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domingo, 6 de julho de 2025

Bardo

Viver entre uma coisa e outra

 


Estava assistindo a Lucia Helena Galvão junto ao Instagram, ela falando sobre “bardo”, em mais uma de suas aulas magnificas, inspirado por ela não pude deixar de pensar e fui pesquisar mais a respeito, então vamos lá, vamos nos aventurarmos e refletir sobre o tema.

A palavra bardo vem do tibetano e significa literalmente "entre dois". No budismo tibetano, ela é usada para descrever estados intermediários, especialmente o intervalo entre a morte e o renascimento. Mas o conceito vai muito além disso. Ele também se aplica a qualquer fase de transição — entre o sono e a vigília, entre a vida cotidiana e a meditação, entre dois momentos decisivos da existência.

 

O Bardo Thödol, conhecido como "Livro Tibetano dos Mortos", descreve seis tipos principais de bardo: o da vida, o dos sonhos, o da meditação, o do momento da morte, o da realidade última e o do renascimento. São todos estados de passagem. Em todos eles, algo velho termina, mas o novo ainda não começou.

 

Mas e no nosso dia a dia? Onde está o bardo?

 

Ele aparece em momentos que, à primeira vista, parecem vazios. Imagine alguém que pediu demissão, mas ainda não sabe o que quer fazer. Ou um casal que terminou, mas ainda mora junto, tentando resolver o que será da vida de cada um. Ou um estudante que terminou os estudos, mas ainda não foi chamado para trabalhar. Bardos.

 

Há também o bardo emocional: quando você sente que superou uma dor, mas ainda não encontrou alegria. Ou o bardo do envelhecimento: o corpo muda, mas a alma ainda se ajusta. Há até o bardo das manhãs de domingo: tempo solto, em que nem o trabalho nem o lazer se instalam direito — apenas o estar no meio.

 

São esses momentos de intervalo em que não sabemos o que fazer com o tempo. Parece que estamos suspensos, como se a vida estivesse pausada, esperando alguma coisa acontecer. Mas, na verdade, estamos em transformação.

 

O filósofo grego Heráclito dizia que tudo flui. O bardo é exatamente isso: o fluxo em que deixamos de ser algo, mas ainda não sabemos o que seremos. Atravessar um bardo é como caminhar num corredor sem portas visíveis — mas onde, sem perceber, estamos sendo moldados.

 

A tradição tibetana não vê o bardo como um erro ou um castigo. Pelo contrário: é ali que a consciência se revela. É ali que o medo surge, mas também onde a sabedoria pode florescer. Os bardos exigem escuta, silêncio e presença.

 

Quem também refletiu profundamente sobre os estados intermediários da alma foi Helena Petrovna Blavatsky, fundadora da Sociedade Teosófica. Para ela, o ser humano é composto por múltiplos níveis — físico, emocional, mental e espiritual — que atravessam ciclos contínuos de transformação. Em A Doutrina Secreta, Blavatsky afirma:

 

“A natureza é um movimento rítmico de atividade e repouso. Tudo na vida é cíclico, e entre cada ação manifesta há um intervalo oculto, um período de assimilação invisível aos olhos físicos, mas essencial para o desenvolvimento espiritual.”

 

Essa pausa invisível — esse “intervalo oculto” — é, na essência, o que os tibetanos chamam de bardo. Não é vazio: é gestação. Não é perda: é transformação. Para Blavatsky, a alma aprende mais nos silêncios do que nos ruídos, e esses espaços entre fases da vida são tão importantes quanto os acontecimentos que os cercam.

 

O pensador sul-coreano Byung-Chul Han também toca nesse ponto, embora por outra via. Ele fala da aceleração do tempo e da nossa dificuldade atual de viver pausas. Para ele, nossa era digital tornou tudo instantâneo, mas superficial. O bardo, nesse contexto, aparece como uma resistência: o direito de estar em suspensão, de não ter respostas imediatas, de não preencher todo o silêncio com ruído.

 

Numa cultura que exige que saibamos sempre para onde vamos, o bardo é um lembrete: não saber também é caminho. Viver entre uma coisa e outra pode ser desconfortável, mas é nesse espaço que amadurecemos, escutamos a nós mesmos e percebemos que a vida continua mesmo quando parece parada.

 

Da próxima vez que estiver num desses intervalos — sem rumo, sem chão, sem pressa — lembre-se: isso também é viver. O bardo não é o fim nem o começo. É o meio onde tudo se transforma.

