lembra Han em A Agonia do Eros, é encontro com o Outro real, não com o espelho do mesmo. Algo que rasga a bolha da autoimagem e nos põe em risco. Como Alcibíades invadindo a festa de Sócrates: bagunçando o roteiro perfeito, derrubando a taça, fazendo a filosofia tropeçar.

Talvez seja este o aviso escondido em O Banquete, atravessando os séculos: amar é perder o controle. E, quem sabe, é aí — nesse tropeço, nessa falta, nesse inacabamento — que a vida se faz de verdade.


domingo, 22 de dezembro de 2024

Acreditar Pela Metade

Acreditar pela metade é uma atitude que habita a zona cinzenta entre o ceticismo e a fé, entre o "sim" completo e o "não" absoluto. Trata-se de uma postura que nos convida a investigar o espaço onde a confiança vacila e onde a dúvida se insinua. Mas o que significa, realmente, acreditar pela metade? E o que essa condição revela sobre nós mesmos e sobre o mundo que habitamos?

O Espaço da Dúvida

Na prática cotidiana, acreditar pela metade pode se manifestar em situações simples, como confiar parcialmente em um amigo que já nos decepcionou ou acreditar em uma proposta de trabalho que parece boa demais para ser verdade. Nesses momentos, estamos simultaneamente abertos e fechados, criando uma barreira interna que nos protege, mas que também nos isola.

O filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard sugeriu que a fé verdadeira é um salto no desconhecido, um compromisso total com algo que transcende a razão. Quando acreditamos pela metade, nos recusamos a dar esse salto; ficamos presos na borda do penhasco, hesitando entre o medo de cair e a promessa de voar.

A Sociedade e a Crença Fragmentada

No contexto social, acreditar pela metade é quase uma norma. As redes sociais, por exemplo, nos expõem a uma avalanche de informações que rapidamente consumimos e descartamos. Compartilhamos manchetes, mas raramente lemos o conteúdo. Acreditamos apenas o suficiente para validar nossas opiniões, mas não o bastante para mudar nossas perspectivas. Esse fenômeno é descrito pelo filósofo brasileiro Milton Santos, que alerta sobre a superficialidade das conexões em um mundo globalizado e fragmentado.

Essa crença fragmentada pode ser vista como uma defesa contra a sobrecarga de informações. Afinal, é impossível dedicar nossa confiança plena a tudo o que vemos ou ouvimos. No entanto, esse hábito também nos torna cínicos, desconfiados e, às vezes, incapazes de nos engajarmos profundamente com algo ou alguém.

Acreditar Pela Metade e o Eu

No plano pessoal, acreditar pela metade muitas vezes reflete uma luta interna. Quando não confiamos plenamente em nossas capacidades ou em nossos sonhos, nos tornamos espectadores de nossas próprias vidas. Ficamos à margem, aguardando uma prova definitiva de que é seguro avançar. Hannah Arendt, ao discutir a condição humana, enfatizou que a ação é o que define o ser humano no mundo. Mas, para agir, é necessário acreditar, ao menos por um momento, que o que fazemos importa.

O Que Fazer com a Metade?

Acreditar pela metade pode ser visto tanto como uma limitação quanto como um convite. Por um lado, nos impede de experimentar a totalidade de uma ideia, de uma relação ou de uma escolha. Por outro, nos permite manter um pé no chão enquanto exploramos novas possibilidades. Talvez a questão não seja eliminar a crença parcial, mas aprender a usá-la como uma ponte para algo maior.

O filósofo e educador Rubem Alves costumava dizer que a dúvida é a mãe da sabedoria, pois nos mantém curiosos e dispostos a aprender. Assim, acreditar pela metade não precisa ser um estado permanente, mas um estágio transitório, uma pausa reflexiva antes do próximo passo.

Acreditar pela metade é, em essência, um reflexo da nossa condição humana: ambígua, insegura e constantemente em busca de sentido. Reconhecer essa dualidade pode nos ajudar a navegar melhor pelos dilemas da vida, cultivando a coragem de dar saltos de fé quando necessário e a paciência de permanecer na incerteza quando prudente. Afinal, como disse Fernando Pessoa, "Tudo vale a pena, se a alma não é pequena." E, às vezes, até acreditar pela metade já é um começo.


sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Mito de Aristófanes


Quem diria que uma antiga fábula grega poderia ter tanto a nos dizer sobre o complicado e muitas vezes confuso mundo do amor e da busca pela nossa "outra metade". Aristófanes, o mestre das comédias, nos presenteou com uma história hilária, mas cheia de significado. O mito que vamos dar aquela viajada filosófica, faz parte do diálogo "O Banquete" (Symposium) de Platão, afinal o mito nunca aconteceu, mas sempre existiu, mesmo que os mitos não sejam eventos que ocorreram no passado, sua influência e importância persistem ao longo do tempo, moldando as perspectivas das sociedades e indivíduos. Essa abordagem reconhece a dimensão simbólica e cultural dos mitos, destacando sua relevância contínua na experiência humana.

