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sábado, 26 de julho de 2025

Devaneio Estético

Um ensaio filosófico com pés descalços e olhos abertos

Às vezes, entre o barulho do trânsito e a pressa dos dias, nosso olhar se perde num detalhe inútil: uma rachadura bela numa parede antiga, o modo como a luz atravessa um copo com água, a coreografia casual de folhas levadas pelo vento. Não estávamos procurando nada disso. Mas algo dentro de nós suspendeu o tempo e, por segundos, vivemos num devaneio estético — um mundo sem função, sem compromisso, sem resposta. Só o ver pelo ver, o sentir pelo sentir.

Mas o que é esse instante em que o mundo parece se justificar apenas pela sua aparência? O devaneio estético, diferente da contemplação artística dirigida, é um colapso suave do senso prático, um mergulho involuntário no supérfluo que se revela essencial. Não é preciso museu nem pintura famosa: o devaneio estético nasce no inesperado, no cotidiano comovente, no toque leve do real que se mostra de um jeito novo. Ele é uma brecha na funcionalidade das coisas.

A percepção que dança

Ao contrário da percepção utilitária, que busca informações, caminhos e soluções, o devaneio estético nos retira da lógica de uso. Gaston Bachelard, em A Poética do Espaço, já havia intuído que o devaneio é uma espécie de descanso da razão, onde a imaginação ganha sua própria casa. Mas quando esse devaneio é estético, ele não apenas imagina — ele vê, escuta, toca, sente. É uma experiência encarnada, mas sem propósito.

O filósofo francês Merleau-Ponty também pode nos ajudar aqui. Para ele, o corpo é o ponto zero da experiência, e é por ele que o mundo se revela. No devaneio estético, não estamos fora do corpo, mas mais intensamente dentro dele: é o corpo que nos guia até o instante belo, não a mente que o planeja. Por isso, o devaneio estético é sempre uma surpresa. Ele nos encontra — não o contrário.

O inútil que funda o sentido

Vivemos cercados de discursos sobre produtividade, otimização e finalidade. Mas o devaneio estético nos devolve o direito ao inútil. E é aqui que a filosofia pode se rebelar contra sua própria sisudez: pensar o estético como forma de existência sem teleologia, onde o fim não é exterior à própria experiência, mas está nela. Como dizia Oscar Wilde, “toda arte é completamente inútil” — mas é justamente aí que está sua potência.

Em tempos de algoritmos que preveem nosso gosto, o devaneio estético é uma insubmissão silenciosa: ele escapa ao cálculo, ao marketing, à lógica da tendência. Ele é pessoal, íntimo e intransmissível. É o momento em que não nos tornamos consumidores de beleza, mas cúmplices dela.

O ser que se desarma

O devaneio estético exige um certo esvaziamento. Não se entra nele com o peito inflado ou a mente armada. É preciso um tipo de disponibilidade, quase uma ingenuidade. Nisso, ele se aproxima de uma experiência espiritual, ainda que sem dogma. É uma forma de humildade diante do real. Ver a beleza não porque ela se impõe, mas porque nos deixamos afetar.

Nietzsche dizia que só poderíamos criar beleza quando houvesse em nós um caos. O devaneio estético é talvez a dança efêmera desse caos com a forma — um instante onde o mundo se apresenta sem necessidade de explicação, e nós, por um momento, paramos de querer explicá-lo.

Epílogo despretensioso

Talvez o devaneio estético não nos torne mais sábios, nem mais produtivos. Mas ele nos faz lembrar que existe algo em nós que ainda é capaz de maravilhamento. E isso, por si só, já vale o instante. Um instante que, quem sabe, seja o mais verdadeiro dos dias.

quarta-feira, 16 de julho de 2025

Vaidades Ridículas

O Tempo Leva o Que Nunca Foi Nosso

Tem dias que a gente acorda se olhando no espelho com um estranhamento leve, como quem revê um parente distante. Aquela ruga nova, o cabelo que já não obedece, a pele que grita por descanso. E, mesmo sem querer, lembramos das fotos antigas, dos corpos que tivemos ou desejamos ter, dos elogios recebidos e dos silêncios constrangedores. É nesse jogo entre aparência e memória que as vaidades ridículas se escondem — vaidades que o tempo, com sua elegância implacável, vai retirando de cena.

