Há uma palavra de origem árabe que carrega em si uma profunda carga filosófica: maktub. Ela pode ser traduzida como "está escrito", mas seu significado vai muito além da simplicidade literal. Quando alguém diz "maktub", o que realmente se sugere é que certas coisas estão destinadas a acontecer, como se o destino já estivesse traçado de antemão, mesmo antes de tomarmos qualquer decisão. A expressão tem um tom de aceitação, uma rendição diante da grandiosidade do universo e do inevitável.
Link da música “Maktub II” de Marcus Viana:
https://www.youtube.com/watch?v=pfi17PzXVQo&list=RDMMZ3AJFx6-vUA&index=34
O Destino e a Autonomia
Está escrito — mas o que isso significa para nossas
vidas cotidianas? Parece um conceito que desafia a ideia de autonomia, algo que
nós, modernos, tanto prezamos. No mundo contemporâneo, falamos muito sobre
fazer escolhas, sobre trilhar o próprio caminho e moldar nosso destino. Afinal,
não é essa a premissa da meritocracia, das metas pessoais, dos sonhos que
corremos atrás? E, no entanto, maktub nos convida a pensar: há uma ordem oculta
que já definiu certos encontros, desencontros e reviravoltas da nossa trajetória?
Imagine que você saiu de casa atrasado e, por
acaso, encontrou alguém que não via há muito tempo. Aquele breve atraso, que
parecia ser um revés, na verdade levou você a um momento único. Ou, quem sabe,
ao perder um emprego que parecia ser o alicerce da sua carreira, você tenha
sido forçado a redescobrir talentos que estavam adormecidos. Será que esses
acontecimentos fortuitos são apenas acasos, ou existe uma "escrita"
invisível nas entrelinhas do tempo?
O Desconforto da Imprevisibilidade
É curioso como a ideia de maktub tanto nos
reconforta quanto nos inquieta. Reconforta porque, diante dos fracassos e
perdas, podemos nos consolar com a noção de que está escrito. Talvez, afinal,
aquilo não fosse para ser. Mas também nos inquieta, porque, se tudo está de
alguma forma predestinado, onde fica o livre-arbítrio? Somos, então, apenas
passageiros em um trem cuja rota já está definida?
Há um certo alívio em pensar que não estamos no
controle de tudo, mas também um desconforto. Pense naquelas vezes em que você
sentiu que fez "tudo certo", seguiu o caminho esperado e, ainda
assim, as coisas não saíram como planejado. Nesses momentos, a sensação é de
impotência. É como se o universo nos dissesse: "Você pode lutar, mas o que
está escrito, está escrito."
Paulo Coelho e o Alquimista
Esse conceito de maktub ficou bastante popular no
Brasil através de Paulo Coelho e sua obra O Alquimista. Na história, o jovem
Santiago busca incessantemente por um tesouro e encontra várias figuras que o
ajudam ou testam durante a jornada. Coelho enfatiza que o universo conspira a
favor daqueles que seguem seus sonhos, mas ao mesmo tempo sugere que certos
encontros e experiências estão, de certa forma, predestinados. Ao longo da
trama, os personagens frequentemente repetem: "Maktub." O que tinha
de acontecer, aconteceu. E tudo isso contribui para um propósito maior, ainda
que incompreendido em certos momentos.
A Perspectiva Filosófica
Na filosofia, muitos pensadores refletiram sobre o
papel do destino e do livre-arbítrio. O filósofo grego Heráclito, por exemplo,
dizia que o caráter de uma pessoa é seu destino — ethos anthrôpos daimôn. Em
outras palavras, aquilo que somos internamente molda o caminho que seguimos.
Mas e quando o caminho parece alheio a quem somos ou ao que planejamos? Talvez
a resposta esteja em aceitar que há uma dança constante entre a vontade pessoal
e as circunstâncias que nos são impostas pela vida.
O filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos
aborda o tema do destino de forma profunda. Para ele, o destino não é algo
imutável, como uma linha reta que seguimos sem desvios, mas sim um conjunto de
possibilidades dentro de um grande jogo cósmico. Em seu livro Filosofia
Concreta, ele sugere que somos co-criadores de nosso destino, não seus
escravos. Há uma ordem, sim, mas ela é flexível o bastante para que nossas
escolhas possam, de algum modo, interferir.
O Papel da Aceitação
Em última instância, talvez o que maktub nos ensine
seja a arte da aceitação. Não uma aceitação passiva, mas uma aceitação que nos
permita continuar seguindo em frente, mesmo quando o caminho parece estranho ou
inesperado. Não se trata de desistir ou de não lutar por aquilo que queremos,
mas de reconhecer que algumas forças estão além de nosso controle. E que, ainda
assim, podemos fazer o melhor com o que temos.
No fim das contas, o conceito de maktub nos lembra
que, mesmo que tudo pareça incerto, as coisas têm uma ordem subjacente. Às
vezes, essa ordem só se revela com o tempo. O que hoje parece uma perda ou um
desvio inesperado pode, amanhã, revelar-se como parte essencial da nossa
jornada. Afinal, como diz o ditado popular, “Deus escreve certo por linhas
tortas.”
Maktub. Está escrito. Mas também cabe a nós
decifrar as palavras ocultas desse texto que é a vida.