 

“A borboleta não se apressa para sair do casulo. Ela espera. No escuro. No silêncio. Até que tenha asas.”

— sabedoria popular


segunda-feira, 23 de junho de 2025

Sentir e Pensar

… e o que mais?

A gente costuma achar que só aprende pela cabeça ou pelo coração. Ou você sente — e aprende com o calor, o frio, o medo, o gosto das coisas — ou você pensa — calcula, raciocina, organiza as ideias para entender o mundo. Parece não haver saída desse binário. Mas será mesmo?

Veja o exemplo do menino que aprende a andar de bicicleta. No começo ele pensa: “segura firme o guidão, olha pra frente, pedala devagar…”. Também sente: medo de cair, emoção ao deslizar pela rua. Mas chega uma hora em que nem sente nem pensa. O corpo aprende sozinho. Ele vira bicicleta. O saber passou para as pernas, os braços, o equilíbrio. É o conhecimento do corpo — o tal “saber fazer” que nenhum livro ensina.

Ou pense naquelas decisões que você toma sem saber por quê. Um desvio de caminho, um "não vou entrar nessa loja agora", um "vou ligar pra fulano hoje". Não foi pensamento lógico nem sentimento claro. Foi um saber que veio de outro lugar — a tal da intuição. E quantas vezes ela acerta? Muitas.

Tem também o saber da convivência. Você nunca parou para pensar como se espera uma fila no banco. Ninguém te explicou. Você simplesmente aprendeu — porque vive aqui, porque observa sem perceber. Isso é cultura agindo em silêncio. Nem sentir, nem pensar: é absorver pelo convívio.

E ainda há o saber do momento presente. O zen-budista diria: quando você come uma fruta e presta atenção total nela — no sabor, na textura, no cheiro — está conhecendo direto, sem pensar, sem julgar, sem interpretar. Conhecimento puro, sem intermediários.

Talvez o mundo não caiba só no sentir e no pensar. Há corpos que sabem sozinhos. Há intuições que chegam sem convite. Há culturas que moldam você sem pedir permissão. Há presenças que ensinam sem dizer palavra.

Os filósofos antigos sabiam disso. Espinosa, lá no século XVII, já dizia que o corpo tem uma inteligência própria — capaz de fazer coisas das quais a mente nem sonha. E Henri Bergson, no século XX, desconfiava que a intuição nos leva a conhecer verdades que o pensamento não alcança.

Quem sabe conhecer seja como viver: não se faz só com a cabeça e o peito. Também se faz com o corpo, com o instante, com o outro.

Talvez — no fundo — a gente seja uma soma estranha de tudo isso. E por isso aprender nunca se esgota.


domingo, 22 de junho de 2025

Filosofia do Processo

Whitehead e o mundo em movimento!

Há uma ilusão muito comum no modo como lidamos com o mundo: acreditamos que as coisas são. A cadeira é cadeira, o rio é rio, eu sou eu. Essa ideia parece tão sólida quanto o concreto de uma calçada. Mas para Alfred North Whitehead, filósofo britânico, um dos filósofos mais originais do século XX, essa visão do mundo está enganada desde o início. O mundo não é feito de “coisas” — é feito de processos.

Whitehead não era só filósofo; antes disso, foi matemático e trabalhou com Bertrand Russell na famosa obra Principia Mathematica. Mas foi na maturidade que ele deu um salto surpreendente para a metafísica, fundando o que hoje chamamos de Filosofia do Processo. Uma filosofia que não vê o mundo como um estoque de substâncias estáticas, mas como um fluxo incessante de eventos, relações e transformações.

Tudo o que existe... acontece

Na visão de Whitehead, até mesmo uma pedra não é algo fixo. Ela é uma sequência de processos energéticos, uma pequena narrativa cósmica que, lenta como as eras geológicas, ainda assim é mudança. O mesmo vale para você, para mim, para o som de um violão no fim da tarde ou o cheiro de pão saindo do forno.

Aliás, basta pensar no café da manhã. Parece um momento simples, mas não é. A mesa posta não existe como um “bloco”; ela é o resultado de mil ações: a plantação do café em algum país distante, o transporte até o supermercado, o seu gesto de acender a chaleira, a memória do sabor que você gosta, a escolha da xícara preferida. O café da manhã é um acontecimento — uma rede viva de eventos que vieram de longe no espaço e no tempo.