O corpo como vitrine social

O corpo humano, talvez mais que qualquer outro elemento visível da nossa existência, foi sequestrado pela cultura. O que deveria ser abrigo e expressão da individualidade virou produto, vitrine, símbolo de status. Modelos sociais de beleza mudam com a velocidade de um clique: o que ontem era invejado, hoje é ultrapassado, e o que hoje é tendência, amanhã será ridículo.

Na década de 50, a silhueta curvilínea era o auge do desejo. Nos anos 90, os corpos magérrimos dominaram. Hoje, a beleza se mistura com performance: é preciso estar em forma, mas sem parecer que se esforça demais. É o culto ao “natural trabalhado”, onde tudo é artificial, mas tem que parecer espontâneo. Uma simulação de leveza num sistema pesado.

A vaidade como sintoma de pertencimento

Mais do que vaidade, trata-se de pertencimento. Moldar-se ao ideal vigente é uma forma de não desaparecer. Quando seguimos os padrões, não apenas buscamos reconhecimento — buscamos evitar o abandono simbólico. Quem não é belo segundo os padrões corre o risco de ser ignorado, de se tornar invisível. E invisibilidade social é uma das formas mais cruéis de exclusão.

Há uma radicalidade silenciosa — e por vezes brutal — nas mutilações modernas feitas em nome da beleza. Corpos cortados, costurados, preenchidos, raspados, esvaziados ou inflados, numa busca angustiada por pertencimento estético. O bisturi, que antes era símbolo de reparo, tornou-se ferramenta de reconfiguração da identidade. Mamas retiradas e recolocadas, costelas removidas, narizes moldados como se fossem argila, pele esticada até que perca a expressão. O que deveria ser autocuidado vira autonegação. É a dor disfarçada de estética, a cirurgia plástica como ritual de passagem para um ideal que, paradoxalmente, é cada vez mais inatingível. A mutilação aqui não é só física — é simbólica: apaga-se a história do próprio corpo para caber numa moldura inventada por algoritmos e publicidades.

O tempo como libertador

O tempo é o grande destruidor de ilusões. Não porque ele castiga o corpo — mas porque ele revela o quão frágeis são as nossas referências. A beleza da juventude envelhece. O rosto que ditava moda vira meme. O ícone de ontem se torna caricatura.

É curioso pensar que, com o tempo, algumas pessoas ganham uma beleza que antes não tinham: a beleza de quem não precisa mais provar nada. O sorriso mais solto, a roupa mais confortável, a presença mais inteira. Como escreveu Simone de Beauvoir, “não se nasce mulher, torna-se mulher” — e talvez não se nasce belo, mas se aprende a habitar o próprio corpo com dignidade e calma.

O novo olhar: o corpo que fala

Um ensaio sociológico inovador sobre beleza precisa levar em conta que estamos, hoje, diante de uma multiplicidade de corpos e estéticas que desafiam os modelos antigos. A internet abriu espaço para vozes que antes eram marginalizadas: corpos gordos, pretos, trans, maduros, marcados por cicatrizes ou doenças, todos ganhando voz e visibilidade.

Essa revolução silenciosa não elimina a tirania dos padrões, mas a questiona. Há um deslocamento importante: da beleza imposta para a beleza assumida. Uma estética do eu, e não do dever ser.

A autoestima como construção interna

Entre a negação do corpo imposto e o acolhimento do corpo real, há um espaço de reconstrução: o da autoestima ativa. Fazer algo por si — mudar o corte de cabelo, praticar uma atividade física, cuidar da alimentação, dançar, vestir-se com liberdade, fazer terapia — pode ser profundamente transformador. Quando esses gestos partem de um desejo genuíno de bem-estar e não da vergonha de si, eles se tornam potências de afirmação. A autoestima verdadeira não nasce do espelho, mas do encontro consigo mesmo, da aceitação gradual da própria história. Cuidar-se, então, deixa de ser obediência estética e vira celebração íntima.

A vaidade que resta

Não há problema em gostar do que é belo, em querer parecer melhor. O problema está em se tornar escravo disso. O tempo não destrói a vaidade — ele peneira. Vai retirando as vaidades ridículas e deixando apenas aquelas que nos tornam mais humanos, mais leves, mais honestos com nós mesmos.

