Outro dia, estava sentado na sala de espera do laboratório, reparei em como tudo ali parecia tão... clínico. Luz branca, silêncio, cartazes sobre diabetes, colesterol e vacinação, só se ouvia a voz da atendente chamando para atendimento. As pessoas entravam e saíam como peças de um sistema bem organizado. E me veio uma pergunta: será que estamos mesmo vivendo, ou só mantendo o corpo funcionando?
Essa
pergunta – entre o viver e o sobreviver – não é nova. Ela atravessa a filosofia
desde a Grécia antiga e ganha contornos urgentes nos tempos modernos. Michel
Foucault, Giorgio Agamben, Hannah Arendt e outros nos ajudaram a perceber que o
poder não governa apenas por leis ou armas. Ele governa pela vida. Ou
melhor, sobre a vida.
Neste
ensaio, vamos explorar quatro conceitos entrelaçados: biopoder, biopolítica,
zoé e bíos – e tentar entender como, muitas vezes, nossa
existência se transforma em objeto de estatística, política pública e decisão
estatal.
Biopoder:
o poder que entra na pele
Michel
Foucault foi um dos primeiros a mostrar que o poder moderno não se limita a
mandar ou punir. Ele se infiltra na gestão da saúde, da reprodução, da
alimentação, da sexualidade. Ele quer manter a população viva, saudável e
produtiva.
O
nome disso? Biopoder – o poder que se exerce sobre os corpos vivos. É um
tipo de cuidado que vem junto com controle. Quando o governo lança uma campanha
para reduzir o consumo de sal, ou quando um aplicativo conta quantos passos
você deu, o biopoder está em ação.
A
novidade aqui é que não se trata mais de decidir quem deve morrer, como no
poder soberano antigo. Trata-se de decidir como a vida deve ser vivida, quantificada,
vigiada, modelada.
Biopolítica:
quando viver vira projeto do Estado
A
biopolítica é a extensão prática e estratégica do biopoder. Se o poder tem
interesse na vida, ele também precisa planejar essa vida coletivamente.
E isso se faz com políticas públicas, dados populacionais, decisões sanitárias.
A
biopolítica decide, por exemplo, que tipos de corpos devem ser incentivados
(esportivos, saudáveis), que hábitos devem ser corrigidos (fumar, comer mal) e
que grupos devem ser protegidos (crianças, idosos) ou deixados à margem.
É
também através da biopolítica que se define quem merece viver plenamente
e quem será apenas tolerado biologicamente.
Zoé
e Bíos: duas formas de existir
Na
Grécia antiga, havia duas palavras para "vida": zoé e bíos.
- Zoé é a vida
nua, biológica, comum a todos os seres vivos. Respirar, se alimentar,
existir como organismo.
- Bíos
é a vida qualificada, política, cultural. É viver com sentido, com
relações, com expressão social.
Na
modernidade, Giorgio Agamben percebeu que o biopoder frequentemente empurra
certos grupos para a condição de zoé: vivos, mas sem cidadania plena.
Isso é visível em campos de refugiados, populações encarceradas, moradores de
rua. Estão vivos, mas fora do jogo político. Fora do bíos.
O
Estado os mantém vivos, mas não os escuta, não os reconhece, não os
representa.
A
vida nua: o risco de existir apenas como corpo
Agamben
chama de vida nua esse estado em que se está vivo biologicamente, mas
excluído politicamente. E isso acontece mais frequentemente do que imaginamos.
Quando o poder decide suspender direitos em nome de uma emergência sanitária ou
de segurança, ele cria um estado de exceção – onde o corpo continua
respirando, mas a pessoa deixa de ser sujeito político.
Hannah
Arendt já havia nos alertado: viver não é suficiente. É preciso ser
visível, atuante, dotado de voz. Sem isso, viramos apenas
organismos úteis ou descartáveis.
E
nós, como vivemos?
Talvez
estejamos todos, em maior ou menor grau, num equilíbrio instável entre zoé
e bíos. Somos incentivados a cuidar da saúde, mas também somos
constantemente vigiados. Temos liberdade de ir e vir, mas somos condicionados
por algoritmos, protocolos sanitários, normas de conduta.
A
pergunta que fica é: estamos vivendo com profundidade, afetos e escolhas? Ou
apenas seguindo protocolos biológicos e sociais que nos mantêm produtivos?
Respirar
é viver?
Respirar,
sim, é condição básica da vida. Mas viver de fato exige mais: exige ser
escutado, reconhecido, desejado. A política da vida não pode se reduzir à
gestão de corpos. Ela deve incluir o direito ao bíos: à palavra, ao
afeto, à diferença, ao tempo não cronometrado.
Se
o poder hoje se exerce sobre a vida, nossa resistência talvez esteja em reivindicar
mais do que a sobrevivência. Reivindicar uma vida que valha a pena ser
vivida – mesmo que isso exija desobedecer um pouco às estatísticas.