Outro exemplo: uma conversa no trabalho. Você chega tenso de casa, alguém sorri de leve, você relaxa, diz uma piada, o outro responde, vocês se entendem melhor. Não existe “você fixo” e “colega fixo”. Existe uma dança de emoções, intenções, palavras. Mesmo os silêncios têm efeito. O instante de agora já carrega ecos do que aconteceu antes — a discussão de ontem, a gentileza da semana passada — e prepara o campo para o que virá. É puro processo.

Ou então um passeio pela rua. As lojas mudaram a vitrine, a padaria da esquina fechou, um prédio novo surgiu onde havia uma casa antiga. Você mesmo mudou — anda mais devagar, olha para o céu, pensa em outras coisas. Até o caminho para casa não é o mesmo de ontem, porque você não é mais o mesmo de ontem. O que existe é esse fluxo onde cidade, corpo e memória se misturam.

O Deus de Whitehead

Outro ponto notável é a visão de Deus nessa filosofia. Para Whitehead, Deus não é o criador de um mundo pronto e acabado, mas parte do processo cósmico. Deus mantém possibilidades abertas, uma espécie de “lure” — uma sedução para que o mundo tenda à beleza, à harmonia, à intensidade. Mas o desfecho de cada momento é decidido no processo, e não decretado de cima. Isso abre espaço para o acaso, para o risco, para a criatividade genuína do universo.

Na prática? Quando alguém resolve largar um emprego seguro para abrir uma pequena livraria de bairro, ou quando um vizinho planta flores num canteiro abandonado, algo do possível se torna real — e o universo inteiro muda um pouco. Para Whitehead, Deus sussurra essas possibilidades de harmonia, mas a escolha final está no fluxo das decisões humanas e cósmicas.

O real é relação

Essa filosofia desmonta a ideia de que as coisas existem isoladamente. Nada é em si; tudo é em relação. Até o celular na sua mão agora é o resultado de processos — de tecnologia, de desejo de comunicação, de história econômica, de consumo. A própria bateria carrega energia que veio de usinas distantes. Até o descanso noturno é um processo: corpo, respiração, sonho, esquecimento.

Quando você encontra um velho amigo na rua, esse encontro não é a soma de duas “coisas”. É um evento novo, cheio de memórias de infância, de mudanças de vida, de expectativas futuras. Cada olhar troca experiências, cada frase é carregada de tudo o que vocês já viveram. O real é sempre relação.

O mundo como obra inacabada

Em Whitehead, o universo não é uma máquina que funciona; é uma obra de arte inacabada. Algo que se faz, se desfaz e se refaz o tempo todo. E nós, humanos, somos parte desse processo criativo — não como espectadores, mas como co-autores. Por isso, cada escolha nossa acrescenta um fio à trama do real.

Henrique de Lima Vaz dizia que a existência é uma tarefa: ela nunca está dada, sempre está por fazer. Essa é uma intuição bem próxima do pensamento processual de Whitehead. O mundo não é pronto: ele espera, a cada instante, ser tecido de novo.

Na vida cotidiana isso significa que nenhuma situação é um beco sem saída absoluto. Aquele relacionamento que parece ter esgotado o sentido, aquele trabalho que já não motiva, podem — com imaginação, risco e coragem — ser recriados, refeitos, transfigurados. O processo não se fecha.

O que aprendemos com Whitehead?

Que viver é participar de um fluxo. Que nada é fixo — nem o mundo, nem você. Que o real se faz de encontros e relações, não de substâncias isoladas. Que até o almoço simples de terça-feira carrega a história do universo. E que o futuro não está escrito: ele é possibilidade aberta, sempre à espera de um novo gesto criativo.

Talvez por isso viver seja tão inquietante e tão belo: porque tudo pode ser, tudo ainda está sendo.


sexta-feira, 30 de maio de 2025

Tempo e Ser

 

Já reparou como, às vezes, o tempo parece escorrer por entre os dedos — como areia molhada? Você acorda, toma café, vai ao trabalho, responde e-mails, olha o relógio, almoça apressado, volta... e, quando vê, é noite. Você viveu, mas passou por você?

Heidegger, já mais velho, também pensava nisso. E decidiu voltar à pergunta que nunca o abandonou: o que é o ser? Mas agora com outra lente: o tempo não é só um pano de fundo — ele é o próprio caminho por onde o ser se mostra.

 

1. Uma inversão: não somos nós que controlamos o tempo

A primeira mudança de chave em Tempo e Ser é essa: não somos nós que temos o tempo — é o tempo que nos tem.