Como escreveu o filósofo brasileiro N. Sri Ram, em A Natureza da Beleza:

"A beleza verdadeira é aquela que revela o íntimo, não a que o encobre."

E talvez seja esse o ponto: que o tempo nos leve tudo que encobre. E nos deixe, enfim, com o que somos.

sexta-feira, 4 de julho de 2025

Eutífron

Outro dia, numa roda de conversa, alguém perguntou: "Será que fazer o certo é sempre o certo, ou depende de quem manda?" A pergunta soou inocente, quase boba, até que me lembrei de Sócrates parado na porta do tribunal, puxando conversa com Eutífron — um sujeito tão certo de si que tinha coragem de processar o próprio pai em nome da justiça. Sim, o mesmo Sócrates que logo depois seria condenado por impiedade e corrupção da juventude.

Essa cena, que Platão eternizou no diálogo Eutífron, é um retrato cruel da inquietação humana diante do bem: o que é o justo? é justo porque é certo em si, ou só porque alguém — seja um deus, um pai, ou um juiz — diz que é?

A discussão começa simples, mas logo vira um abismo conceitual. Eutífron tenta explicar que o piedoso é aquilo que agrada aos deuses. Sócrates sorri, levanta a sobrancelha e pergunta: “Mas os deuses não discordam entre si?” — um argumento tão atual quanto os debates na internet sobre o que é “moral” ou “ofensivo”. No fundo, Sócrates quer saber: existe um bem maior que qualquer opinião, mesmo a divina?

A moral que precede o sagrado

Imagine que você vive num mundo em que todos os deuses decretam que matar é bom. Você mataria? Se sua resposta for “não”, talvez você tenha intuições morais que não dependem da vontade divina — uma bússola interna que aponta para além do céu.

O dilema de Eutífron, quando perguntado se algo é bom porque os deuses amam, ou se os deuses amam porque é bom, ainda pulsa em debates éticos modernos. Quando governos, igrejas ou algoritmos nos dizem o que é certo, surge a mesma dúvida: estamos obedecendo por medo, por conveniência, ou porque compreendemos a justiça do ato?

Talvez o que Sócrates sugeria é que a verdade moral não é feita de obediência, mas de discernimento. Piedade, portanto, não seria repetir mandamentos, mas investigar, sentir, hesitar, perguntar. Ser piedoso, nesse sentido, é um exercício de atenção profunda, não de submissão.

Piedade sem deuses: um salto de fé filosófico

E se a piedade for uma ética do cuidado, da escuta e da consciência, independente dos deuses? E se for menos sobre rituais e mais sobre reconhecer a dignidade do outro? Em tempos de polarização, em que todo mundo se acha moralmente superior, talvez a verdadeira piedade seja o desconforto de não saber ao certo se estamos certos.

Nesse sentido, Sócrates é o verdadeiro piedoso — não porque acredita nos deuses da cidade, mas porque não acredita cegamente em nada. Sua piedade é a do homem que duvida, investiga, e por isso respeita o mistério do que é o justo.

Para terminar com mais dúvida do que certeza

O diálogo de Platão não oferece respostas prontas — e essa é sua beleza. Ele nos dá a companhia de Sócrates, que nos sussurra: “Não basta crer, é preciso compreender.” E quando até os deuses discordam, talvez a única forma de piedade verdadeira seja a humildade de perguntar, ainda que o mundo inteiro já tenha dado suas respostas.


quarta-feira, 2 de julho de 2025

Calendoscópio


Há palavras que parecem inventadas por poetas em dias de vento. “Calendoscópio” soa assim — e é uma mistura entre calendário e caleidoscópio. Um objeto imaginário que organiza o tempo com beleza instável, como se cada dia fosse um fragmento colorido girando num tubo de emoções, tarefas, encontros e memórias.

Vivemos presos a calendários: agendas, prazos, compromissos. Mas o que aconteceria se olhássemos para nossos dias como quem gira um caleidoscópio? Em vez de ver o tempo como uma linha reta, enxergaríamos padrões momentâneos, geometrias afetivas, repetições com variações sutis. Uma segunda-feira pode parecer igual à anterior, mas o humor muda, o sol nasce com outra cor, alguém nos sorri diferente.

