O mundo em alta velocidade
Vivemos
tempos em que tudo parece urgente. As mensagens chegam com notificações
sonoras, os prazos encurtam, e até o lazer vira tarefa com cronograma. É como
se o mundo tivesse engatado a quinta marcha e esquecido o freio. Esse ritmo
acelerado, saturado de informação, consumo e autocentramento é o que alguns
pensadores chamam de hipermodernismo.
O
termo foi popularizado pelo sociólogo francês Gilles Lipovetsky,
especialmente em sua obra "Os tempos hipermodernos" (2004),
onde ele afirma que não saímos da modernidade – apenas a aceleramos. Se a
modernidade prometia progresso e razão, o hipermodernismo vive o excesso dessas
promessas. É a modernidade no turbo.
No
dia a dia, sentimos isso quando abrimos um aplicativo de delivery e nos
deparamos com centenas de opções de comida — e mesmo assim ficamos indecisos.
Ou quando estamos numa reunião virtual, respondendo e-mails e planejando o fim
de semana, tudo ao mesmo tempo. É a era do multitarefa emocional e da ansiedade
de escolha.
No
hipermodernismo, o indivíduo é rei e prisioneiro. Valorizamos a autonomia, mas
estamos sobrecarregados de decisões. Queremos autenticidade, mas somos
constantemente moldados por algoritmos. O corpo virou projeto, o tempo virou
investimento e a vida virou performance. É um tempo de liberdade individual
máxima — e, paradoxalmente, de fragilidade emocional crescente.
Lipovetsky
comenta que vivemos entre o prazer e o medo: queremos aproveitar a vida
intensamente, mas somos constantemente lembrados dos riscos — das pandemias às
mudanças climáticas. Por isso, há um culto à saúde, à segurança, à prevenção. O
hipermoderno vive como se fosse morrer amanhã, mas faz planos de previdência
para 40 anos.
Na
prática, vemos isso na obsessão por bem-estar, autocuidado e produtividade. Não
se trata mais apenas de "viver bem", mas de otimizar a existência.
O
filósofo sul-coreano Byung-Chul Han também alerta sobre essa era do
desempenho, onde a liberdade se transforma em autoexploração. “A sociedade do
desempenho é uma sociedade de cansaço”, diz ele. E talvez seja essa a grande
armadilha do hipermodernismo: correr tanto para chegar a lugar nenhum.
Vamos
a exemplos do hipermodernismo no cotidiano
Para
entender melhor como o hipermodernismo atua, podemos observá-lo em áreas
específicas da vida: arte, educação, trabalho e amor.
1.
Arte: da contemplação à hiperexposição
Na
arte hipermoderna, muitas vezes o valor não está mais na obra em si, mas em quantas
curtidas ela recebe ou na sua capacidade de viralizar. Museus
viraram cenários de selfies. Exposições são organizadas já pensando na estética
do Instagram. A experiência artística se transforma em espetáculo visual
instantâneo — rápida, compartilhável, fotogênica.
Um
exemplo claro são as chamadas “exposições imersivas”, como as de Van Gogh ou
Monet: elas priorizam o impacto sensorial e o consumo rápido da arte, muitas
vezes mais do que o contato reflexivo com a obra original.
2.
Educação: aprender para quê?
A
escola hipermoderna lida com alunos que têm acesso a tudo e, ao mesmo tempo, estão
perdidos no excesso. Querem saber "pra que serve isso", mas
muitas vezes estão mais interessados em hacks, resumos ou inteligência
artificial do que no processo do saber. O conhecimento, nesse cenário, vira
produto e não jornada.
Professores
se veem pressionados a entreter, competir com telas e adaptar o conteúdo para
caber em vídeos curtos. O problema? O pensamento crítico e profundo precisa de
tempo, pausa e silêncio — elementos escassos na lógica hipermoderna.
3.
Trabalho: 24h on-line
O
trabalho invadiu a casa. A linha entre "vida pessoal" e "vida
profissional" se dissolveu no home office. Mesmo fora do expediente, as
pessoas continuam acessíveis, respondendo mensagens, “aproveitando o tempo”
para adiantar tarefas.
O
culto à produtividade se manifesta em aplicativos de metas, reuniões sem fim,
cursos de alta performance e métricas de rendimento. O que era apenas trabalho
virou projeto de vida — e muitas vezes, fonte de culpa: nunca é o
suficiente, sempre dá para melhorar.
4.
Amor: o consumo do outro
No
campo afetivo, o hipermodernismo se mostra em relações líquidas, como diria Zygmunt
Bauman, mas agora aceleradas por aplicativos de relacionamento. Há uma sensação
de infinita possibilidade, mas também uma incapacidade de investir em
profundidade.