Parece estranho? Pensa naquela reunião que você achou que ia durar 15 minutos e virou 2 horas. Ou naquele feriado que voou. O tempo não se mede só no relógio. Ele é vivido — e, por isso, pode expandir ou encolher. Heidegger chama isso de tempo próprio, tempo apropriador (Ereignis).

 

2. Do ser como presença ao ser como doação

Lá em Ser e Tempo, Heidegger ainda tratava o ser como algo que se manifestava dentro do tempo. Agora, em Tempo e Ser, ele diz que o tempo é a condição do ser se mostrar. O ser não está “lá” o tempo todo — ele se doa, se revela, se retira.

É como as pessoas na nossa vida: tem amigos que aparecem quando a gente menos espera — e outros que, mesmo presentes, estão ausentes. O ser também é assim — se dá no tempo certo, e só no tempo certo.

 

3. O Ereignis: o momento em que o ser acontece

Heidegger inventa uma palavra complexa: Ereignis. Traduzem como “acontecimento apropriador” ou “evento de apropriação”. Mas pense nisso como aquele instante em que tudo se encaixa, mesmo que por um segundo.

Tipo quando você está andando na rua, distraído, e sente que está no lugar certo, na hora certa. Ou quando escuta uma música antiga e algo em você se revela — uma lembrança, uma emoção esquecida.

Não é você quem provoca isso — é o tempo que te entrega.

 

4. O tempo como clareira (Lichtung)

Heidegger fala que o ser precisa de uma clareira para aparecer — como uma luz que atravessa a floresta. Essa luz é o tempo.

Na prática? É como quando você finalmente tem um domingo livre. Silêncio em casa. Você senta, olha pela janela e pensa em tudo que não pensa durante a semana. A vida parece abrir espaço para você pensar no que está fazendo com ela.
Esse instante de clareira é um presente do tempo. E o ser, tímido, aparece ali — se você estiver atento.

 

5. Nem cronômetro, nem relógio — tempo como relação

Heidegger nos convida a abandonar a ideia de tempo como algo linear e medido em minutos. Ele quer que a gente perceba o tempo como relação com o ser.
Você já teve um almoço com alguém que parecia durar cinco minutos, mas mudou o seu mês? Ou já ficou olhando para o teto por três horas sem conseguir respirar de tanta angústia? O tempo que vale não é o dos ponteiros, mas o da experiência.

 

Viver é acolher o tempo que nos escolhe

Em Tempo e Ser, Heidegger não está oferecendo uma receita de como aproveitar melhor o tempo, como os gurus da produtividade. Ele está dizendo:

“Pare de correr. Escute o tempo. Ele não é seu inimigo. Ele é o próprio lugar onde o ser se mostra.”

Na prática? Talvez seja deixar o celular de lado por meia hora. Sentar em silêncio. Ouvir um amigo com atenção. Aceitar que nem tudo está no nosso controle — e que o que realmente importa acontece quando você permite que o tempo aconteça em você.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

Celular nas Escolas

O dilema sobre o uso de celulares nas escolas é mais profundo do que parece. À primeira vista, pode ser reduzido a uma questão de ordem prática: proibir ou liberar? No entanto, ele toca em questões filosóficas fundamentais sobre o papel da tecnologia, a educação e a formação do ser humano. Ao discutir o tema, devemos perguntar não apenas “o que é mais eficiente?”, mas também “o que é mais humano?”.

O Celular como Ferramenta ou Distração

O filósofo Martin Heidegger nos alerta que a tecnologia não é apenas um conjunto de ferramentas, mas uma forma de revelar o mundo. Um celular na mão de um estudante não é apenas um aparelho; é uma janela para o mundo digital, um espaço que compete diretamente com o ambiente físico da sala de aula. Enquanto o professor explica um conceito, o celular pode sussurrar convites mais sedutores: vídeos, mensagens, memes.

Libertar o uso do celular sem critérios pode transformar a sala de aula em um espaço de dispersão. Contudo, proibi-lo completamente pode ser uma negação da realidade contemporânea. Como equilibrar? Talvez a resposta resida naquilo que Paulo Freire chamaria de educação dialógica: não impor regras de cima para baixo, mas envolver os estudantes em uma discussão sobre o uso ético e responsável da tecnologia.