No caleidoscópio do tempo, feriados brilham como fragmentos dourados, e há também cacos escuros: os dias pesados, as esperas longas, os “nãos” que levamos. Mas tudo se rearranja. Nada fica fixo por muito tempo. Aquilo que hoje parece um caos, amanhã pode revelar um desenho surpreendente.

O filósofo Gaston Bachelard dizia que o tempo não é contínuo, mas composto de instantes poéticos, rupturas e recomeços. O calendoscópio, então, seria o símbolo dessa percepção mais sensível do tempo: não apenas contar os dias, mas sentir seus formatos, cores e ritmos.

Em vez de marcar tudo no relógio, quem sabe a gente devesse perguntar: como foi o desenho do meu dia hoje? Houve harmonia ou desalinho? Girou suave ou estalou como vidro?

O calendoscópio não nos dá controle — nos convida à contemplação. Girar o tempo como quem brinca, ver beleza nos fragmentos e aceitar que, no fim das contas, todo dia tem sua arte secreta.

quarta-feira, 23 de abril de 2025

Borboletas no cérebro

Um ensaio filosófico sobre pensamentos que voam, pousam, desaparecem – e às vezes nos transformam.

Outro dia, no meio de uma conversa boba sobre o que comer no jantar, senti uma ideia bater asa dentro da cabeça. Não era nada articulado. Era como aquela sensação de estar quase lembrando o nome de alguém. Um lampejo, um movimento súbito, como se algo se agitasse lá dentro — e fosse embora antes que eu pudesse segurar. Fiquei parado. “Borboletas no cérebro”, pensei. E assim fiquei, rindo sozinho da imagem.

Borboletas no cérebro: uma metáfora? Um diagnóstico poético? Talvez uma teoria mental que faltava. Acontece com frequência. Estamos vivendo algo banal — lavando louça, esperando o elevador, escovando os dentes — e de repente blip, um pensamento que parece não vir de nós mesmos. Como se uma parte do universo invadisse o nosso crânio com suas próprias intenções. É o pensamento que não obedece ao comando, o que chega por capricho, como se dissesse: "Não é você quem me pensa, sou eu que venho te visitar".

A leveza do pensamento involuntário

Nietzsche, lá em Além do Bem e do Mal, diz que os pensamentos vêm quando eles querem, e não quando nós queremos. E ele vai além: “É uma falsificação pensar que somos os que pensam. O pensamento nos atravessa”. Se é assim, então talvez o cérebro seja mesmo um jardim — e os pensamentos, borboletas que vêm de fora, param um pouco e depois seguem voo.

Isso muda tudo. Porque estamos acostumados a ver a mente como um comando central. Um lugar de controle. Mas e se a maior parte do que nos faz ser quem somos vem de movimentos delicados, acidentais e imprevisíveis? E se somos mais casa de passagem do que donos da razão?

O risco de prender as asas

Há quem tente organizar tudo. Domesticar cada borboleta como se fosse planilha. Rotina, método, produtividade, café às 6h43. Claro, é útil. Mas nesse controle, há um risco: espantar o que é leve. Borboletas não pousam em motores barulhentos. Pensamentos profundos também não florescem entre barulhos e obrigações repetitivas.

Às vezes, precisamos de silêncio, sombra, ou até tédio, para que algo raro nos visite. Não é à toa que muita gente tem ideias boas no banho, ou ao olhar pela janela do ônibus. Outro dia quando estava deitado quase acordando, naquela momento vieram pensamentos, vieram ideias com problemas e em seguida veio a solução, olha só que coisa louca, pois é o que chamam de incubação criativa. Então entendi, quando o mundo perde o foco e a cabeça pode vagar — aí sim, as asas batem.

Pensamento ou transformação?

Nem toda borboleta é só enfeite. Algumas vêm, pousam, abrem as asas, e deixam traços. Um pensamento pode mudar o curso de uma vida. Pode ser o estalo de alguém que decide largar tudo e ir morar no mato. Pode ser a lembrança de uma avó, que reaparece com cheiro de bolo e silêncio reconfortante. Pode ser uma frase lida sem querer, que reorganiza tudo por dentro.

