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quarta-feira, 9 de julho de 2025

Construtivismo Social - Um Novo Olhar

Entre o Espelho e o Mosaico: Ensaio sobre o Construtivismo Social na Era da Performance

Sabe quando a gente ouve alguém dizer “isso é assim porque sempre foi assim”? Pois é. Parece uma frase inofensiva, mas esconde uma das maiores ilusões que carregamos no dia a dia: a de que o mundo é pronto, dado, imutável. A verdade é que muita coisa do que consideramos natural — desde os nossos hábitos até o jeito como pensamos sobre amor, trabalho ou identidade — foi, em algum momento, inventada, combinada, aceita por um grupo de pessoas… e aí virou “normal”. O construtivismo social entra justamente aí, nesse ponto em que as coisas deixam de parecer construções e viram certezas. Neste ensaio, a ideia é desfiar um pouco esse tecido aparentemente firme da realidade e mostrar que, no fundo, a vida é feita de arranjos — e que entender isso pode ser mais libertador do que parece.

A realidade, dizemos, está “aí”, como uma pedra ou uma parede. Mas o que é essa realidade, senão o reflexo de um consenso? O construtivismo social nos convida a quebrar o espelho da objetividade e observar os cacos no chão: cada um reflete um ângulo diferente, um olhar socialmente moldado, um pedaço de mundo que só faz sentido quando olhado em conjunto. Não há essência anterior à relação. Nós somos porque estamos com o outro.

Peter Berger e Thomas Luckmann, em A Construção Social da Realidade (1966), mostram como os mundos sociais são produzidos, institucionalizados e interiorizados. A realidade social é um processo dinâmico de sedimentação: o que antes era escolha vira costume, o que era invenção vira tradição. A linguagem, nesse processo, não é mero canal de comunicação, mas o próprio cimento que solidifica o mundo social. Quando dizemos “isso é normal”, já estamos operando o poder da construção: legitimamos o costume como se fosse lei natural.

Mas talvez o mais radical dessa perspectiva não seja o reconhecimento de que o mundo social é construído — isso já é relativamente aceito nas ciências humanas. A verdadeira ruptura está em perceber que nós mesmos somos construídos. A identidade não é uma essência interior a ser descoberta, mas uma performance contínua, uma narrativa contada com base nos olhos dos outros. Judith Butler, ao discutir gênero, aprofunda esse ponto: não se nasce mulher, tampouco se escolhe sê-lo como quem muda de roupa. Performar o gênero é reencenar expectativas culturais, repetidamente, até parecer natural.

No entanto, em um mundo onde tudo é construído, onde repousa a autenticidade? Essa é a angústia contemporânea. Se tudo é narrativa, onde está a verdade? A resposta talvez esteja não em negar o construtivismo, mas em reconhecê-lo como condição de liberdade. A construção é um risco, sim — mas também é uma oportunidade. Se fomos feitos por discursos, talvez possamos nos refazer por meio de novos discursos. Isso é o que Foucault sugere ao mostrar que resistir é também produzir sentido. O poder não é só repressão: é produção de verdades, e portanto, espaço para reimaginar a existência.

O problema contemporâneo talvez seja que, ao tomarmos consciência do caráter performativo de tudo, mergulhamos em um novo tipo de ansiedade: a obrigação de sermos únicos em meio a tantas possibilidades de montagem. As redes sociais, onde identidades são constantemente construídas e expostas, ilustram essa virada. Somos, ao mesmo tempo, autores, personagens e plateia de nós mesmos. Um eu hiperconsciente da própria construção pode acabar preso na vitrine.

E é aqui que o construtivismo social encontra sua virada ética. Se o mundo é uma construção, quais mundos queremos construir juntos? Se os significados são frágeis, como cuidamos deles para que não se tornem opressão? O sociólogo brasileiro José de Souza Martins observa que, muitas vezes, a vida cotidiana é o lugar onde as contradições mais profundas da construção social aparecem — onde o indivíduo vive, simultaneamente, a liberdade de criar e o peso de estruturas que ele não escolheu.

No fundo, o construtivismo social não destrói o real. Ele apenas nos lembra que o real é um projeto coletivo — nunca acabado, sempre vulnerável, eternamente em disputa. Nesse mosaico de vozes e símbolos, cada gesto, cada palavra e cada silêncio é um tijolo no edifício comum. Não se trata, portanto, de negar a realidade, mas de assumir a responsabilidade pela sua (re)construção contínua.


sábado, 24 de maio de 2025

Questão de Controle

Outro dia, estava sentado na sala de espera do laboratório, reparei em como tudo ali parecia tão... clínico. Luz branca, silêncio, cartazes sobre diabetes, colesterol e vacinação, só se ouvia a voz da atendente chamando para atendimento. As pessoas entravam e saíam como peças de um sistema bem organizado. E me veio uma pergunta: será que estamos mesmo vivendo, ou só mantendo o corpo funcionando?