O Paradoxo da Liberdade

Liberar o uso do celular é um gesto de confiança e autonomia, mas será que os jovens estão preparados para exercer essa liberdade? Isaiah Berlin nos lembra que existem duas concepções de liberdade: a positiva (autonomia para tomar decisões conscientes) e a negativa (ausência de restrições externas). Liberar o celular sem ensinar o estudante a usá-lo conscientemente é cair na armadilha da liberdade negativa: o aparelho deixa de ser um meio para se tornar um fim.

A liberdade verdadeira, nesse contexto, exige educação. Os jovens precisam entender que o celular é tanto um potencializador do aprendizado quanto uma armadilha para a distração. Ensinar isso, entretanto, é um desafio que recai sobre os professores, que já enfrentam sobrecargas em suas funções.

A Educação e o Tempo

Outro aspecto fundamental é a relação entre o uso do celular e o tempo. O filósofo Byung-Chul Han critica nossa era pela fragmentação da atenção e pela constante aceleração. O celular, com suas notificações incessantes, insere os jovens em um ritmo que pode ser antagônico à essência da educação, que requer paciência, reflexão e atenção plena.

Proibir o celular na sala de aula pode ser uma tentativa de proteger os estudantes desse tempo fragmentado. Por outro lado, integrar o celular como ferramenta pedagógica — aplicativos de aprendizado, pesquisas guiadas, aulas interativas — pode ensinar os jovens a reconciliar tecnologia e atenção, formando cidadãos mais conscientes do uso do tempo.

O Caminho do Meio

A solução para o dilema talvez esteja em um equilíbrio entre proibição e liberdade. Inspirando-se na ética aristotélica, podemos buscar a virtude do meio-termo: não o uso irrestrito, nem a proibição total, mas um uso mediado pela reflexão e pelo contexto. O celular poderia ser permitido em momentos específicos, sob regras claras e com objetivos pedagógicos bem definidos.

Além disso, é essencial promover o diálogo entre professores, estudantes e famílias. A criação de contratos sociais sobre o uso do celular — como acordos para desligá-lo em momentos cruciais ou limitar as notificações — pode reforçar a responsabilidade coletiva.

O debate sobre celulares nas escolas não deve ser visto apenas como uma questão prática, mas como um convite para refletirmos sobre os valores que desejamos cultivar na educação. Ao decidir se liberamos ou não o celular, estamos, na verdade, decidindo que tipo de seres humanos queremos formar: consumidores passivos da tecnologia ou cidadãos críticos e autônomos?

A resposta, portanto, não está em uma proibição ou liberação simplista, mas em um projeto educacional que integre tecnologia, ética e reflexão. Afinal, como diria Paulo Freire, “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção”. Que o celular, então, seja uma possibilidade, e não um obstáculo.


sábado, 21 de dezembro de 2024

Humaníssimo Destino

O que significa ter um destino humaníssimo? A expressão, envolta em certa nobreza linguística, evoca uma reflexão sobre a essência do humano e os caminhos que a vida, ou o próprio ser, traça para si. É como se estivéssemos a perguntar: o que há de mais humano em nosso destino? E mais ainda, quem é o arquiteto desse destino: nós, a sociedade, ou algo transcendente?

A busca pelo que nos faz humanos

O conceito de “humaníssimo” carrega a ideia de uma humanidade elevada, um ideal ético e existencial que transcende o simples ato de viver. Não basta existir; é preciso realizar aquilo que nos torna únicos, como a consciência reflexiva, a capacidade de criar, de amar, de sofrer e de transformar o mundo. No entanto, essa busca pelo “humaníssimo” é muitas vezes atravessada por desvios, tropeços e incertezas.

Imaginemos uma cena cotidiana: alguém decide abandonar um emprego seguro para se dedicar a uma paixão, como a pintura ou a música. Esse ato, tão carregado de incertezas, revela uma tentativa de honrar o que há de mais humano no indivíduo – a capacidade de criar significado além da sobrevivência. O destino humaníssimo, nesse caso, não é uma trilha pavimentada, mas uma vereda traçada pela coragem de ser autêntico.

Liberdade ou fatalidade?

Se o destino existe, ele é imposto ou construído? Os estoicos acreditavam que o destino é uma força inexorável, mas que podemos, por meio da razão, aprender a aceitá-lo. Já Sartre diria que o destino não existe a priori – somos condenados a ser livres, e nossa liberdade nos obriga a inventar nosso caminho.

Nos dilemas cotidianos, isso se manifesta de maneira quase trivial. Quando decidimos perdoar alguém que nos feriu, por exemplo, estamos exercendo a liberdade de ressignificar o passado, em vez de nos agarrarmos a uma narrativa predeterminada. O perdão não apaga o que aconteceu, mas transforma o rumo da nossa história.