Essas borboletas não são só visitantes. Elas depositam ovos. E desses ovos, nascem outras coisas: novas visões, decisões, renascimentos. A vida é menos um projeto e mais uma metamorfose em cadeia.

O voo que nos escapa

Claro, há borboletas que nunca conseguimos nomear. Ideias que só sentimos, mas nunca conseguimos dizer. Elas passam, nos tocam, mas não deixam palavra. Talvez a arte, a poesia, a música, tenham surgido para tentar capturar o que o pensamento puro não consegue.

Lembro sem certeza, que o poeta francês Paul Valéry teria dito que “o cérebro é uma borboleta. Não é o coração que ama, é a imaginação”. Talvez tudo se misture: o pensar, o sentir, o imaginar — e sejam, no fundo, apenas formas de voar.

No fim das contas, viver talvez seja isso: ter borboletas no cérebro e, mesmo sem entender todas elas, abrir espaço para que venham, pousando sobre nossas dúvidas, nossas perguntas sem resposta, e até sobre o silêncio. Porque o que voa, mesmo quando vai embora, às vezes nos transforma. E deixa no ar um rastro leve, mas impossível de esquecer.


quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Vulnerabilidade Humana

Você já se deu conta de como nossa existência pode mudar em um piscar de olhos? Uma palavra mal colocada, um acidente no trânsito, uma doença inesperada. Parece clichê, mas a vulnerabilidade humana é uma verdade que tentamos esconder sob camadas de produtividade, discursos de força e, muitas vezes, uma busca incessante por controle. Ainda assim, é ela que nos define, nos conecta e, paradoxalmente, nos fortalece.

A Ilusão do Controle

Vivemos em uma era onde a segurança é quase uma obsessão. Contratamos seguros, investimos em saúde, planejamos detalhadamente o futuro. Mas, no fundo, sabemos que o controle total é uma ilusão. Basta um tropeço para percebermos que caminhamos sobre uma corda bamba. Essa percepção, por mais desconfortável que seja, é um lembrete poderoso de nossa humanidade. Somos limitados, falíveis e, talvez por isso, belos.

Situações Cotidianas e o Despertar da Vulnerabilidade

Imagine um dia comum: você está no trabalho, resolvendo questões aparentemente importantes, quando recebe uma ligação dizendo que alguém querido está no hospital. O chão desaparece. Ou talvez você esteja na fila do supermercado e ouça alguém contar sobre como perdeu tudo em uma enchente. Esses momentos nos fazem lembrar que a vulnerabilidade não é apenas nossa – ela é de todos.

Mesmo nas situações mais simples, como quando dependemos da gentileza de um estranho para trocar um pneu furado ou de um médico para diagnosticar uma dor persistente, a vulnerabilidade se manifesta.

A Filosofia da Vulnerabilidade

Hannah Arendt, em suas reflexões sobre a condição humana, destacou como nossa interdependência é inevitável. Segundo ela, o "agir" humano – aquilo que fazemos uns com os outros – sempre envolve risco. Ninguém pode prever completamente as consequências de uma ação ou garantir sua segurança emocional. É nesse espaço de incerteza que a vulnerabilidade mora e que a liberdade também encontra seu lugar.

Outro pensador, Emmanuel Lévinas, nos lembra que a ética começa no rosto do outro, na sua exposição e fragilidade. Ao olhar para o outro, somos chamados à responsabilidade. É como se a vulnerabilidade alheia acordasse em nós uma empatia quase instintiva, um lembrete de que também somos frágeis.

Transformar a Vulnerabilidade em Força

Aceitar a vulnerabilidade como parte intrínseca de nossa existência pode ser libertador. Não significa resignação, mas reconhecimento. Quando deixamos de lutar contra essa característica e passamos a integrá-la em nossas vidas, encontramos coragem. A coragem não é ausência de medo, mas a capacidade de seguir adiante, mesmo reconhecendo nossa fragilidade.

A prática da compaixão, por exemplo, é uma forma de abraçar a vulnerabilidade. Ao ajudar alguém em dificuldade, percebemos que somos parte de um tecido humano maior. Nossas quedas e nossas forças se entrelaçam, criando algo maior do que a soma de suas partes.