Essa pergunta – entre o viver e o sobreviver – não é nova. Ela atravessa a filosofia desde a Grécia antiga e ganha contornos urgentes nos tempos modernos. Michel Foucault, Giorgio Agamben, Hannah Arendt e outros nos ajudaram a perceber que o poder não governa apenas por leis ou armas. Ele governa pela vida. Ou melhor, sobre a vida.

Neste ensaio, vamos explorar quatro conceitos entrelaçados: biopoder, biopolítica, zoé e bíos – e tentar entender como, muitas vezes, nossa existência se transforma em objeto de estatística, política pública e decisão estatal.

Biopoder: o poder que entra na pele

Michel Foucault foi um dos primeiros a mostrar que o poder moderno não se limita a mandar ou punir. Ele se infiltra na gestão da saúde, da reprodução, da alimentação, da sexualidade. Ele quer manter a população viva, saudável e produtiva.

O nome disso? Biopoder – o poder que se exerce sobre os corpos vivos. É um tipo de cuidado que vem junto com controle. Quando o governo lança uma campanha para reduzir o consumo de sal, ou quando um aplicativo conta quantos passos você deu, o biopoder está em ação.

A novidade aqui é que não se trata mais de decidir quem deve morrer, como no poder soberano antigo. Trata-se de decidir como a vida deve ser vivida, quantificada, vigiada, modelada.

Biopolítica: quando viver vira projeto do Estado

A biopolítica é a extensão prática e estratégica do biopoder. Se o poder tem interesse na vida, ele também precisa planejar essa vida coletivamente. E isso se faz com políticas públicas, dados populacionais, decisões sanitárias.

A biopolítica decide, por exemplo, que tipos de corpos devem ser incentivados (esportivos, saudáveis), que hábitos devem ser corrigidos (fumar, comer mal) e que grupos devem ser protegidos (crianças, idosos) ou deixados à margem.

É também através da biopolítica que se define quem merece viver plenamente e quem será apenas tolerado biologicamente.

Zoé e Bíos: duas formas de existir

Na Grécia antiga, havia duas palavras para "vida": zoé e bíos.

  • Zoé é a vida nua, biológica, comum a todos os seres vivos. Respirar, se alimentar, existir como organismo.
  • Bíos é a vida qualificada, política, cultural. É viver com sentido, com relações, com expressão social.

Na modernidade, Giorgio Agamben percebeu que o biopoder frequentemente empurra certos grupos para a condição de zoé: vivos, mas sem cidadania plena. Isso é visível em campos de refugiados, populações encarceradas, moradores de rua. Estão vivos, mas fora do jogo político. Fora do bíos.

O Estado os mantém vivos, mas não os escuta, não os reconhece, não os representa.

A vida nua: o risco de existir apenas como corpo

Agamben chama de vida nua esse estado em que se está vivo biologicamente, mas excluído politicamente. E isso acontece mais frequentemente do que imaginamos. Quando o poder decide suspender direitos em nome de uma emergência sanitária ou de segurança, ele cria um estado de exceção – onde o corpo continua respirando, mas a pessoa deixa de ser sujeito político.

Hannah Arendt já havia nos alertado: viver não é suficiente. É preciso ser visível, atuante, dotado de voz. Sem isso, viramos apenas organismos úteis ou descartáveis.

E nós, como vivemos?

Talvez estejamos todos, em maior ou menor grau, num equilíbrio instável entre zoé e bíos. Somos incentivados a cuidar da saúde, mas também somos constantemente vigiados. Temos liberdade de ir e vir, mas somos condicionados por algoritmos, protocolos sanitários, normas de conduta.

A pergunta que fica é: estamos vivendo com profundidade, afetos e escolhas? Ou apenas seguindo protocolos biológicos e sociais que nos mantêm produtivos?

Respirar é viver?

Respirar, sim, é condição básica da vida. Mas viver de fato exige mais: exige ser escutado, reconhecido, desejado. A política da vida não pode se reduzir à gestão de corpos. Ela deve incluir o direito ao bíos: à palavra, ao afeto, à diferença, ao tempo não cronometrado.

Se o poder hoje se exerce sobre a vida, nossa resistência talvez esteja em reivindicar mais do que a sobrevivência. Reivindicar uma vida que valha a pena ser vivida – mesmo que isso exija desobedecer um pouco às estatísticas.