O destino como projeto coletivo

Há também quem veja o destino não como algo individual, mas como um projeto coletivo. O filósofo brasileiro Milton Santos, ao falar sobre o papel do humano no mundo globalizado, nos lembra que o futuro da humanidade depende de ações que unam ética e solidariedade. Nesse sentido, um destino humaníssimo só é possível se reconhecermos que o "eu" só existe no “nós”.

Pensemos na cena de um bairro onde vizinhos se unem para transformar um terreno baldio em uma horta comunitária. Ali, o destino humano se manifesta não como um ideal solitário, mas como uma construção compartilhada, em que cada gesto individual contribui para um bem maior.

O inescapável mistério

Por fim, há algo de misterioso em todo destino, algo que escapa à compreensão humana. Mesmo que sejamos os autores de nossas escolhas, nem sempre temos controle sobre os desdobramentos. Talvez o destino humaníssimo resida justamente na aceitação desse mistério, sem que isso nos paralise.

Como bem disse Guimarães Rosa, em "Grande Sertão: Veredas", “viver é muito perigoso.” Mas é nesse perigo, nessa aventura constante, que encontramos a grandeza de ser humano – não pelo que sabemos, mas pelo que continuamos a buscar.

O destino humaníssimo não é uma linha reta ou um caminho predeterminado. É uma construção contínua, alimentada por nossas escolhas, nossos erros, nossas relações e, acima de tudo, pela busca incessante por significado. Seja pela liberdade de Sartre, pela resignação dos estoicos ou pela visão coletiva de Milton Santos, o destino humano é, antes de tudo, um convite a viver com intensidade e autenticidade.

E talvez, no final das contas, o destino humaníssimo seja aquele em que, ao olharmos para trás, possamos dizer que vivemos plenamente o que nos torna humanos: a coragem de sentir, de criar e de transformar.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Menino Mau

“Nunca fui um bom menino” soa como uma confissão daqueles que, ao olharem para o passado, percebem que nunca se encaixaram no molde do comportamento ideal esperado. Ser o "bom menino" muitas vezes implica seguir as regras, ser educado, controlar as travessuras, e evitar o que a sociedade desaprova. Mas será que a ideia de ser bom se resume a isso? E o que significa realmente ser “bom” em uma sociedade que, muitas vezes, nos pede para sermos menos nós mesmos e mais aquilo que ela espera?

Penso que, em algum momento, todos nós carregamos a noção de que fomos “meninos maus”, pelo menos na percepção de alguém. A infância é o momento de transgressão mais natural. Crianças são curiosas, testam limites, e às vezes isso inclui quebrar regras e convenções. Talvez a pessoa que diz “nunca fui um bom menino” esteja apenas reconhecendo que nunca foi capaz de se adequar ao que os adultos esperavam dela, ou que simplesmente seguiu o impulso do momento em vez de escolher a prudência.

Ser “bom” em si é uma construção social cheia de nuances. O filósofo Jean-Paul Sartre abordava o conceito de liberdade como algo absoluto e, ao mesmo tempo, assustador. Segundo ele, somos todos condenados a ser livres. E ser livre implica escolher, muitas vezes, caminhos que não estão no mapa traçado pelos outros. Nesse sentido, nunca ser um “bom menino” pode ser visto como uma forma de afirmar a própria liberdade, de viver com autenticidade, mesmo que isso tenha implicado algumas “artes” no caminho.

Lembro-me de uma situação que exemplifica bem essa questão de não ser o "bom menino". Quando eu era mais jovem, fiz exatamente o oposto do que meus pais queriam. Eles tinham traçado uma linha clara: escola, faculdade, emprego estável. Eu, por outro lado, queria explorar, viajar, descobrir o mundo, e o emprego com carteira assinada não estava na primeira opção, sempre gostei de “ir ao mundo”. A rebeldia, ou o fato de ser considerado "problemático", não era por maldade, mas por vontade de ser quem eu queria ser. Na época, era difícil entender que, na verdade, o “bom menino” não estava desobedecendo por capricho, mas porque sua noção de felicidade era diferente. As vezes ser mau, pode nos fazer mal e também aos outros, expectativas podem ser nossas ilusões e dos outros também, quando estas expectativas/ilusões não se realizam é porque falhamos em algum momento ou simplesmente não era para nós.

