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segunda-feira, 16 de junho de 2025

Obsessão e Filosofia

Vamos das uma olhada em quando a alma fecha os olhos...

Tem dias em que a gente acorda com uma única ideia — um medo recorrente, um desejo sem paz, uma lembrança que insiste em voltar. E então o pensamento gira em torno disso, como mosca em lâmpada, sem saída. O mundo se estreita. O real perde a força e sobra apenas aquilo: a obsessão. Pequena ou gigante, disfarçada de cuidado ou de amor, de zelo ou de perfeccionismo.

No cotidiano, ela é quase banal: quem nunca voltou três vezes para checar se trancou a porta? Quem nunca ficou preso num e-mail mal escrito ou numa mensagem não respondida? Há quem confunda obsessão com persistência — e há quem ache bonito ser obcecado por metas e resultados. No fundo, talvez a obsessão seja só a máscara ocidental de um medo profundo de perder o controle.

Sigmund Freud foi dos primeiros a perceber que a obsessão mora no inconsciente como sintoma: um sinal invertido de desejo reprimido. Para ele, os atos obsessivos — lavar as mãos sem parar, repetir frases mentalmente, ordenar objetos — são defesas contra algo insuportável. O sujeito obcecado tenta controlar o mundo externo porque não suporta o tumulto do mundo interno. Em "O Caso do Homem dos Ratos", Freud mostrou como a obsessão cria um labirinto de rituais inúteis, mas indispensáveis para manter o sujeito em pé. Sem eles, o medo oculto romperia a consciência.

Mas nem toda obsessão se revela como doença clínica. Jacques Lacan, leitor atento de Freud, foi mais longe: a obsessão seria um modo específico de se relacionar com o desejo — um desejo que nunca quer ser satisfeito. O obsessivo, para Lacan, não deseja realmente o objeto que persegue; deseja desejar. Por isso nunca alcança. Sua angústia é estrutural: ele gira em torno do vazio, alimentando uma falta que o define. No fundo, ele quer manter o objeto à distância, como o ciumento que teme perder justamente o que não quer possuir de fato.

Simone Weil, mística e filósofa singular, trouxe uma perspectiva rara: para ela, a obsessão é uma forma de desatenção ao real. Em "A Gravidade e a Graça", ela diz que a alma obcecada está tão fixada em si mesma — em seu desejo, em sua dor — que não consegue ver o outro, nem o mundo, nem Deus. O remédio seria o oposto: a atenção pura, capaz de se abrir ao que é, sem querer tomar ou modificar. A obsessão fecha os olhos da alma; a atenção os reabre.

Esse movimento — fechar-se e abrir-se — é o drama da vida comum. O estudante que não consegue largar uma prova malfeita; o apaixonado que revive cem vezes o fim do namoro; o trabalhador que acorda pensando no chefe e dorme imaginando planilhas. A obsessão é um monólogo interior interminável — um filme em looping que suga a energia vital.

Mas há quem a transforme. Os artistas obsessivos — Kafka, Van Gogh, Glenn Gould — criaram beleza do seu tormento repetitivo. A obsessão pode ser poço sem fundo, mas também mina de ouro. Gaston Bachelard, em "A Poética do Devaneio", lembra: todo criador é, em parte, um obcecado pelo mesmo tema, pela mesma imagem fundante.

Mesmo Schopenhauer, que via o desejo como prisão eterna, admitia um caminho de escape: a contemplação estética — esse raro instante em que o querer cessa e a beleza do mundo se revela sem exigências. Talvez aí a obsessão se dissolva por um momento.

Mas é N. Sri Ram, em "A Sabedoria da Vida", que nos dá um conselho simples: toda fixação mental nos rouba a liberdade de ver o novo. A mente obcecada não aprende, não percebe, não muda. Para ele, a alma livre é aquela que mantém o olhar aberto, curioso, disponível.

Talvez o segredo seja esse: não eliminar a obsessão — ela é humana demais para desaparecer — mas aprender a reconhecê-la como visita incômoda e temporária. Dar-lhe um lugar na sala, ouvir o que ela murmura... e depois abrir a janela. Porque o mundo lá fora continua imenso, cheio de cores, de ruídos, de vida — muito além do círculo estreito da ideia fixa.


quarta-feira, 4 de junho de 2025

Tudo Tão Vago

 

Outro dia, num intervalo qualquer, alguém comentou: “tá tudo tão vago ultimamente”. Ninguém respondeu, mas todos pareceram entender. A frase ficou flutuando no ar como fumaça de cigarro em sala fechada — sem forma, sem pressa, incômoda e, ao mesmo tempo, estranhamente familiar.

