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sexta-feira, 13 de junho de 2025

Noção do Apropriado

Entre o Instante e a Medida

Tem dias em que a gente escolhe calar na hora certa. Ou então diz a palavra exata que muda o rumo de uma conversa inteira. Ninguém ensina isso. Não vem no manual da vida adulta, nem no tutorial das redes sociais, nem no Código Civil. É uma percepção fina — como quando alguém sabe exatamente quando levantar da mesa, sem ser cedo demais nem tarde demais. Isso é a noção do apropriado: um saber que flutua entre o instinto e a medida, entre o corpo e o pensamento, entre o mundo e o instante.

Mas o que é, afinal, o “apropriado”? Não é o mesmo que o “correto” — que segue regra fixa, código, cartilha. Nem é o “conveniente”, que serve a um interesse esperto. O apropriado é mais sutil. Ele se move como um peixe sob a água: não se vê direito, mas percebe-se pela leveza da resistência. Apropriado é o gesto que cabe no espaço do instante. Como aquele olhar que diz mais que um discurso inteiro.

Num casamento, por exemplo, é apropriado que os noivos sorriam — mas se choram discretamente de emoção, ninguém acha errado. Pelo contrário: parece mais verdadeiro. Numa aula, é apropriado perguntar ao professor — mas há momentos em que é mais sábio calar e pensar sozinho. O apropriado não mora na regra; mora no ritmo secreto das situações.

Aristóteles já dizia que a virtude é o meio-termo entre dois excessos. Mas o meio-termo não é um ponto fixo: ele oscila conforme o vento do instante. É nesse espaço que brota a noção do apropriado — como um cálculo rápido, quase instintivo, do que convém àquele recorte de tempo e lugar. Um aluno pergunta demais na aula: é curioso ou inconveniente? Depende do dia, da paciência do professor, do cansaço da turma. O apropriado nunca é matemático; é sempre dramático.

O filósofo japonês Kitarō Nishida escreveu que a verdadeira ação surge da "intuição do campo puro da experiência". Uma percepção direta, sem intermediários, daquilo que o momento exige. Talvez a noção do apropriado seja isso: uma habilidade que se aprende vivendo, errando, escutando o não-dito das coisas. Não dá para ensinar no papel; ensina-se no olhar trocado, na pausa inesperada.

Quem entendeu bem esse jogo foi Confúcio. Na China do século V a.C., ele dizia que o homem nobre (junzi) é aquele que sabe a hora certa de tudo: do sorriso, da fala, do gesto. Nem antes, nem depois. Para ele, a ética não era uma coleção de proibições, mas uma arte da adequação. A virtude estava na harmonia do momento com a ação. Para Confúcio, até o luto tinha tempo certo: três anos de tristeza pública eram apropriados para um filho que perde o pai. Mais do que isso, virava peso para os vivos; menos do que isso, parecia indiferença. O tempo — veja só — também entra na noção do apropriado.

Já na filosofia ocidental, Henri Bergson falava da importância do “instante criador” — um momento em que a consciência escapa das repetições automáticas e capta o novo que brota do real. O apropriado, talvez, seja isso: uma interrupção criativa na rotina, um lampejo de adequação viva. Não é obedecer cegamente uma norma, mas inventar uma solução justa para um problema único.

A história está cheia de cenas em que o apropriado salvou o dia — ou o perdeu. Alexandre, o Grande, ao cortar o nó górdio com a espada, desafiou o costume de desatar pacientemente o nó, como exigiam os ritos locais. Foi apropriado? Para os gregos, sim: trouxe uma solução genial para o impasse e reforçou sua imagem de herói invencível. Para os frígios, talvez não — violou um símbolo religioso. O apropriado, veja bem, também depende do ponto de vista cultural.

Há também o caso célebre de Sócrates, que se recusou a fugir da prisão mesmo tendo chance. Para ele, era apropriado aceitar a condenação injusta e morrer de acordo com suas ideias. Para seus amigos desesperados, seria apropriado escapar e continuar ensinando. Quem estava certo? Depende de que tipo de adequação se busca: à cidade ou à consciência?

Na vida comum, esse dilema aparece quando escolhemos entre dizer a verdade dura a um amigo ou calar por compaixão. O que é mais apropriado: o real ou o delicado? Não há resposta fixa. O instante é o juiz.

Mas o mundo moderno, ansioso e acelerado, parece perder essa medida. Como disse o filósofo brasileiro Vladimir Safatle, vivemos tempos em que as emoções e expressões públicas viraram espetáculo — e o apropriado se confunde com o que “pega bem” na rede social. O resultado? O gesto perde seu frescor, vira pose. A noção do apropriado — aquela velha dança do instante — se transforma em cálculo cínico.