O que faz alguém se sentir “mau”? Talvez seja o olhar crítico dos outros, que impõem julgamentos e pressões sociais para que todos sigam o mesmo modelo. Mas será que ser bom se limita a não incomodar ninguém? Se limitar a seguir as regras? Há quem nunca tenha desrespeitado uma única norma social, mas que tenha se conformado em uma vida sem questionamentos, sem se arriscar. A verdadeira bondade, talvez, esteja menos nas ações exteriores e mais na capacidade de sermos honestos com nós mesmos.

No final das contas, ser "bom" ou "mau" menino pode ser uma questão de perspectiva. O menino que pulava o muro da escola para explorar o que havia além das paredes talvez estivesse apenas seguindo sua curiosidade. E essa mesma curiosidade, mais tarde, pode levar ao aprendizado, ao crescimento pessoal e à liberdade de espírito que, paradoxalmente, pode se revelar mais genuína e benéfica do que o conformismo de quem sempre foi “bom”.

Talvez a questão não seja se fomos bons ou maus meninos, mas se conseguimos olhar para trás e reconhecer que, mesmo com nossos erros, fomos fiéis ao nosso próprio caminho. Afinal, como diria Sartre, somos o que escolhemos ser, e talvez nunca ter sido um bom menino seja apenas a confirmação de que, desde cedo, já fazíamos nossas próprias escolhas.


domingo, 27 de outubro de 2024

Sem Vitimizar

Explorar a vida sem vitimização é um ato de coragem e autenticidade. Muitas vezes, nos deparamos com situações em que parece mais fácil adotar a postura de vítima – afinal, ser a vítima nos isenta da responsabilidade e nos coloca em uma posição de fragilidade, onde é natural receber consolo e apoio. No entanto, essa postura também pode nos aprisionar, nos impedindo de crescer e de enfrentar os desafios de frente.

Imagine uma situação cotidiana, como um desentendimento no trabalho. Pode ser tentador pensar: "Por que isso sempre acontece comigo?" ou "Eu sempre sou o alvo." No entanto, ao escolher não se vitimizar, você adota uma perspectiva mais ativa e pergunta: "O que eu posso aprender com isso?" ou "Como posso resolver essa situação?" Essa mudança de postura, de passividade para proatividade, faz toda a diferença.

Nietzsche, um filósofo que sempre desafiou as convenções, falava sobre a importância de superar a si mesmo, de se tornar quem realmente somos. Para ele, a vida é uma série de desafios que nos testam e nos fortalecem. Ao nos recusarmos a adotar a postura de vítima, estamos, na verdade, respondendo ao chamado de Nietzsche para nos superarmos, para nos tornarmos melhores e mais fortes.

A vitimização pode ser confortável em um primeiro momento, mas a longo prazo, ela nos limita. Ela nos mantém presos em um ciclo de queixas e ressentimentos, impedindo-nos de avançar e de ver as oportunidades que os desafios trazem. Viver sem vitimização é viver com responsabilidade, entendendo que, embora não possamos controlar todas as circunstâncias, podemos controlar como reagimos a elas.

Não acontece com Lúcia o que não for de Lúcia

A ideia de que "não acontece com Lúcia o que não for de Lúcia" evoca uma reflexão profunda sobre destino, responsabilidade, e a conexão íntima entre nossas escolhas e as experiências que vivemos. É como se cada evento em nossas vidas estivesse de alguma forma ligado ao que somos, ao que atraímos, ou ao que, conscientemente ou não, estamos prontos para enfrentar.

Lúcia pode ser qualquer um de nós. Em nosso dia a dia, passamos por situações que parecem ser fruto do acaso, mas, ao olharmos mais de perto, percebemos que muitas dessas experiências são resultados de quem somos ou do que precisamos aprender. Se Lúcia enfrenta um desafio específico, pode ser que esse desafio seja uma lição que, de alguma forma, faz parte do seu caminho, algo que está ligado à sua essência ou às suas escolhas.

Pense em uma situação cotidiana: Lúcia perde um ônibus que a levaria a uma reunião importante. No momento, pode parecer apenas azar ou uma coincidência desagradável. No entanto, ao longo do dia, Lúcia percebe que essa perda a levou a um caminho inesperado, onde ela encontrou alguém que mudou o rumo de sua carreira. O que parecia uma contrariedade acabou sendo uma oportunidade – uma situação que, por mais desconfortável que fosse, tinha algo a ver com o que Lúcia precisava naquele momento.