Vamos nos imaginar (gosto muito disto) numa época em que éramos redondos, criaturas com quatro pernas, quatro braços e duas cabeças. Éramos completos, inteiros, mas, como tudo na vida, tínhamos que dar uma escorregada. Desafiando os deuses, fomos divididos ao meio, separados da nossa metade original. Diz a lenda que os humanos, cheios de orgulho, desafiaram os deuses. Em resposta a essa insolência, os deuses decidiram que era hora de dar uma lição, e que lição! A separação em duas metades deveria ser o castigo perfeito, a dor da separação é inevitável, ela se torna parte integrante do tecido da experiência humana, guiando-nos em direção à busca pelo que foi perdido. Assim, essas criaturas outrora completas, redondas e exuberantes, foram cortadas ao meio, transformando a unidade em dualidade.

A ironia é que, ao mesmo tempo em que os deuses puniam, também criavam a condição para uma busca eterna pela reunificação. Essa divisão provocou uma busca incansável por aquela outra metade perdida, um desejo profundo de restaurar a plenitude original. E assim, a zanga dos deuses se transformou em uma jornada mágica e tumultuada para os seres humanos, que passaram a buscar nos recantos mais remotos do mundo por algo que, no fundo, sempre esteve dentro deles.

Essa reviravolta na fábula de Aristófanes adiciona uma camada intrigante à história. É como se os deuses, em sua ira, inadvertidamente lançassem os humanos em uma aventura cósmica de autodescoberta e amor. Afinal, quem imaginaria que uma zanga divina poderia desencadear uma das mais belas e complexas narrativas sobre o desejo humano? Assim, enquanto sorrimos com a ironia da situação, somos levados a refletir sobre como, muitas vezes, é nas reviravoltas inesperadas que encontramos os tesouros mais valiosos da vida. Desde então, andamos por aí, meio desajeitados, à procura daquela parte perdida que nos tornará inteiros novamente.

A história é mais do que uma fábula engraçada e fantasiosa; é uma metáfora profunda sobre a busca incessante pela união e pela plenitude. Quantas vezes nos sentimos incompletos, como se algo vital nos faltasse? É como se cada um de nós estivesse em uma jornada cósmica para encontrar a pessoa que, de alguma forma, nos complementa de maneira única.

O interessante é como essa busca não se limita apenas a relacionamentos românticos. Ela se estende às amizades, à conexão com a comunidade e até mesmo à nossa relação com o mundo ao nosso redor. Estamos constantemente à procura de algo ou alguém que nos faça sentir que pertencemos, que nos encaixamos perfeitamente em um quebra-cabeça celestial. Não podemos negar que, por vezes, essa busca parece uma aventura digna de um épico grego. Encontramos obstáculos, enfrentamos desafios e, muitas vezes, descobrimos que a jornada é tão importante quanto a chegada. Talvez o propósito real seja aprender a ser completos por nós mesmos, antes de encontrarmos nossa tão sonhada metade perdida.

E se Aristófanes estivesse nos lembrando de que, na verdade, não precisamos ser redondos ou ter quatro braços para nos sentirmos inteiros? Talvez a verdadeira busca seja interior, uma jornada para nos conhecermos melhor, aceitarmos nossas próprias dualidades e abraçarmos nossa singularidade. Então, da próxima vez que nos sentirmos como protagonistas de uma busca épica, podemos nos lembrar da fábula de Aristófanes. Talvez a resposta para a plenitude não esteja lá fora, mas dentro de nós mesmos. E, quem sabe, ao encontrar nossa própria integridade, a outra metade perdida simplesmente apareça, tornando a jornada ainda mais extraordinária. Afinal, como dizem, a vida é uma grande história, e estamos todos buscando o nosso final feliz.

Então, meus amigos, que caminhada intrigante é essa em que nos encontramos, na busca incessante pela nossa outra metade! Talvez, ao invés de procurarmos por aí como se estivéssemos em um jogo de esconde-esconde cósmico, devamos virar a chave para dentro. Talvez a verdadeira completude resida não na busca por uma metade perdida, mas sim na aceitação de nós mesmos, na compreensão de nossas próprias dualidades. Então, que possamos abraçar a fábula de Aristófanes como um lembrete amigável de que a jornada para a plenitude começa conosco mesmos, e que, ao nos tornarmos inteiros, podemos descobrir que a outra metade já estava lá o tempo todo, esperando para se juntar a nós nesse grande espetáculo da vida.