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sábado, 28 de junho de 2025

Ímpeto de olhar

...e ser olhado, vamos falar sobre o desejo de existir aos olhos do outro

Todo mundo já viveu aquela cena banal e desconcertante: você está andando na rua, distraído, e de repente percebe que alguém te observa. No instante seguinte, você também olha de volta. Não há palavra, não há gesto — só a força estranha do encontro entre dois olhares. E isso basta para dar um pequeno nó na alma: por que aquele olhar nos prende? Por que é tão difícil desviar? E por que sentimos, às vezes, a compulsão de também olhar, vigiar, buscar o rosto do outro?

Esse ímpeto antigo — olhar e ser olhado — talvez seja um dos impulsos humanos mais profundos. Ele é anterior à fala, ao gesto, à escrita. Crianças pequenas já procuram os olhos da mãe antes mesmo de dizer qualquer palavra. Namorados trocam olhares mais intensos do que frases. Trabalhadores no escritório observam-se de longe para medir forças ou cumplicidades. Até nas redes sociais, mesmo sem presença física, queremos “olhares digitais”: curtidas, views, reações.

No fundo, não basta existir: queremos que alguém nos veja existir.

O olhar que define o ser: Sartre e Lacan

Jean-Paul Sartre foi quem melhor traduziu esse incômodo: no instante em que o outro me olha, eu deixo de ser puro sujeito e viro objeto na cena alheia. Estou ali, na vitrine do mundo, exposto ao julgamento. A vergonha, diz ele, nasce disso: não da nudez em si, mas de saber que há um outro me vendo nu — seja no corpo, seja nas fraquezas.

Lacan vai além: no “estádio do espelho”, o bebê se reconhece como eu só porque vê uma imagem fora de si. Somos essa distância: um sujeito que só se entende enquanto objeto de visão. O outro nos devolve uma imagem de nós mesmos — e ficamos para sempre presos a ela. A busca de aprovação, a vaidade, o medo de errar em público: tudo nasce desse laço invisível entre ver e ser visto.

O olhar como poder: Nietzsche e Foucault

Nietzsche nos lembraria que olhar é disputar força. Quem vê primeiro domina; quem é visto primeiro revela fraqueza. É uma luta ancestral de predadores e presas — só que agora nos escritórios, nas salas de aula, nos ônibus lotados. Até o flerte amoroso é um jogo de quem sustenta mais tempo o olhar sem ceder.

Michel Foucault estendeu isso à vigilância moderna: hoje o olhar se espalhou, tornou-se técnica. Câmeras, sistemas, redes sociais monitoram tudo. Estamos dentro do “panóptico”, prisão imaginada por Bentham, onde o prisioneiro nunca sabe se está sendo vigiado — e por isso vigia a si mesmo. O ímpeto de olhar e ser olhado virou método de controle social.

O olhar e o desejo de ser

Mas não é só domínio ou medo: é também desejo puro de ser. Roland Barthes escreveu que o amor começa no instante em que alguém nos olha “de maneira singular”. Não qualquer olhar, mas aquele que nos vê como únicos, como ninguém jamais viu. Daí nasce a paixão, o encantamento, o brilho especial de certos encontros.

Em tempos de Instagram, TikTok e selfies, esse desejo explodiu em espetáculo. Como alerta Byung-Chul Han, nunca se exibiu tanto o rosto, o corpo, o cotidiano — e nunca se foi tão cego para o verdadeiro encontro do olhar real. Mostrar virou substituir: em vez de ser visto no olhar do outro, queremos ser exibidos para o mercado das imagens.

O cotidiano do olhar

No trabalho, queremos o reconhecimento do chefe, o respeito dos colegas — ou pelo menos não ser invisíveis. Na amizade, buscamos cumplicidade: um olhar que nos compreenda sem palavras. No amor, queremos ser lidos por inteiro nos olhos do outro, como se ali estivesse a prova de que valemos algo.

Na política, nas ruas, o olhar também pesa: o morador de rua que desvia o olhar para não ser humilhado; o jovem negro parado pela polícia que sente o peso mortal do olhar estatal; a mulher que sente olhares invasivos no transporte público. O olhar é prazer, mas também ameaça.

O risco de perder o olhar verdadeiro

Byung-Chul Han teme que estejamos perdendo o olhar que demora, que escuta, que vê de verdade. No lugar dele, só resta a vitrine de imagens rápidas, o marketing de si mesmo, o consumo do outro como coisa. O ímpeto de ser olhado não é mais para existir — é para ser comprado, curtido, ranqueado.

