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terça-feira, 1 de abril de 2025

Reconhecer Sem Conhecer

 

Eu já vi esse rosto antes. Talvez numa reunião, no ônibus, ou passando apressado na rua. Reconheço a expressão, a forma de andar, o tom de voz. Mas se me pedirem para dizer algo sobre essa pessoa além do superficial, sou obrigado a admitir: não conheço.

Essa situação, tão comum e aparentemente trivial, esconde um paradoxo profundo da existência humana. Como é possível reconhecer alguém sem conhecê-lo? Será que a familiaridade visual, a intuição sobre um comportamento ou até uma sensação inexplicável de déjà vu são suficientes para criar uma relação de conhecimento?

A distinção entre reconhecimento e conhecimento é mais do que um detalhe semântico; ela toca em algo essencial sobre como construímos nossas interações e nossa percepção do mundo. O reconhecimento é imediato, automático, fruto de padrões que nosso cérebro armazena e utiliza para navegar na realidade. O conhecimento, por outro lado, exige tempo, troca, experiência compartilhada.

O filósofo alemão Martin Heidegger, ao falar sobre o conceito de "ser-no-mundo", sugere que estamos constantemente em uma relação de familiaridade com nosso entorno, mesmo sem compreendê-lo plenamente. Ele distingue entre "conhecimento superficial", que é utilitário e baseado na repetição, e o "conhecimento autêntico", que envolve um mergulho mais profundo no ser do outro. Ou seja, reconhecer alguém pode ser apenas um reflexo de nossa passagem pelo mundo, enquanto conhecer exige um envolvimento existencial.

Na sociedade contemporânea, a lógica do reconhecimento sem conhecimento se intensifica. Seguimos pessoas em redes sociais, lemos fragmentos de suas vidas, temos uma falsa sensação de proximidade. Quantas vezes vemos alguém na internet e sentimos que sabemos muito sobre essa pessoa, mas, na verdade, só conhecemos recortes cuidadosamente editados? O reconhecimento, aqui, se torna uma ilusão de conhecimento.

A experiência cotidiana reforça essa dicotomia. Pensemos no ambiente de trabalho: colegas que vemos diariamente, cujas vozes e hábitos são familiares, mas com quem nunca trocamos mais do que um "bom dia" protocolar. Na vizinhança, encontramos rostos que se repetem no elevador, mas que continuam sendo completos estranhos. Até mesmo em círculos sociais, há aqueles que fazem parte de nossa rotina, mas cujo mundo interno nos permanece inacessível.

O poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade expressa essa angústia no poema "Mãos Dadas": "Estou preso à vida e olho meus companheiros. Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças. Entre eles, considero a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastemos." Essa sensação de proximidade distante, de rostos reconhecíveis mas não conhecidos, pode ser encarada como um chamado à autenticidade nas relações.

Para romper esse ciclo de reconhecimento sem conhecimento, é necessário um esforço ativo de aproximação. Conhecer exige escuta, curiosidade, disposição para o encontro. Talvez a chave esteja em uma prática cada vez mais rara: o diálogo genuíno. O simples ato de perguntar algo além do esperado, de se interessar pela história do outro, pode transformar um rosto conhecido em uma presença significativa.

No final, a questão não é apenas sobre os outros, mas sobre nós mesmos. Somos reconhecidos por muitos, mas quantos realmente nos conhecem? A profundidade das conexões humanas não depende apenas da frequência com que cruzamos o caminho de alguém, mas do quanto nos permitimos revelar e compreender. Se reconhecer é uma sombra do conhecimento, talvez seja hora de iluminar essa sombra com a luz da verdadeira interação.

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Ombros Largos

Carlos Drummond de Andrade, um dos maiores poetas brasileiros do século XX, em seu poema "Os ombros suportam o Mundo", nos convida a uma jornada através das complexidades da existência humana. Através de imagens vívidas e metafóricas, Drummond descreve como os indivíduos carregam não apenas suas próprias vidas, mas também o peso do mundo ao seu redor.

O poema "Os ombros suportam o Mundo" de Carlos Drummond de Andrade é uma obra que reflete sobre a condição humana e o peso das responsabilidades que cada indivíduo carrega ao longo da vida. Dividido em três partes, o poema utiliza metáforas poderosas para transmitir sua mensagem.