A filosofia estoica, especialmente na figura de Epicteto, nos ensina que devemos aceitar o que nos acontece como algo que faz parte de nosso destino, algo que está, de alguma maneira, ligado ao nosso ser. "Não acontece com Lúcia o que não for de Lúcia" reflete essa ideia estoica de que a vida nos oferece aquilo que precisamos, não necessariamente o que queremos, e que há uma sabedoria em acolher isso com serenidade.

Isso não significa que somos passivos diante dos acontecimentos, mas sim que reconhecemos a interconexão entre nossas vidas e os eventos que nos cercam. Aceitar que tudo o que nos acontece tem um motivo relacionado a nós mesmos nos permite ver cada experiência, boa ou má, como uma parte do nosso crescimento pessoal.

Quando Lúcia compreende que cada evento está, de alguma forma, ligado a ela – ao seu ser, às suas escolhas e ao seu caminho – ela deixa de lutar contra a correnteza da vida e começa a navegar com mais consciência e serenidade. Portanto, quando a vida lhe apresentar um desafio, pergunte a si mesmo: "Como posso crescer a partir disso?" Ao adotar essa postura, você não só evita a armadilha da vitimização, mas também se coloca no caminho do crescimento pessoal e da realização.


domingo, 28 de abril de 2024

Inconvenientes

Ah, os inconvenientes da vida! Quem nunca se deparou com um deles? Essas pequenas pedrinhas no sapato que insistem em aparecer nos momentos mais inoportunos. Mas sabe de uma coisa? Às vezes, é nessas situações que encontramos os melhores aprendizados. Vamos dar uma olhada nesse balaio de gatos chamado cotidiano e desvendar como lidar com esses contratempos de maneira leve e descontraída.

Imagine só: você está atrasado para o trabalho e, quando finalmente chega à estação de metrô, o trem decide fazer uma pausa prolongada. O que fazer nessa situação? Bem, ao invés de entrar em desespero, que tal aproveitar esse tempo extra para relaxar? Que tal ouvir aquela playlist favorita, ler algumas páginas do seu livro ou simplesmente observar as pessoas ao seu redor? Às vezes, é nas pausas inesperadas que encontramos os momentos mais preciosos.

E que tal aquele momento clássico em que você está prestes a sair de casa e percebe que perdeu as chaves? Nada como revirar a casa de cabeça para baixo em busca do objeto perdido, não é mesmo? Mas, e se ao invés de entrar em pânico, você usar esse tempo para praticar o desapego? Afinal, quantas coisas realmente importantes perdemos por nos apegarmos demais às pequenas conveniências?

E não podemos esquecer daquela chuva inesperada que resolve aparecer bem na hora em que você está prestes a sair para um compromisso importante. Em vez de se lamentar pelo cabelo bagunçado ou pela roupa molhada, que tal encarar a situação com bom humor? Afinal, não há guarda-chuva que aguente todas as surpresas que a vida nos reserva.

Mas e quando os inconvenientes não são tão simples assim? Quando enfrentamos problemas mais complexos, como uma crise no trabalho ou um desentendimento com um amigo? Nessas horas, é importante lembrar que, assim como as pequenas contrariedades do dia a dia, os grandes obstáculos também são passageiros. Eles podem até nos tirar momentaneamente do prumo, mas também nos oferecem a oportunidade de crescer e aprender.

E o que dizer daqueles momentos em que somos nós os inconvenientes? Sim, todos já passamos por isso. Seja com um comentário inadequado, uma atitude impulsiva ou simplesmente por não percebermos que estamos ocupando mais espaço do que deveríamos, todos temos nossos momentos de indiscrição. Mas não se desespere! Reconhecer nossos próprios erros e aprender com eles é parte essencial do crescimento pessoal. Quando nos tornamos conscientes de nosso impacto nos outros, podemos cultivar a empatia e o respeito, tornando-nos melhores indivíduos em nossas interações diárias. Então, da próxima vez que percebermos que fomos um pouco inconvenientes, que tal pedir desculpas com sinceridade e utilizar essa experiência como uma oportunidade de nos tornarmos mais atentos e compassivos? Afinal, todos estamos navegando juntos neste mar chamado vida, e é através do entendimento mútuo que construímos laços mais fortes e significativos.

E lembre-se: é na maneira como lidamos com essas situações que encontramos o verdadeiro poder de transformação. Então, respire fundo, mantenha o bom humor e encare os contratempos com leveza. Afinal, é nas entrelinhas do imprevisto que se esconde a magia da vida.