Mas Emmanuel Lévinas oferece esperança: para ele, o rosto do outro me convoca à ética. No olhar do outro há uma súplica: “não me mates”. Ali nasce a responsabilidade, a humanidade. O olhar autêntico não é controle, mas abertura: permite o outro ser outro.

Concluindo: existir é aparecer?

Talvez a verdade mais incômoda seja esta: não sabemos quem somos sem o olhar alheio. Todo eu se forma no reflexo de algum espelho humano. Mas isso não nos condena: nos liberta. Somos relação, não essência isolada. Por isso o ímpeto de olhar e ser olhado é a nossa mais primitiva oração: "estou aqui, me vê". Não para dominar, não para vender — mas para ser alguém no mundo compartilhado.

Como disse Merleau-Ponty: “o mundo é o campo da visão de todos”. Olhar e ser olhado é só o modo humano de existir nesse campo aberto.

quarta-feira, 18 de junho de 2025

Hipérbato

 

Vamos falar de quando a língua pensa diferente de nós!

Sabe aquele momento em que a gente atropela a fala? Quando a frase sai torta, fora de ordem, e depois já era — porque palavra dita é como pedra atirada: impossível voltar atrás. O que sobra é o ouvinte tentando entender aquele som estranho, como quem monta um quebra-cabeça no ar. Isso acontece porque a língua, de vez em quando, resolve andar de lado, fazer um caminho esquisito — e nasce o tal do hipérbato: essa mania velha da linguagem de embaralhar a ordem das palavras. "De saudade morreu o velho marinheiro" — e não "O velho marinheiro morreu de saudade". Por que falar assim?

Não é só truque de poeta, nem preciosismo de livro antigo. O hipérbato revela algo do nosso próprio pensamento: esse jeito meio embolado, meio torto, de sentir antes de organizar, de querer dizer muita coisa ao mesmo tempo — como quem tropeça nas próprias ideias. Linguistas, psicólogos e até filósofos deram atenção a esse fenômeno. Talvez porque nele mora um segredo bonito: o de que nem sempre pensamos em linha reta.

Vamos tentar entender por que, às vezes, a fala pula etapas — e o que isso diz da nossa mente.

Hipérbato: quando a língua pensa diferente de nós

Às vezes alguém fala de um jeito estranho — e o ouvinte estranha também: "Por que ele fala assim?". É o efeito do hipérbato, essa figura de linguagem que desloca a ordem natural das palavras e, de algum modo misterioso, nos prende a atenção. "Grande é o mistério da vida" — e não "O mistério da vida é grande". Por quê? Porque quem fala assim quer que o “grande” venha primeiro no pensamento, mesmo que venha depois no dicionário.

O nome vem do grego: hyperbaton, que quer dizer "transposição". Desde a Antiguidade já se percebia esse prazer de mexer na ordem das coisas para que o pensamento ganhasse ritmo, surpresa ou impacto. Camões fazia isso. Machado de Assis fazia isso. E, sem perceber, o garçom que diz "A mesa três já pagou, ela" também faz — porque algo no cérebro pede esse "desarranjo" para tornar a fala mais expressiva.

Mas há mais aqui do que estilo. Há um funcionamento mental sendo revelado. Como explica Roman Jakobson, linguista russo que aproximou poesia e linguagem cotidiana, toda fala humana oscila entre duas forças: a da seleção (escolher palavras) e a da combinação (colocar palavras em ordem). O hipérbato brinca com essa segunda força — ele mistura o eixo do tempo e o eixo do espaço na frase. O que devia vir depois vem antes, e vice-versa. É uma microdesordem que gera significado novo.

Do lado da psicologia, isso também se explica. O cérebro adora padrões previsíveis — sujeito, verbo, objeto — porque gastam menos energia. Quando o padrão é quebrado, há uma microtensão cognitiva: o ouvinte "acorda", precisa reorganizar o sentido da frase. É como se o hipérbato dissesse: "Ei, preste atenção. Não é uma frase qualquer". William James, o grande psicólogo da atenção, já dizia: só percebemos o que varia; o resto escapa à consciência.

Lacan daria um sorriso: para ele, o inconsciente é estruturado como uma linguagem, mas não qualquer linguagem — uma linguagem de deslocamentos, condensações, rupturas de ordem. O hipérbato, nesse sentido, é uma brecha onde o inconsciente vaza na fala cotidiana. Quando alguém diz "Feliz, ele não era" está dizendo mais do que a gramática permite — está dizendo também o modo torto e pulsante como o desejo se organiza.

Maurice Merleau-Ponty, filósofo da percepção, talvez acrescentasse: essa inversão é também corporal. O hipérbato desloca o corpo da frase, quebra sua linearidade, como um movimento inesperado no espaço. Por isso o leitor ou o ouvinte sente fisicamente a diferença — uma torção da língua que ecoa no corpo que escuta.

