O navegar às cegas da vida moderna
Outro
dia, me peguei no meio de uma caminhada — dessas que a gente faz para
espairecer — e percebi que não sabia exatamente para onde estava indo. Só
andava. O celular no bolso, desligado. Nenhum plano. Nenhuma direção. Um pouco
por tédio, outro tanto por necessidade de não estar em lugar nenhum em
particular. Foi então que me ocorreu: será que é possível viver assim? Avançar
sem bússola?
Porque,
convenhamos, há uma exigência quase moral em “ter rumo”. Se você diz que não
tem metas, parece estar cometendo um erro. Se você não sabe o que quer da vida,
é como se estivesse desrespeitando alguma lei invisível do progresso pessoal.
Mas e se o mais humano fosse justamente não saber?
A
ideia de avançar sem bússola — ou seja, sem planos rígidos, sem certezas
absolutas, sem o norte claro que tranquiliza os ansiosos — nos joga no
território do imprevisível. É desconfortável. Mas também pode ser libertador. É
aqui que a filosofia entra para abrir espaço para um tipo de pensar que não se
fecha em respostas.
Quem
nos ajuda a refletir sobre isso é Maurice Merleau-Ponty, o filósofo francês da
fenomenologia. Para ele, a experiência humana não é uma sucessão de decisões
conscientes e ordenadas, mas um estar-no-mundo fluido, onde o corpo e a
percepção têm mais a dizer do que os mapas mentais que tentamos impor à
realidade. Merleau-Ponty fala de uma espécie de “saber sensível”, uma
inteligência do corpo no espaço, que aprende e se orienta mesmo na ausência de
direções formais.
Ou
seja, talvez estejamos mais preparados do que pensamos para caminhar no escuro.
No
cotidiano, isso se expressa quando aceitamos um trabalho sem saber se é “pra
sempre”. Quando começamos uma conversa sem saber onde ela vai dar. Quando
viajamos sem roteiro. Quando dizemos sim ou não sem termos calculado todos os
desdobramentos. E, surpreendentemente, a vida acontece. Acontece apesar de nós,
e às vezes por causa desse soltar das rédeas.
Avançar
sem bússola não é sinônimo de desorientação, mas de confiança na própria
caminhada. É reconhecer que há sabedoria em errar, tropeçar e mudar de ideia. É
permitir que a vida nos revele o caminho, em vez de querer dominá-lo com um GPS
existencial.
Talvez
o verdadeiro equívoco seja acreditar que só se chega a algum lugar com controle
total. Como disse Merleau-Ponty, “não pensamos o mundo, nós o vivemos”. E viver
é, muitas vezes, seguir sem direção exata — e ainda assim, encontrar sentido.
Então
da próxima vez que te perguntarem qual o seu plano de vida, talvez valha
responder com um sorriso e dizer: “nenhum. estou apenas caminhando”.
E
isso, às vezes, é tudo.
Isto
até parece uma heresia, mas como o conceito de 'viver sem bússola' dialoga com
a sociedade de consumo atual? Putz, complicou... a pergunta abre um campo
riquíssimo de reflexão. Vamos por partes.
Viver
sem bússola x Sociedade de consumo: um choque de lógicas
A
sociedade de consumo atual é construída sobre uma promessa: você será feliz
se souber o que quer, comprar o que deseja e seguir os passos certos para o
sucesso. Isso implica sempre ter um plano, uma meta, um norte. Ter ambição
virou quase uma obrigação — e não tê-la é, muitas vezes, visto como um desvio.
Nesse
cenário, viver sem bússola parece uma heresia existencial. É como se
estivéssemos falhando no jogo, simplesmente por não estarmos o tempo todo
buscando algo para alcançar ou adquirir. O consumo precisa que saibamos o que
queremos — ou melhor: que pensemos que sabemos. E, de preferência, que
queiramos sempre mais.
O
desejo orientado
O
filósofo francês Gilles Lipovetsky nos ajuda a entender esse mecanismo.
Para ele, vivemos na era do “hiperconsumo”, onde o desejo é constantemente
estimulado, mas de forma artificial. Não desejamos espontaneamente — somos
guiados a desejar. Não há espaço para o silêncio do não querer, nem para a
contemplação sem finalidade. Tudo é feito para nos manter em movimento, mas um
movimento dirigido pelo mercado.
Então,
quando alguém decide viver sem bússola — sem metas pré-definidas, sem a
ansiedade de comprar, sem a pressão por produtividade — essa pessoa se torna,
aos olhos do sistema, um corpo estranho. Um consumidor que não responde ao
estímulo. Um ser perigoso, pois demonstra que é possível viver sem estar à
caça de algo o tempo todo.
Resistência
suave
Por
isso, viver sem bússola pode ser, paradoxalmente, um ato de resistência. Não
uma resistência raivosa ou ideológica, mas uma espécie de desvio suave,
um não seguir a corrente. É se permitir estar perdido, flanar, mudar de ideia,
sem sentir que está falhando. É recusar a ansiedade programada do “próximo
passo”, e abrir espaço para uma vida menos previsível — e talvez mais
autêntica.
Merleau-Ponty,
que mencionei antes, diria que essa forma de viver respeita a espessura da
experiência, aquilo que não se deixa reduzir a fórmulas, metas e slogans
publicitários.
O
norte que se desfaz
Na
sociedade de consumo, o “norte” é constantemente fabricado: é o carro novo, o
corpo ideal, o curso certo, a carreira perfeita. Viver sem bússola é recusar
esses nortes prontos e confiar que a vida, com suas voltas e incertezas, pode
ser vivida como uma experiência em aberto.
E
talvez seja justamente nesse não saber que algo de verdadeiro possa,
enfim, florescer.