Entre o Espelho e o Mosaico: Ensaio sobre o Construtivismo Social na Era da Performance
Sabe
quando a gente ouve alguém dizer “isso é assim porque sempre foi assim”? Pois
é. Parece uma frase inofensiva, mas esconde uma das maiores ilusões que
carregamos no dia a dia: a de que o mundo é pronto, dado, imutável. A verdade é
que muita coisa do que consideramos natural — desde os nossos hábitos até o
jeito como pensamos sobre amor, trabalho ou identidade — foi, em algum momento,
inventada, combinada, aceita por um grupo de pessoas… e aí virou “normal”. O
construtivismo social entra justamente aí, nesse ponto em que as coisas deixam
de parecer construções e viram certezas. Neste ensaio, a ideia é desfiar um
pouco esse tecido aparentemente firme da realidade e mostrar que, no fundo, a
vida é feita de arranjos — e que entender isso pode ser mais libertador do que
parece.
A
realidade, dizemos, está “aí”, como uma pedra ou uma parede. Mas o que é essa
realidade, senão o reflexo de um consenso? O construtivismo social nos convida
a quebrar o espelho da objetividade e observar os cacos no chão: cada um
reflete um ângulo diferente, um olhar socialmente moldado, um pedaço de mundo
que só faz sentido quando olhado em conjunto. Não há essência anterior à
relação. Nós somos porque estamos com o outro.
Peter
Berger e Thomas Luckmann, em A Construção Social
da Realidade (1966), mostram como os mundos sociais são produzidos,
institucionalizados e interiorizados. A realidade social é um processo dinâmico
de sedimentação: o que antes era escolha vira costume, o que era invenção vira
tradição. A linguagem, nesse processo, não é mero canal de comunicação, mas o
próprio cimento que solidifica o mundo social. Quando dizemos “isso é normal”,
já estamos operando o poder da construção: legitimamos o costume como se fosse
lei natural.
Mas
talvez o mais radical dessa perspectiva não seja o reconhecimento de que o
mundo social é construído — isso já é relativamente aceito nas ciências
humanas. A verdadeira ruptura está em perceber que nós mesmos somos
construídos. A identidade não é uma essência interior a ser descoberta, mas uma
performance contínua, uma narrativa contada com base nos olhos dos outros.
Judith Butler, ao discutir gênero, aprofunda esse ponto: não se nasce mulher,
tampouco se escolhe sê-lo como quem muda de roupa. Performar o gênero é
reencenar expectativas culturais, repetidamente, até parecer natural.
No
entanto, em um mundo onde tudo é construído, onde repousa a autenticidade? Essa
é a angústia contemporânea. Se tudo é narrativa, onde está a verdade? A
resposta talvez esteja não em negar o construtivismo, mas em reconhecê-lo
como condição de liberdade. A construção é um risco, sim — mas também é uma
oportunidade. Se fomos feitos por discursos, talvez possamos nos refazer por
meio de novos discursos. Isso é o que Foucault sugere ao mostrar que resistir é
também produzir sentido. O poder não é só repressão: é produção de verdades, e
portanto, espaço para reimaginar a existência.
O
problema contemporâneo talvez seja que, ao tomarmos consciência do caráter
performativo de tudo, mergulhamos em um novo tipo de ansiedade: a obrigação
de sermos únicos em meio a tantas possibilidades de montagem. As redes
sociais, onde identidades são constantemente construídas e expostas, ilustram
essa virada. Somos, ao mesmo tempo, autores, personagens e plateia de nós
mesmos. Um eu hiperconsciente da própria construção pode acabar preso na
vitrine.
E
é aqui que o construtivismo social encontra sua virada ética. Se o mundo é uma
construção, quais mundos queremos construir juntos? Se os significados
são frágeis, como cuidamos deles para que não se tornem opressão? O sociólogo
brasileiro José de Souza Martins observa que, muitas vezes, a vida
cotidiana é o lugar onde as contradições mais profundas da construção social
aparecem — onde o indivíduo vive, simultaneamente, a liberdade de criar e o
peso de estruturas que ele não escolheu.
No
fundo, o construtivismo social não destrói o real. Ele apenas nos lembra que o
real é um projeto coletivo — nunca acabado, sempre vulnerável, eternamente em
disputa. Nesse mosaico de vozes e símbolos, cada gesto, cada palavra e cada
silêncio é um tijolo no edifício comum. Não se trata, portanto, de negar a
realidade, mas de assumir a responsabilidade pela sua (re)construção contínua.
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