E tem ainda o lado da memória. Os poetas antigos sabiam: o que quebra a ordem fica mais fácil de lembrar. “Inocente é quem não tem culpa”, dizia a poesia latina — e o jogo da inversão fixava a ideia na mente. Publicitários fazem o mesmo hoje: "Porque você merece" soa mais impactante do que "Porque merece você". A inversão gruda no ouvido.

Talvez por isso o hipérbato nunca desapareça, mesmo nas falas banais: ele é um modo de marcar a palavra com intenção, emoção, singularidade. Quem fala assim não só informa — sugere, insinua, provoca.

No fim das contas, é como se a própria língua quisesse pensar diferente de nós. Ou melhor: como se nossa alma, ao falar, não suportasse ser tão direta quanto a lógica exige. Ela se curva, gira, troca de lugar — porque as ideias também chegam tortas, desencontradas, vivas.

Como dizia o velho Fernando Pessoa:

"Tudo é disperso, tudo é variação..."

Até a ordem das palavras. E talvez seja justamente nisso que mora o sentido mais verdadeiro da fala humana: no inesperado lugar onde a linguagem e o pensamento se cruzam — e tropeçam — um no outro.

segunda-feira, 16 de junho de 2025

Obsessão e Filosofia

Vamos das uma olhada em quando a alma fecha os olhos...

Tem dias em que a gente acorda com uma única ideia — um medo recorrente, um desejo sem paz, uma lembrança que insiste em voltar. E então o pensamento gira em torno disso, como mosca em lâmpada, sem saída. O mundo se estreita. O real perde a força e sobra apenas aquilo: a obsessão. Pequena ou gigante, disfarçada de cuidado ou de amor, de zelo ou de perfeccionismo.

No cotidiano, ela é quase banal: quem nunca voltou três vezes para checar se trancou a porta? Quem nunca ficou preso num e-mail mal escrito ou numa mensagem não respondida? Há quem confunda obsessão com persistência — e há quem ache bonito ser obcecado por metas e resultados. No fundo, talvez a obsessão seja só a máscara ocidental de um medo profundo de perder o controle.

Sigmund Freud foi dos primeiros a perceber que a obsessão mora no inconsciente como sintoma: um sinal invertido de desejo reprimido. Para ele, os atos obsessivos — lavar as mãos sem parar, repetir frases mentalmente, ordenar objetos — são defesas contra algo insuportável. O sujeito obcecado tenta controlar o mundo externo porque não suporta o tumulto do mundo interno. Em "O Caso do Homem dos Ratos", Freud mostrou como a obsessão cria um labirinto de rituais inúteis, mas indispensáveis para manter o sujeito em pé. Sem eles, o medo oculto romperia a consciência.

Mas nem toda obsessão se revela como doença clínica. Jacques Lacan, leitor atento de Freud, foi mais longe: a obsessão seria um modo específico de se relacionar com o desejo — um desejo que nunca quer ser satisfeito. O obsessivo, para Lacan, não deseja realmente o objeto que persegue; deseja desejar. Por isso nunca alcança. Sua angústia é estrutural: ele gira em torno do vazio, alimentando uma falta que o define. No fundo, ele quer manter o objeto à distância, como o ciumento que teme perder justamente o que não quer possuir de fato.

Simone Weil, mística e filósofa singular, trouxe uma perspectiva rara: para ela, a obsessão é uma forma de desatenção ao real. Em "A Gravidade e a Graça", ela diz que a alma obcecada está tão fixada em si mesma — em seu desejo, em sua dor — que não consegue ver o outro, nem o mundo, nem Deus. O remédio seria o oposto: a atenção pura, capaz de se abrir ao que é, sem querer tomar ou modificar. A obsessão fecha os olhos da alma; a atenção os reabre.

Esse movimento — fechar-se e abrir-se — é o drama da vida comum. O estudante que não consegue largar uma prova malfeita; o apaixonado que revive cem vezes o fim do namoro; o trabalhador que acorda pensando no chefe e dorme imaginando planilhas. A obsessão é um monólogo interior interminável — um filme em looping que suga a energia vital.

Mas há quem a transforme. Os artistas obsessivos — Kafka, Van Gogh, Glenn Gould — criaram beleza do seu tormento repetitivo. A obsessão pode ser poço sem fundo, mas também mina de ouro. Gaston Bachelard, em "A Poética do Devaneio", lembra: todo criador é, em parte, um obcecado pelo mesmo tema, pela mesma imagem fundante.