Por outro lado, também há os sem-noção — gente que ignora o apropriado e diz tudo, faz tudo, sem filtro, como se o mundo fosse uma lousa em branco para seu espetáculo pessoal. Mas esses não entendem que o apropriado não é limitação: é arte. A arte de dar forma ao instante.

Talvez a noção do apropriado seja o que nos salva da brutalidade e da rigidez. Ela é uma ética silenciosa, que não se escreve nos códigos da lei nem nos manuais de conduta, mas se manifesta no sorriso justo, no comentário bem medido, no silêncio necessário. É a sabedoria do instante — mais velha que a filosofia, mais viva que qualquer doutrina.

No fundo, é uma dança entre o eu e o mundo. Dança que ninguém ensina, mas que todo mundo pressente.


quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

Facetas na Conduta

Sabe aquele momento em que você se pega mudando de atitude sem nem perceber? No trabalho, é todo sério e profissional; com os amigos, é puro bom humor; e em casa, é outra pessoa completamente. Já parou para pensar se isso é algo natural ou se é uma espécie de jogo que fazemos para nos adaptar ao mundo?

Na multiplicidade do cotidiano, somos atravessados por situações que exigem distintas facetas em nossa conduta. Seria isso uma expressão da riqueza da experiência humana ou um sinal de uma fragmentação essencial? Então vamos analisar as camadas de nossa conduta, refletindo sobre o que nos impele a ser multifacetados, e se essa pluralidade é coerente ou contraditória.

A Conduta Como Espelho das Situações

Imagine-se numa segunda-feira: no trabalho, sua conduta é marcada por profissionalismo, talvez um tom de voz firme e postura ereta. Ao chegar em casa, sua expressão muda; você se torna mais leve, o riso surge com mais frequência. Com amigos, você é espirituoso, mas com estranhos, reservado. A transição entre essas facetas muitas vezes acontece de forma tão natural que não a percebemos. Mas essas diferentes condutas significam que somos diferentes "eus"? Ou cada faceta é uma resposta à demanda da situação?

A filosofia de Erving Goffman é pertinente aqui. Em seu clássico A Representação do Eu na Vida Cotidiana, Goffman sugere que a vida social é como um palco, e cada indivíduo desempenha papéis dependendo do "cenário". Essa perspectiva nos convida a pensar na conduta não como uma traição de um eu essencial, mas como uma estratégia adaptativa. Porém, há quem critique esse enfoque, acusando-o de promover um relativismo moral onde tudo é permitido desde que se adapte ao momento.

A Busca Pela Coerência

Outro caminho para entender as facetas da conduta é buscarmos a coerência por trás das variações. Para Aristóteles, a virtude está no meio-termo, no ajuste adequado entre a emoção e a razão. Uma conduta virtuosa é aquela que, mesmo variando com as circunstâncias, não abandona os princípios que definem o caráter da pessoa. Assim, a coragem é virtude tanto no trabalho quanto na vida pessoal, mas sua manifestação é distinta em cada contexto.

Aqui surge um dilema contemporâneo: nossa conduta muitas vezes é modulada pelas pressões externas, como normas sociais e expectativas alheias, e menos por nossa própria virtude. O psicólogo social Solomon Asch mostrou, em seus experimentos sobre conformidade, como a tendência de seguir o grupo pode levar indivíduos a agir contra o que acreditam. Nesse sentido, as facetas da conduta poderiam ser vistas não como riqueza, mas como traição ao eu autêntico.

A Multiplicidade Como Essência

Mas e se a multiplicidade não for uma fraqueza? Friedrich Nietzsche, em Assim Falou Zaratustra, celebra a pluralidade interna. Ele sugere que somos como uma orquestra, composta por múltiplas vozes. A grandeza não está em silenciar essa diversidade, mas em harmonizá-la. Para Nietzsche, a capacidade de abraçar nossas contradições é o que nos torna humanos.

A vida cotidiana reflete essa multiplicidade. Pense em uma mãe que é, ao mesmo tempo, protetora, disciplinadora e amiga de seu filho. Cada faceta é uma expressão do mesmo amor, embora se manifeste de formas diferentes. A harmonia entre essas facetas cria um retrato completo da maternidade.

As facetas na conduta revelam que não somos entidades estáticas, mas organismos dinâmicos que se moldam às demandas da vida. No entanto, a pluralidade só é autêntica quando guiada por princípios que unificam as diversas manifestações do eu. O desafio é encontrar o equilíbrio entre a adaptação às circunstâncias e a fidelidade a nossos valores.

A conduta, então, é como uma máscara que não esconde, mas revela. Cada faceta que mostramos é uma peça do quebra-cabeça que nos torna inteiros. A questão não é se somos um ou muitos, mas se conseguimos ser coerentes em meio à diversidade que nos habita.