A Beleza do Imperfeito

A vulnerabilidade é também o que torna a arte poderosa, o amor significativo e a vida digna de ser vivida. Um poema de Manoel de Barros capta isso ao dizer que "o que sustenta o encantamento é a imperfeição." Talvez, no final das contas, seja essa nossa maior lição: a vida é bela porque não é imune à dor, mas porque dela nascem a poesia, a conexão e o sentido.

Então, ao invés de temer a vulnerabilidade, que tal acolhê-la? Afinal, é nela que reside nossa capacidade de ser profundamente humanos, de sentir, de crescer e de transformar. Porque, no fio frágil que nos une, encontramos a força para atravessar as tempestades e nos reconstruir – juntos.


domingo, 29 de dezembro de 2024

Onda Inútil

Imagine-se à beira-mar, observando o vaivém incessante das ondas. Algumas arrebentam com força, outras desaparecem suavemente, sem deixar rastro além de espuma efêmera. Entre elas, há aquelas que parecem inúteis — ondas que não alcançam a areia, que não carregam força suficiente para mover sequer um grão. É sobre essas ondas inúteis que construímos nossa metáfora: o movimento que se desgasta em si mesmo, sem alterar nada ao seu redor, como um esforço sem direção.

No cotidiano, somos frequentemente protagonistas ou espectadores dessas "ondas inúteis". O envio de uma mensagem sem resposta, o esforço em agradar quem não se importa, ou a repetição de tarefas que parecem não levar a lugar algum — tudo isso se encaixa no conceito de movimentar-se sem propósito. Mas será mesmo inútil?

A Ilusão da Inutilidade

Aristóteles argumentava que toda ação busca um fim, mesmo quando não o compreendemos de imediato. Talvez a "onda inútil" seja apenas o reflexo de uma perspectiva limitada, incapaz de enxergar o impacto sutil ou a aprendizagem que pode advir do esforço aparentemente fútil. Um e-mail ignorado, por exemplo, pode servir como exercício de comunicação. Uma relação unilateral pode ser um espelho que nos ajuda a entender nossa necessidade de validação.

Fernando Pessoa, em sua inquietude poética, dizia que “tudo vale a pena se a alma não é pequena”. Até o movimento mais singelo, por mais que pareça insignificante, pode conter um valor intrínseco. A onda inútil talvez não mova areia, mas participa do ritmo do oceano, influenciando a harmonia maior.

A Utilidade do Inútil

O filósofo italiano Nuccio Ordine, em seu livro A Utilidade do Inútil, defende que muitas coisas consideradas supérfluas — como a arte, a literatura e o pensamento abstrato — são fundamentais para a realização humana. Ele argumenta que nossa obsessão por resultados tangíveis obscurece o valor das experiências que não visam um ganho imediato ou prático.

Seguindo essa linha, a onda inútil pode ser a metáfora daquilo que existe pelo simples fato de existir, desprovido da necessidade de justificativa externa. É o ato de apreciar o pôr do sol, mesmo sabendo que o sol não está “se pondo” de verdade. É o esforço de plantar sementes sabendo que talvez nunca vejamos a árvore crescer.

O Silêncio das Ondas

Há também uma lição no silêncio das ondas inúteis. Elas nos convidam a contemplar o vazio, a aceitar o não-fazer como parte da experiência humana. Lao-Tsé, no Tao Te Ching, ensina que o não-agir (wu wei) pode ser uma forma de sabedoria, um modo de fluir com o mundo sem tentar controlá-lo.

A onda inútil nos lembra que nem todo movimento precisa de um propósito claro. Talvez seja mais sobre estar no fluxo da vida, aceitando a impermanência e a falta de garantias. Afinal, não é o oceano feito dessas ondas?

A Beleza do Sem Sentido

A onda inútil não precisa justificar sua existência. Ela é um lembrete de que há beleza no esforço que não produz resultado, na ação que não deixa marca, no movimento que é apenas movimento.

Na próxima vez que se sentir como uma onda inútil, lembre-se: até a mais frágil das ondas compõe o grande oceano. E talvez, apenas talvez, a inutilidade seja o ponto de partida para uma utilidade maior que ainda não conseguimos compreender.


domingo, 1 de dezembro de 2024

Vida de Momentos

A vida é feita de momentos. Às vezes, eles passam tão rapidamente que mal temos tempo de perceber sua importância. Mas e se parássemos um instante para refletir sobre cada um desses momentos fugazes que compõem nossa existência?