As
pessoas deslizam para o lado como quem escolhe uma pizza: por imagem, por gosto
imediato, descartando o que não agrada num segundo. O outro se torna um espelho
— e muitas vezes um produto — do nosso desejo de reconhecimento.
E
agora?
Diante
desse panorama, não se trata de rejeitar a modernidade, mas de frear um pouco —
ou pelo menos criar zonas de silêncio, de presença, de pausa. Um café
com um amigo, uma tarde offline, uma conversa sem objetivos. Pequenos gestos
que podem parecer anacrônicos, mas que nos devolvem o que o hipermodernismo
tenta nos tomar: tempo e presença.
Como
diz o escritor italiano Franco “Bifo” Berardi, “a lentidão é o novo
luxo”. E talvez, em tempos de hipermodernismo, viver devagar seja um ato
revolucionário.
Agora
vamos as consequências psicológicas do hipermodernismo — e o que pensadores e
terapeutas estão propondo como caminhos possíveis.
As
feridas silenciosas do hipermoderno
Viver
num mundo de excesso, velocidade e visibilidade traz consequências. Por fora,
tudo parece bem — produtividade alta, corpo em forma, redes sociais ativas. Mas
por dentro, muitos enfrentam um cansaço invisível, uma exaustão que não
tem nome exato, mas que se manifesta em forma de ansiedade, insônia, sensação
de vazio ou falta de sentido.
1.
Ansiedade e o medo de ficar para trás
Nunca
tivemos tanta liberdade para ser quem quisermos. Mas essa liberdade vira
cobrança: "o que você está fazendo da sua vida?", "por
que ainda não empreendeu?", "por que você ainda não se
encontrou?".
O
resultado é um estado constante de comparação, de sensação de
insuficiência. Tudo parece urgente e insuficiente ao mesmo tempo. Você pode
estar bem, mas alguém sempre está melhor. E nas redes, todos parecem felizes —
menos você.
2.
Burnout como epidemia emocional
No
hipermodernismo, até o descanso precisa ter função: a meditação deve aumentar
seu foco, a caminhada precisa queimar calorias, e o tempo livre tem que ser
“bem aproveitado”. Assim, o descanso verdadeiro — aquele sem meta, sem
controle, sem finalidade — se torna raro.
O
burnout, antes restrito a profissões de alta pressão, agora aparece em
estudantes, donas de casa, influenciadores digitais e aposentados. Não é só
o corpo que cansa — é a alma.
Byung-Chul
Han chama isso de “violência neuronal”: a mente deixa de ser oásis para virar
campo de batalha.
3.
O eu como projeto infinito
A
promessa do hipermodernismo é: você pode ser qualquer coisa. Mas o preço é:
você deve ser tudo. O corpo deve estar em forma, a mente em equilíbrio,
a carreira em ascensão, a vida social ativa, e o feed do Instagram bonito.
O
sujeito hipermoderno vive num projeto infinito de si mesmo — sem fim, sem
pausa, sem sossego. E o medo de falhar se mistura com o medo de não ser visto.
E
as saídas?
Alguns
pensadores sugerem caminhos que não passam por largar tudo e viver no mato
(apesar de, às vezes, dar vontade).
1.
Reencantar a rotina
O
filósofo brasileiro Mario Sergio Cortella costuma dizer que é preciso
dar sentido ao cotidiano, não buscar sentido fora dele. Isso significa resgatar
o valor das pequenas coisas: um café tranquilo, uma conversa com os filhos, um
banho demorado. Redescobrir o valor da lentidão.
2.
Criar zonas de invisibilidade
A
psicóloga e filósofa Eva Illouz fala da tirania da exposição. Uma
resposta possível é deliberadamente escolher momentos de invisibilidade.
Não postar. Não responder. Desligar. Não porque você está ausente, mas porque
está presente — no que realmente importa.
3.
Cultivar vínculos profundos
Na
lógica hipermoderna, relações são substituíveis. Mas o que nos sustenta, no
fim, são os vínculos profundos — aqueles que resistem ao tempo, às falhas e às
fases ruins. Cultivar amizade, parceria e escuta talvez seja mais urgente do
que qualquer outro investimento.
Concluindo:
O
hipermodernismo não é um erro. Ele é uma consequência de um mundo que deu certo
demais em algumas áreas — tecnologia, liberdade, consumo — mas perdeu o eixo do
cuidado, da pausa e do sentido.
Como
toda época, a nossa também pode ser repensada. E talvez, mais do que resistir,
o caminho seja reeducar o olhar. Aprender a dizer "não", a
estar offline, a não performar. A ser, e não só parecer.
Como
escreveu o poeta Manoel de Barros:
“O
que sustenta o ser não é o muito, é o pouco.
O
quase nada.
O
invisível.”