A vaguidão virou paisagem.

As mensagens não dizem nada, mas estão cheias de palavras. Os compromissos não se sustentam, mas continuam agendados. As certezas andam frágeis, como cadeiras de plástico ao sol. Vivemos uma época em que o mundo ainda está aqui, mas a nitidez dele parece ter sido desligada, como quando o óculos embaça ou o farol do carro apaga num túnel.

Mas afinal, o que é esse vago que paira sobre tudo?

O vago como forma de sobrevivência

Viver com tudo muito claro pode doer. Por isso, o vago pode ser um escudo. Quando dizemos que “tá tudo meio estranho”, adiamos um enfrentamento. “Meio estranho” é menos agressivo do que “insuportável”. “Meio cansado” protege da vergonha de admitir que estamos exaustos de viver assim.

Há uma política do vago nas relações humanas: diz-se “vamos marcar algo” no lugar de dizer “não quero mais te ver”. Diz-se “tá em aberto” quando, na verdade, não se quer decidir nada. Vaguidão vira uma estratégia de convivência social, como se manter as coisas sem foco evitasse conflitos — e talvez evite mesmo.

Há quem diga que prefere tudo claro, mas some quando o WhatsApp mostra dois tiques azuis. Essa é a geração do “vamos conversar” que na prática se resume a “me deixa em paz, mas me elogia de longe”.

Vaguidão e excesso

O mundo contemporâneo está cheio de tudo: de informações, de imagens, de vozes, de convites, de cobranças. Quando tudo é demais, nada se fixa. A mente se enche, mas não se nutre. O resultado é esse cansaço flutuante, essa apatia educada, essa sensação de estarmos sempre por um fio sem saber qual.

A vaguidão não é ausência. É excesso mal digerido.

Poeticamente falando, somos folhas ao vento. Ironicamente falando, somos planilhas com burnout.

Vivemos entre notificações e devaneios. Queremos férias espirituais, mas o máximo que conseguimos é ativar o “modo avião” por dez minutos — até bater a culpa de não responder ao grupo da firma.

Filosofia do vago: o que nos escapa também é real

O filósofo francês Maurice Merleau-Ponty falava da “ambiguidade essencial da experiência”. Para ele, o mundo nunca nos é dado totalmente, e a consciência está sempre num jogo de revelar e esconder. Nesse sentido, o vago não é erro, é condição. Ver claramente tudo seria uma ilusão. O que escapa, o que não se define, o que não se encaixa — isso também faz parte da realidade.

Quando sentimos que “tá tudo vago”, talvez seja um chamado da alma pedindo por um tempo mais lento, por menos respostas prontas, por pausas que nos devolvam à pergunta.

Mas vai explicar isso para o chefe que quer clareza no e-mail até quando você só queria dizer: “não sei se quero continuar nesse cargo ou fugir para Minas e virar ceramista.”

O risco do vago como vício

Mas há um risco. Quando o vago vira hábito, perde-se o compromisso com o real. Começamos a viver como quem assiste a um filme com o brilho do celular ligado — estamos ali, mas não estamos. Evitamos o incômodo de decidir, de nomear, de assumir. E aos poucos, vamos deixando de ser protagonistas da própria vida.

O vago pode proteger, mas também pode anestesiar.

Numa era de escolhas infinitas, a maior ousadia é escolher algo de fato. É preciso coragem pra dizer "é isso", quando a moda é dizer "depende" e passar o dia escolhendo entre delivery japonês, pizza vegana ou um jejum existencial.

Da névoa à forma

Nem tudo precisa ser nítido. Há beleza no indeterminado, no que ainda está por nascer. Mas talvez seja preciso reaprender a conviver com o vago não como fuga, e sim como passagem.

Como quem entra num nevoeiro e, em vez de parar, segue com passos firmes, sabendo que mesmo sem ver muito, ainda caminha.

E se a vida parecer muito vã, muito vaga, muito líquida — que ao menos seja um café bem passado. Porque viver mal já basta, mas viver sem aroma é demais.