No cotidiano agitado, é fácil se deixar levar pela correria e pelas preocupações do dia a dia. Mas, se prestarmos atenção, perceberemos que são esses pequenos momentos que dão cor e significado à nossa vida. Por exemplo, aquele abraço apertado de alguém querido ao final de um longo dia de trabalho. Esse gesto simples pode trazer uma sensação de conforto e conexão que nos sustenta.

Em uma tarde ensolarada, sentar-se em um banco do parque e observar as crianças brincando pode nos lembrar da pureza e da alegria que muitas vezes esquecemos na idade adulta. São momentos como esses que nos conectam com nossa essência mais profunda, nos lembrando do que realmente importa na vida.

Pensando nisso, trago as palavras inspiradoras de Alan Watts, um pensador que explorou profundamente a filosofia oriental e a ideia de viver plenamente o presente. Watts ensina que a vida não é uma jornada para algum destino distante, mas sim uma série de momentos preciosos que devemos aproveitar enquanto podemos. Ele nos lembra que, ao focarmos no aqui e agora, somos capazes de experimentar uma paz interior e um sentido de gratidão pelo simples fato de estarmos vivos.

No entanto, não devemos confundir uma vida de momentos com uma vida de superficialidade ou hedonismo desenfreado. Valorizar cada momento não significa buscar constantemente prazeres passageiros, mas sim estar consciente e presente em tudo o que fazemos. É sobre cultivar relações significativas, buscar crescimento pessoal e contribuir positivamente para o mundo ao nosso redor.

Portanto, que possamos todos aprender a apreciar a vida de momentos. Que possamos olhar além das preocupações do futuro e das distrações do passado, e encontrar a beleza e a plenitude que existem no presente. Pois é nesses pequenos instantes que realmente vivemos e encontramos significado em nossa jornada.


quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Conversas Cruzadas

Numa noite destas, sentados ao redor da mesa de jantar, minha família e eu protagonizamos um espetáculo de conversas cruzadas. Enquanto eu tentava explicar meus novos projetos, meu filho animadamente falava sobre seus planos de iniciar um novo hobby, e minha esposa compartilhava suas ideias para um projeto comunitário. A princípio, parecia uma confusão de vozes, onde cada um tentava ser ouvido, mas logo percebi que havia uma harmonia escondida naquela aparente desordem.

O Caos Organizado do Cotidiano

Essas cenas não são incomuns nas famílias. Às vezes, o jantar vira uma mistura de falas sobre o dia na escola, preocupações do trabalho e planos futuros. Não é raro, durante um almoço de domingo, tios e primos começarem a discutir sobre futebol enquanto as tias falam sobre as últimas receitas de bolo. Esse "caos" é, na verdade, uma dança bem coreografada onde todos, de algum modo, encontram espaço para serem ouvidos e compreendidos.

Afinidade além da Ancestralidade

Isso me fez refletir sobre como a afinidade pode criar laços tão fortes quanto os de sangue. Muitas vezes, amizades se formam de maneira semelhante. Pense nos encontros com amigos, onde a conversa se desenrola em múltiplas direções ao mesmo tempo: um fala sobre suas últimas aventuras de viagem, outro sobre um novo emprego, e você sobre uma paixão recente por fotografia. Apesar da aparente confusão, todos se entendem e se apoiam.

O Pensador: Aristóteles e a Amizade de Virtude

Aristóteles, em sua obra "Ética a Nicômaco", descreve três tipos de amizade: a amizade por utilidade, a amizade por prazer e a amizade de virtude. A amizade de virtude, segundo ele, é a mais duradoura e profunda, pois é baseada no respeito mútuo e na admiração pelas qualidades do outro. Essas amizades, muitas vezes, não dependem de laços sanguíneos, mas de uma afinidade natural e de uma busca comum pelo bem.

Aristóteles sugere que essas conexões são raras e preciosas, pois envolvem um entendimento profundo e um desejo genuíno de ver o outro prosperar. É o tipo de amizade onde conversas cruzadas se transformam em um sinfonia de vozes encorajadoras, cada uma dando suporte à outra de maneira quase instintiva.