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.

Tempo de absoluta depuração.

Tempo em que não se diz mais: meu amor.

Porque o amor resultou inútil.

E os olhos não choram.

E as mãos tecem apenas o rude trabalho.

E o coração está seco.

 

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.

Ficaste sozinho, a luz apagou-se,

mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.

És todo certeza, já não sabes sofrer.

E nada esperas de teus amigos.

 

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?

Teus ombros suportam o mundo

E ele não pesa mais que a mão de uma criança.

As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios

Provam apenas que a vida prossegue

E nem todos se libertaram ainda.

Alguns, achando bárbaro o espetáculo,

Prefeririam (os delicados) morrer.

Chegou um tempo em que não adianta morrer.

Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.

A vida apenas, sem mistificação.

 

Na primeira parte, Drummond descreve figuras humanas que carregam elementos do mundo físico: um homem carrega o mar nas costas, outro carrega montanhas e cidades, cada um suportando um pedaço do mundo material como um fardo pessoal.

Na segunda parte, o poeta passa a descrever cargas emocionais e psicológicas. Ele menciona aqueles que carregam o peso da angústia humana, das tristezas e das dores pessoais. Aqui, a carga se torna mais íntima e reflexiva, abordando as dificuldades emocionais que todos enfrentamos ao longo da vida.

A terceira parte do poema é uma reflexão sobre a natureza da existência e a capacidade do ser humano de suportar as adversidades. Drummond sugere que, apesar de toda a dificuldade e peso que carregamos, há uma beleza na capacidade de resistir e continuar enfrentando os desafios da vida.

Ao longo de todo o poema, a linguagem é densa e carregada de significado, com imagens vívidas que evocam tanto a grandiosidade quanto a angústia da condição humana. Drummond utiliza a metáfora dos ombros que suportam o mundo para nos fazer refletir sobre a nossa própria capacidade de lidar com as complexidades da existência, seja física, emocional ou espiritualmente.

"Os ombros suportam o Mundo" é uma obra-prima que ressoa com leitores ao redor do mundo, oferecendo uma meditação profunda sobre a vida e os desafios que todos enfrentamos, ao mesmo tempo em que celebra a força e a resiliência do espírito humano.

Em uma manhã comum, enquanto espero o metrô lotado para o trabalho, me pego pensando nas palavras penetrantes de Drummond. As pessoas ao meu redor, cada uma imersa em seus próprios pensamentos e preocupações, parecem carregar não apenas suas mochilas e bolsas, mas também os fardos invisíveis da vida moderna. É como se cada um de nós, de alguma forma, estivesse carregando um pedaço do mundo nas costas, como o poeta descreve magistralmente.

Ao observar um senhor idoso que gentilmente cede seu assento a uma mãe com um bebê no colo, vejo ali uma pequena representação do poema de Drummond. O gesto simples de cortesia revela uma carga compartilhada de compaixão e solidariedade, uma pequena parte do mundo sendo carregada nas costas de um estranho.

Drummond nos lembra também das cargas emocionais que carregamos. Aquela discussão acalorada com um colega de trabalho, as preocupações com o futuro dos filhos, a pressão diária por produtividade — tudo isso forma parte do peso que todos nós, de alguma forma, carregamos em nossos ombros.

Mas há beleza também na capacidade humana de suportar. Como o poeta sugere, não estamos sozinhos em nossas cargas. Assim como no poema, onde diferentes figuras compartilham o fardo do mundo, na vida cotidiana encontramos apoio e companheirismo que tornam nossos fardos mais leves.

Drummond, com sua habilidade única, captura a essência da experiência humana em suas palavras. Ele nos desafia a refletir não apenas sobre nossos próprios fardos, mas também sobre como podemos compartilhar e aliviar o peso uns dos outros. A poesia, assim como a vida, é uma jornada de descoberta e conexão, onde encontramos significado e beleza nos pequenos momentos e nas grandes reflexões.

Portanto, quando me encontrar esperando o metrô lotado, vou lembrar das palavras de Drummond e olhar ao meu redor com novos olhos. Cada pessoa que vejo, cada gesto de gentileza ou apoio, é uma lembrança de que todos nós, de alguma forma, estamos carregando o mundo em nossos ombros — e é nesse compartilhar que encontramos verdadeira humanidade.