Mesmo Schopenhauer, que via o desejo como prisão eterna, admitia um caminho de escape: a contemplação estética — esse raro instante em que o querer cessa e a beleza do mundo se revela sem exigências. Talvez aí a obsessão se dissolva por um momento.

Mas é N. Sri Ram, em "A Sabedoria da Vida", que nos dá um conselho simples: toda fixação mental nos rouba a liberdade de ver o novo. A mente obcecada não aprende, não percebe, não muda. Para ele, a alma livre é aquela que mantém o olhar aberto, curioso, disponível.

Talvez o segredo seja esse: não eliminar a obsessão — ela é humana demais para desaparecer — mas aprender a reconhecê-la como visita incômoda e temporária. Dar-lhe um lugar na sala, ouvir o que ela murmura... e depois abrir a janela. Porque o mundo lá fora continua imenso, cheio de cores, de ruídos, de vida — muito além do círculo estreito da ideia fixa.


sexta-feira, 6 de junho de 2025

Pecado Original

O que fizemos de errado antes mesmo de nascer?

Parece injusto carregar uma culpa que não foi escolhida. Como se nascêssemos devendo algo. Como se a vida, em seu primeiro fôlego, já nos colocasse sob suspeita. Estamos falando do chamado pecado original — esse conceito antigo, estranho, e ainda hoje ressoante, que diz que herdamos de Adão e Eva, lá no Éden, uma falha moral de fábrica. Mas e se olhássemos para isso de outro jeito? E se essa culpa não fosse um castigo, mas um modo simbólico de nos contar algo profundo sobre a condição humana?

Herança sem testamento

Na tradição cristã, o pecado original nasce com a desobediência: comer o fruto proibido, desafiar a ordem divina. Mas o problema não é só o ato, é o que ele revela: o desejo de conhecer, escolher, experimentar. Não é estranho que o primeiro erro tenha sido querer saber mais? O pecado, então, não seria um acidente, mas uma revelação: o humano é, por natureza, um ser inquieto. E talvez o pecado original seja isso — não um erro cometido, mas uma vocação inevitável para o excesso, o risco, o desvio.

Não escolhemos ser assim, apenas somos. Como dizia Agostinho, “em Adão todos pecaram” — o que soa como uma condenação universal, mas também como um retrato da fragilidade que nos une. Não é apenas um castigo: é a lembrança de que somos falhos, e talvez por isso tão humanos.

Um mito sobre a liberdade

Se tirarmos a linguagem religiosa e ficarmos com a estrutura simbólica, o pecado original pode ser lido como o nascimento da liberdade. Adão e Eva não erram porque são maus, mas porque são livres. A serpente, o fruto, o ato de comer — tudo isso compõe uma cena inaugural de escolha. Um universo sem pecado original seria um mundo de bonecos obedientes, de seres sem conflito. Seria, talvez, um jardim sem humanidade.

A expulsão do paraíso é, então, a entrada na realidade. O Éden é infância, segurança, ilusão de harmonia. Fora dele, encontramos a vida: o trabalho, o sofrimento, o tempo, a morte — e também o amor, a ética, a construção de sentido. Ser lançado no mundo, como diria Heidegger, é existir em angústia, mas também em possibilidade.

A culpa como condição

O psicanalista Jacques Lacan observava que a culpa não nasce apenas do que fazemos, mas do próprio fato de desejar. Desejar é se comprometer com a falta, com aquilo que não temos e que nos move. Nesse sentido, o pecado original seria o símbolo do desejo que funda o sujeito. Não desejamos por sermos culpados. Somos culpados porque desejamos. A culpa original é a sombra da liberdade: aparece assim que escolhemos ser alguém.

E se não for culpa, mas ponto de partida?

Talvez devêssemos deixar de ver o pecado original como uma dívida e passar a vê-lo como um reconhecimento: de que ninguém começa do zero, de que a existência já vem atravessada por histórias que não escolhemos, de que o mundo nos molda antes mesmo de sabermos quem somos. É injusto? Sim. Mas é também uma chance de compreender que crescer é lidar com o que herdamos — não apenas genes, mas dores, pesos, narrativas.

O filósofo brasileiro Rubem Alves dizia que “o paraíso não é lugar onde não há dor, mas onde a dor faz sentido”. Talvez o pecado original, longe de ser um erro isolado no passado, seja uma metáfora para nossa condição atual: a de quem vive entre a queda e o salto, entre o erro e a reconstrução.

O pecado original pode não ser literal. Mas é real no sentido em que todos nós, de algum modo, nascemos num mundo que já nos antecede, com suas regras, seus limites, suas faltas. A questão nunca foi evitar o pecado, mas descobrir o que fazemos com ele. Afinal, se não podemos apagar a mancha, talvez possamos transformá-la em arte.