Laços que Transformam

Voltando à mesa de jantar, percebi que o que parecia confusão era, na verdade, um exemplo vivo do que Aristóteles chamaria de "amizade de virtude". Cada um de nós, ao compartilhar nossos planos e sonhos, estava oferecendo não apenas palavras, mas um suporte genuíno, uma validação mútua de que estávamos no caminho certo.

É curioso como esses momentos nos fazem perceber que afinidade e conexão verdadeira não precisam necessariamente de um laço ancestral. Eles podem surgir da convivência, do respeito e do desejo mútuo de ver o outro prosperar. Seja na mesa de jantar em família ou em uma conversa animada com amigos, essas interações são um lembrete de que os laços mais fortes podem se formar nas mais diversas e inesperadas circunstâncias. Este artigo reflete sobre a beleza das conversas cruzadas e a afinidade que surge em famílias e amizades, inspirando-nos a valorizar esses momentos de conexão e apoio mútuo.


sábado, 4 de maio de 2024

Consciência Expansiva

Hoje estou aqui para bater um papo sobre um assunto que pode parecer meio místico, mas que está mais presente no nosso dia a dia do que a gente imagina: a consciência expansiva. Sei que parece um termo tirado de um livro de autoajuda, mas juro que é bem real e pode acontecer quando e onde a gente menos espera.

Imagine só: você está lá, na correria do dia a dia, no metrô lotado, atrasado para o trabalho, com a mente a mil por hora pensando nas contas para pagar e nos problemas para resolver. Aí, do nada, você olha pela janela e vê o sol nascendo no horizonte. Por um momento, parece que o tempo para. Você se pega hipnotizado pela beleza do momento, esquece dos problemas, e sente uma conexão profunda com tudo ao seu redor. Isso, meus amigos, é a consciência expansiva em ação.

O legal desse lance é que não precisa ser algo tão grandioso assim. Às vezes, é só parar por um instante e prestar atenção no mundo ao nosso redor. Tipo quando você está tomando um café de boa, observando as pessoas passarem na rua e percebendo os detalhes das coisas ao seu redor. De repente, você se dá conta de que faz parte de algo muito maior do que o seu mundinho individual, e isso é uma sensação incrível.

Mas olha só, não pensem que a consciência expansiva é só coisa de meditação ou viagens com cogumelos mágicos, não. Ela pode aparecer de várias formas no nosso cotidiano, como quando estamos em uma conversa profunda com um amigo, ou quando nos perdemos na beleza de uma música que toca na rádio. Até mesmo em situações banais, como lavando a louça depois do jantar, podemos ter insights surpreendentes sobre a vida.

Sabe, às vezes a consciência expansiva pode vir de um lugar bem inesperado. Tipo aquele papo que a gente tem consigo mesmo no meio da noite, quando está tudo quieto e parece que é só você e o universo. Já me peguei várias vezes nesses momentos, pensando na vida, nos meus sonhos, nos meus medos. E, não sei se é coisa da minha mente ou se é algo mais profundo, mas parece que nessas horas rola uma conversa com o universo, sabe? Como se eu estivesse trocando uma ideia com Deus ou com alguma força maior que rege tudo isso aqui. E é louco como nessas horas as respostas parecem vir de dentro da gente, como se a gente já soubesse o que precisa saber, mas tivesse esquecido no meio do corre-corre do dia a dia. Então, fica a dica: não subestimem esses papos de madrugada com o universo. Às vezes, é aí que a gente encontra as respostas que tanto busca.

Claro que nem sempre é fácil alcançar esse estado de consciência. A vida moderna, com toda a sua correria e distrações, muitas vezes nos afasta desse contato mais profundo com nós mesmos e com o mundo ao nosso redor. Mas vale a pena tentar, né? Às vezes, é só uma questão de desacelerar um pouco, respirar fundo e se permitir estar presente no momento.

Então, vamos lá! Que tal praticarmos um pouco mais de consciência expansiva no nosso dia a dia? Quem sabe a gente não descobre um mundo inteiro de possibilidades só esperando para ser explorado bem aqui, no nosso cotidiano corrido e cheio de surpresas?